por Redação
Tpm #70

Como um inquieto cachorro de um quilo e meio mudou minha vida

 
Devia ser a última da ninhada. Era o que eu pensava sempre que a via correr de um lado para o outro, latindo alucinadamente para o nada. Só podia ser a última da ninhada: aquele filhote que todos dispensam porque não pára quieto, morde os irmãos, faz misérias. Quem quer um encrenqueiro desse? Normalmente, acaba sem ser vendido. Como comprei sem ver, tinha ficado com o mais indócil dos filhotes.

E tudo o que eu queria era um outro animal para fazer companhia a Rodolfo, o mais amável, tranqüilo, sossegado e educado maltês que já caminhou por essas bandas. Assim, com a proximidade do aniversário de Roberta, minha ex-mulher, achei bacana fazer uma surpresa. Liguei para a veterinária e pedi uma indicação. “Que coincidência”, me disse. “A yorkshire de uma amiga deu cria há alguns meses. Posso conseguir uma para você.” “São calmos, os yorks?”, perguntei por perguntar. “Extremamente”, respondeu. E assim, no dia seguinte, fui apresentada a meu novo cachorro, um miniminiminiyork marrom-escuro. Na hora, nem dei muita bola para aquela coisa titica. Apenas coloquei em seu pescoço uma plaquinha em que se lia “Sou sua” e deixei a pequenina fêmea em casa para que Roberta visse quando chegasse do trabalho. Foi um sucesso.

Na primeira noite, estávamos preparadas para o pior porque tínhamos em mente a experiência com Rodolfo, comprado um ano antes. Esperávamos que o filhote chorasse, grunhisse, sentisse falta do lar – enfim, que fizesse de nossa noite uma penúria. Nada disso aconteceu. O pequeno cão não chorou, mas também não dormiu. Elétrica, aos 3 meses, andou e vasculhou a casa inteira. A hiperatividade ficou evidente. Acho que intuímos a personalidade daquele cão e decidimos dar a ela o nome de Valentina. E assim, em novembro de 2004, éramos quatro.

Fiel escudeira

Valentina e Roberta adquiriram rápido entrosamento. Onde Roberta ia, ia Valentina. Se Roberta chorava, Valentina pulava em seu rosto e lambia as lágrimas desesperadamente, como quem diz: “Pára agora. Vai ficar tudo bem”. Quando Roberta saía de casa, ela grudava na porta e lá ficava até Roberta voltar – ocasião celebrada com corridas alucinadas e um latido contínuo de meia hora. Além de Roberta, a outra paixão era a palavra “passear”. Já na primeira sílaba, pulava e corria como uma maluca. Na rua, seu distúrbio de imagem ficava evidente: avançava em rottweilers, dobermans, pedestres, crianças e, principalmente, velhinhas. Na falta de ter em quem avançar, escolhia o pobre Rodolfo. Uma vez, saindo do prédio, pulou no entregador de água e grudou os dentes em sua bermuda como se fosse uma piranha. Passear com ela era ficar repetindo continuamente “me desculpe”. Por pelo menos três vezes, quase morreu. Numa delas, comeu um de meus Ponstans e entrou em colapso. Mas ela sempre voltava. Firme e forte.

O tempo passou, Roberta e eu encontramos conforto em outros colos, mas o incrível apego de Valentina à vida nunca diminuiu. Muito pelo contrário. Todo novo dia era motivo para festa e corridas desembestadas pela casa: alegria demais para uma coisa tão pequena.

No terceiro domingo de agosto, Valentina saiu para passear. Era um lindo dia de sol e ela estava mais alegre do que nunca. Só que, dessa vez, nossa Val não voltaria. Um carro passou acelerando e fazendo uma curva fechada, e Valentina estava muito perto da guia. Ela não teve nenhuma chance. Roberta correu para o veterinário, mas Valentina chegou sem vida. Na hora em que recebi a notícia, pela terceira vez na vida, o chão saiu de meus pés. Não podia ser verdade, ela só tinha 3 anos. Fui para o veterinário e abracei minha ex-mulher como quem não quer se perder de mais nada. Juntas, abra­amos nossa Val pela última vez. Valentina era parte de nossa história, era parte do que fomos, testemunha do nosso amor. Era a imagem do que acontece quando a alegria transborda o corpo: a fiel escudeira de minha ex-mulher.

Quando a morte traz a vida

Naquela tarde, para comprovar a popularidade da maluca Valentina em meio à comunidade gay paulistana, duas dezenas de mulheres apareceram para se despedir.

Valentina foi embora, mas me reaproximou de Roberta. Por ora, e para mim, tem servido como consolo. Naquele domingo tão triste, Roberta e eu acabamos sozinhas na sala, tomando cerveja, chorando e vendo um jogo do Corinthians na TV: uma rotina que foi muito nossa por quatro anos.

Passamos a vida tentando entender a morte, sem muito sucesso. Mas a verdade é que, vistas de perto, algumas mortes nos ensinam a viver. Valentina me ensinou que a vida, como a conhecemos, pode acabar precocemente durante um lindo domingo de sol. E me fez ver que viver de forma intensa e apaixonada talvez seja o único antídoto para tanta fragilidade.
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