Surf no apocalipse

por Ricardo Calil
Trip #170

A história dos soldados que desbravavam as ondas do Vietnã enquanto as bombas caíam

Em meio à Guerra do Vietnã, um soldado americano conta ao coronel Kilgore que não muito longe de seu acampamento existem tubos perfeitos de 6 pés, quebrando para a esquerda e para a direita, em uma praia com fundo de corais chamada Vin Drin Dop, também conhecida como Charlie’s Point. O problema: o território está sob controle do inimigo e é um dos mais perigosos do país. Surfista amador, o coronel não se intimida: na manhã seguinte, ordena que seu regimento voe de helicóptero até o local e que alguns de seus soldados caiam na água mesmo sob intenso ataque de morteiros. Ao ser advertido de que aquilo era uma insanidade, Kilgore toma uma medida extrema para garantir o dia de surf: pede que aviões de reforço despejem napalm em uma vila próxima onde se escondem os vietcongues. Com a missão cumprida, ele exclama: “Eu amo o cheiro de napalm pela manhã!”.

 

A cena descrita acima pertence ao clássico Apocalypse now (1979), dirigido por Francis Ford Coppola, com Robert Duvall no papel de Kilgore. Presente em qualquer antologia de cinema que se preze, a seqüência é fruto da imaginação do roteirista e ex-surfista John Milius. Mas o surf no Vietnã em guerra não foi apenas uma ficção. “Talvez nenhum soldado tenha surfado em meio a um bombardeio como no filme, mas vários pegaram ondas a poucas centenas de metros da zona de combate”, garante o americano Ty Ponder, um dos diretores, ao lado de Troy Page e Scott Bass, do documentário Between the lines, que tem Milius como narrador. Exibido na última edição do Festival Alma Surf, em São Paulo, o filme defende a tese de que a Guerra do Vietnã alterou profundamente a cultura do surf. Entre 1965 e 1972, os americanos de 18 a 25 anos foram convocados a se alistar para o combate no país asiático. Esse recorte demográfico atingia em cheio os surfistas da Califórnia e do Havaí, os dois epicentros da explosão de popularidade que o esporte vivia nos Estados Unidos daquela época (dos 58 mil americanos mortos no Vietnã, cerca de 10% eram da Califórnia; não há estatísticas sobre quantos deles surfavam, mas dá para concluir que não foram poucos). Ao longo de sete anos, todo e qualquer surfista americano daquela faixa etária foi obrigado a tomar uma decisão de vida: ou se alistava e corria o risco de ser convocado para a guerra e voltar a seu país embalado em um saco preto; ou fugia da convocação, tornava-se um fora-da-lei e perigava acabar na cadeia.

“Muitos soldados surfaram a poucas centenas de metros da zona de combate”, conta o diretor Ty Ponder

Vietcongues à espreita
Between the lines (Entre as linhas, que podem ser tanto as do front quanto as do surf) concentra-se em dois surfistas que exemplificam essas trajetórias opostas. Pat Farley, surfista nascido em San Francisco, alistou-se voluntariamente em 1968, na ilusão de viver uma grande aventura. Era chamado de “hippie surfer” pelos colegas, mas diz que a experiência com ondas grandes lhe deu a capacidade para se ambientar rapidamente na natureza hostil do Vietnã. Poucos dias depois de chegar ao país, estava carregando amigos mortos. Para sobreviver, ele concluiu, teria que endurecer e aprender a matar. “O combate muda tudo em um indivíduo: a atitude, os valores, a fé em Deus”, ele afirma no documentário, antes de acrescentar: “Matei homem, mulher e criança, sem remorso ou suor. Só foi pesado ter que sacrificar um cachorro doente”. Diagnosticado com stress pós-traumático na volta à Califórnia, ele recebe até hoje pensão psiquiátrica, surfa sempre que pode e faz o shape das próprias pranchas.

Na contramão da experiência de Pat, está a de Brant Page, surfista de San Diego, o outro protagonista do documentário. Convocado para a guerra em 1969, ele fugiu para o Havaí em meio à revolução das pranchinhas, que substituíram os longboards nos mares do arquipélago, e passou a ser procurado pelo governo americano. Sem poder ter um emprego fixo, vivia mudando de endereço, às vezes morava um tempo no mato. “As garotas gostavam de brincar comigo, mas viam que eu não tinha futuro. Eu não sei quanto tempo conseguiria sustentar a situação, mas os veteranos que encontrava sempre me falavam para tentar escapar da guerra”, conta no filme. Até que um dia ele foi achado pelo FBI e levado até a Califórnia. Um dia antes de se apresentar ao exército, tomou uma boa dose de LSD e várias xícaras de café, passou a noite em claro e conseguiu ser dispensado por conta do estado lamentável de saúde e sanidade em que se encontrava. Como Pat, Brant continua na ativa como surfista e shaper, só que no Havaí. No fim de Between the lines, os dois protagonistas se unem para criar uma prancha especial para um surfista que combateu no Iraque – e assim mostrar que, enquanto a paz não chega, a relação entre surf e guerra continua.

