O dia em que dignifiquei a quebra do meu pescoço

por Mara Gabrilli

O que você pensaria se alguém o julgasse incapaz de produzir e realizar?

Imagine que essa foi a primeira informação que obtive quando me foi apresentado pela primeira vez o projeto que criava um Estatuto da Pessoa com Deficiência. No início do parágrafo dei de cara com um artigo que dizia “as pessoas com deficiência são hipossuficientes para o trabalho”.

Desapontada com o texto, que em tese deveria fortalecer e criar novos direitos, desencanei da leitura. Senti na hora que um projeto com aquele olhar não poderia trazer avanços em outros aspectos. 

O ano era 2005 e eu havia sido nomeada a primeira secretaria da pessoa com deficiência do Brasil – cargo criado pelo então prefeito José Serra. Nesta época, junto a outras tantas pessoas com deficiência, passei a lutar para que o tal do Estatuto não fosse para frente.

Embora fosse um assunto bem distante da minha realidade como secretaria municipal, eu queria somar minha força. Lembro-me de que em certa ocasião, em um compromisso que tinha em Brasília, participei de uma sessão plenária onde apoiei alguns colegas que estavam lá para criticar o texto.

Eu sequer imaginava que anos depois aquele mesmo projeto cairia em minhas mãos...

Em meu primeiro mandato como deputada Federal, passei a fazer parte de um grupo de trabalho cuja função era aprimorar o Estatuto para que entrasse em sintonia com a Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.

Foi assim que meu envolvimento com o projeto ganhou recortes muitos mais definidos.  E com o passar do tempo, a ideia de relatá-lo surgiu como uma grande noção de responsabilidade e dever que eu não podia abrir mão de cumprir. 

Eu me sentia a mais preparada para aquela função, pois além do meu envolvimento direto com o tema, eu sabia que em nenhum momento deixaria de imprimir os anseios da sociedade. De ouvir as vozes que um dia também haviam sido minhas.

Muitos disseram que eu “apanharia” da população em aceitar a relatoria de um projeto que representava retrocessos. Mas eu sabia que durante o processo nós íamos reverter a situação e transformar aquele PL em uma ferramenta de direitos.

Hoje, após 15 anos de tramitação, o Estatuto, totalmente reformulado e escrito por várias mãos, tornou-se a Lei Brasileira de Inclusão. Sancionado pela presidente depois de um árduo trabalho de consultas e audiências públicas, o projeto passou por uma negociação cuidadosa com o Governo, e traz mudanças na legislação brasileira que vão finalmente igualar direitos de uma nação que durante décadas foi invisível aos olhos do poder público.

A sanção da LBI é uma conquista não só das pessoas com deficiência, mas da democracia. Cada linha de sua redação representa os anseios da sociedade e um trabalho de parte do parlamento brasileiro, que deixou de lado bandeiras partidárias para trabalhar por uma causa maior. Prova de que ouvir o adversário, muitas vezes, pode valer a pena.

Esta troca mostrou na prática que o ser humano é muito melhor quando soma. Aos poucos, vi que os críticos ferrenhos ao projeto passaram a me procurar para contribuir e não mais desconstruir.

Agora temos a missão de derrubar alguns vetos da presidente Dilma e trabalhar para que a lei seja implementada da forma mais íntegra possível.  Será o fim de um ciclo de produção coletiva que já me traz uma das melhores sensações da vida, a da realização.

Fazer leis não é, nem nunca foi a coisa mais prazerosa pra mim. Mas produzir é o que mais me traz felicidade. E o trabalho bem feito nos impulsiona a acordar todo dia para ser melhor que ontem.  

Os “hipossuficientes” construíram um projeto que foi capaz de alterar o Código Civil, o Código Eleitoral, a Consolidação das Leis do Trabalho, o Estatuto das Cidades, dentre outras importantes mudanças na legislação que beneficiarão a vida de todos os brasileiros.

Olhar para tudo isso nos faz desconstruir qualquer lógica da vida e de preconceitos que carregamos. Mostra da maneira mais significativa e bela porque um dia quebrei meu pescoço. 

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