Síndrome de síndico

André Caramuru: ”É o fim o Estado me dizer o que eu posso ou não colocar no meu pulmão”

Como quase tudo na vida, de sexo a comida. o que faz bem ou mal não é a coisa em sim, mas a medida. Acho o fim da picada o estado me dizer o que eu posso ou não colocar no meu pulmão

Apesar do que diz sua avó, a maconha não foi descoberta por Bob Marley ou por algum outro mau elemento. Ela é consumida por seres humanos há milhares de anos, e alguns pesquisadores afirmam que as evidências de uso da Cannabis chegam ao terceiro milênio antes de Cristo. Além disso, ela tem sido utilizada, seja para fins religiosos, curativos ou simplesmente por prazer, por uma infinidade de civilizações em todo o planeta, incluindo os assírios e os antigos chineses e hindus. Ou seja, a maconha foi parte normal da vida de muita gente ao longo de muito tempo, até que no século 20 ela começou a virar “fora da lei”, menos por culpa dela e mais por conta do ópio, ou, melhor, por conta das tardias consequências da Guerra do Ópio, a guerra que inventou o narcotráfico.

A Guerra do Ópio, travada pela Grã-Bretanha (com a ajuda da França e dos Estados Unidos) contra a China entre 1839 e 1860, foi um dos capítulos mais vergonhosos da história do imperialismo ocidental. Resumindo os fatos, a China foi invadida (e massacrada) porque decidiu proibir a importação de ópio, comércio que estava dando muito dinheiro aos “exportadores” e se tornando um terrível caso de saúde pública para os chineses. Mas como o consumo do ópio começou a escapar ao controle dos “exportadores”, atingindo também os europeus, as discussões a respeito levaram a uma primeira conferência sobre o assunto, em Xangai, em 1909.

Houve depois disso três convenções internacionais (que foram gradativamente ampliando a área do debate para além do ópio), até que a quarta, em 1924, em Genebra, recomendou um endurecimento dos governos com relação ao consumo e ao comércio de entorpecentes em geral. A partir daí, a maconha seria levada à ilegalidade em praticamente todos os países, como a Inglaterra em 1928 e os Estados Unidos em 1937. Havia, é claro, um forte componente moralista, pois a lei seca contra o consumo de álcool também vigorou, mais ou menos na mesma época, nos Estados Unidos e em outros lugares.

Escolha sua fumaça
Da mesma forma como a lei seca norte-americana alimentou a máfia, que de quadrilha étnica de gueto virou uma força fora de controle (tendo como efeito colateral o crescimento vertiginoso da corrupção na polícia e na justiça daquele país), a proibição do consumo de maconha e de outras drogas fez dos narcotraficantes uma das grandes e globalizadas tragédias do mundo contemporâneo. Por outro lado, o trauma causado pelos pesados efeitos derivados do uso do ópio, a partir da segunda metade do século 19, levou a uma escalada do moralismo com relação às drogas, que contaminou muita gente, de líderes religiosos a políticos oportunistas, chegando até mesmo a médicos e cientistas. Um efeito que se faz sentir até hoje e que turva qualquer debate sério a respeito do assunto. Além de ignorar que o que faz realmente mal à saúde de todos nós, muito mais que as drogas, é o tráfico.

O debate sobre a maconha (e outras drogas) deveria ser reduzido a duas questões básicas. A primeira: o uso que você faz de um determinado produto representa risco para outras pessoas? Se sim, ele pode e deve ser alvo de restrição ou proibição pelo Estado. Se não, ele não deveria sequer ser objeto de discussão. E a segunda: o uso desse produto faz mal a você? Se sim, você deveria pensar melhor a respeito disso, em seu próprio benefício. Problema seu. E pronto. Além disso, como quase tudo na vida, de sexo a comida, o que faz bem ou mal não é a coisa em si, mas a medida. E, não, eu não fumo. Nem cigarro comum, nem cachimbo, charuto ou maconha. Não gosto e não acho que me façam bem. O que eu acho o fim da picada é o Estado ou as pessoas com síndrome de síndico ficarem me dizendo o que eu posso ou não colocar nos meus pulmões, ainda mais porque, aliás, eles fazem muito pouco com relação à fumaça que eu, vivendo em São Paulo, sou obrigado a inalar todos os dias.

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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