Em meio aos extremos representados por Pat e Brant no filme, existem outros personagens que conseguiram encontrar uma solução para o impasse entre a obrigação do combate e a liberdade do surf. Sujeitos como Tom Luker, que aparece de farda e prancha na foto de abertura desta matéria. Certo dia, ele estava parado em sua base ao lado de sua prancha. Do nada, surgiu num jipe um soldado chamado Sammy que dizia conhecer um pico virgem não muito longe dali, só que em território inimigo. Apesar do medo, Tom lembra de ter pensado no fim de uma onda perfeita: “Guerra? Que guerra?”. Ty Ponder, um dos diretores do fi lme, conta a história de outro soldado que conseguia avistar os vietcongues à espreita com suas AK-47 enquanto esperava pelas ondas em uma praia deserta, mas que passou incólume pela experiência. “Eles devem ter pensado: ‘Pra que matar um sujeito que está se divertindo tanto?’”, diz o cineasta, que trabalha como piloto de aviação comercial para ganhar a vida e surfa nas horas vagas, muitas vezes ao lado dos outros dois diretores do documentário.

“Soldados e surfistas têm muito mais em comum do que se imagina. São territoriais, hierarquizados, violentos e rebeldes”, diz o roteirista John Milius

Mas o surf no Vietnã nem sempre representou perigo. A meca do esporte na época de guerra foi China Beach, em Da Nang, um centro de lazer do exército americano para soldados em folga. Ali foi criado um clube de surf que chegou a contar com 80 pranchas. Quem conseguisse demonstrar o mínimo de competência no mar podia ter uma delas enquanto estivesse no pedaço. O truque para garantir que o exército enviasse as pranchas era dizer que elas eram necessárias ao trabalho dos salva-vidas, apesar de as ondas serem basicamente “recreativas”, com 2, 3 pés.

Milius, o bárbaro
Por trás dos grandes personagens e das histórias de Between the lines, a principal questão levantada pelo documentário é: como o espírito de liberdade do esporte colide com “o horror, o horror” da guerra e sobrevive em uma situação que é supostamente a antítese de seus princípios? John Milius, o narrador do documentário e criador da cena do napalm em Apocalypse now, tem uma resposta inesperada: “Soldados e surfistas têm muito mais em comum do que se imagina. São territoriais, hierarquizados, muitas vezes violentos e rebeldes”, diz o roteirista. “Eu conheci muitos surfistas que queriam lutar contra o comunismo, mas não queriam perder o próximo swell de sul nem calçar botas. Mas, se os vietcongues aparecessem em Malibu, pode ter certeza de que nós iríamos acabar com eles”, brinca.

Para entender o espírito ao mesmo tempo bonachão e bélico da resposta, é preciso conhecer a trajetória de Milius, uma das figuras mais inusitadas da história de Hollywood. Ao atender a reportagem da Trip por telefone, de sua casa em Woodstock, Milius logo solta: “Fico muito feliz por ouvir seu sotaque. Eu tenho ‘parentes’ brasileiros”. E que parentes: seu filho foi casado e tem uma filha com a filha de Rorion Gracie, irmão de Rickson e também uma lenda do jiu-jítsu. “Levei os Gracie para surfar uma vez em Malibu, mas todos voltaram doentes por causa da poluição da água. Foi uma vergonha.”

No início dos 60, Milius saiu da Califórnia rumo ao Havaí para desbravar as ondas do North Shore e virou brother de surfistas lendários como Greg Noll. Quando a Guerra do Vietnã explodiu, ele se alistou voluntariamente, mas foi dispensado por causa da asma. Tornou-se um dos primeiros graduados em faculdade de cinema a trabalhar na indústria. Dirigiu o respeitado Amargo retorno (1978) sobre o universo do surf e virou parceiro de ondas do ícone Gerry Lopez (“que já me meteu em várias roubadas no mar”). Revelou Arnold Schwarzenegger como “ator” em Conan, o Bárbaro (1982), além de ter deixado suas digitais nos diálogos de Dirty Harry (1971) e Tubarão (1975).

Tão conhecida quanto seu talento como roteirista é sua inclinação para a direita. Define-se como um militarista, foi diretor da famigerada National Riffl e Association (Associação Nacional de Armas) e um dos criadores do Ultimate Fighting Championship; apóia a guerra no Iraque e vai votar em John McCain. Mas diz que seu caráter é definido acima de tudo pela “mentalidade tolerante e libertária do surf; é mais do que um estilo de vida, é minha tribo”. Aos 64 anos, ele perdeu peso para voltar a surfar em breve. Com esse currículo, não havia escolha mais natural para ser o narrador de Between the lines.

 

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