O inimigo mora ao lado
Em conversa com o rapper Thaíde em um dos eventos do Trip Transformadores 2018, Zannah Mustapha conta como luta contra o extremismo do Boko Haram, na Nigéria
Assistindo aos noticiários ou navegando na internet, percebemos o caos em que o mundo se encontra – multidões sendo atropeladas, tiroteios em escolas e igrejas, bombas explodindo em todo lugar, força policial excessiva contra cidadãos, jornalistas assassinados ou desaparecidos, pessoas brigando por política, conflitos na África, grupos extremistas por toda parte... Em meio a esses acontecimentos, fui convidado a participar de um evento do Trip Transformadores.
Naquela noite, coube a mim o privilégio de entrevistar Zannah Mustapha, um advogado nigeriano que, em 2007, criou uma escola na Nigéria dedicada às crianças órfãs. Dois anos depois de abrir as portas da instituição, ocorre a insurgência do Boko Haram, grupo extremista que ataca justamente escolas e tem como bandeira a criminalização da educação ocidental. Zannah poderia ter fugido, mas não o fez. Escolheu um caminho ousado e decidiu que a Future Prowess Islamic Foundation School, em Maiduguri, capital do estado do Borno e epicentro dos confrontos, receberia órfãos e viúvas tanto dos soldados nigerianos como dos extremistas. “Não fazemos diferença entre os filhos de insurgentes e os de membros do exército. Precisamos criar os dois juntos, porque ambos fazem parte do todo”, diz Zannah.
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Com este cenário duro, eu esperava uma pessoa de fala alta e semblante cansado. Mas conheci um ser humano fantástico, de fala calma, semblante firme e iluminado, que pensa e faz pelo seu povo, arriscando a própria vida. A ousadia de colocar os dois lados do conflito para conviver e aprender juntos tem efeitos surpreendentes. Em dez anos de existência, a escola nunca foi atacada. “Quando todos são colocados no mesmo local, temos a verdadeira inclusão e diversidade. Sem isso, não temos nada”, reflete.
Zannah nos faz entender que heróis existem de verdade e não precisam de superpoderes. Basta ter o que ele esbanja: coragem e vontade.
Thaíde. Como nasceu o seu trabalho na Future Prowess Islamic Foundation School?
Zannah Mustapha. Eu me formei advogado e trabalhei nessa área por 20 anos até conseguir desenvolver a ONG em que busco transformar a vida de crianças que não teriam acesso à educação. O que a gente tem conseguido fazer é cortar caminhos para as crianças do lugar de onde venho. Existe a ameaça do Boko Haram, que trata a educação ocidental como ilegal, ideia que tornou impossível para as pessoas terem acesso ao ensino. Comecei em 2007 com 36 órfãos e foi após dois anos de existência da escola que começaram as insurgências dos extremistas.
E qual era a realidade naquele momento? Algo que aconteceu por causa do Boko Haram é que as viúvas e os filhos de seus membros acabavam nas ruas, ninguém se identificava com eles. Pensei: “Deixe-me dar educação para as crianças e uma subsistência para as viúvas”. Numa cidade tradicional africana, elas ficavam tão vulneráveis quanto seus filhos. Então, para trazer as crianças, era necessário que eu desse recursos para que elas pudessem ter renda também. Hoje, apesar das insurgências do Boko Haram, temos mais de 250 alunos matriculados na escola, onde antigamente havia 36. Não fazemos diferença entre os filhos de insurgentes e os de membros do exército. Precisamos criar os dois juntos, porque ambos fazem parte do todo.
Em um ambiente com tanta tensão, como nasceu uma ideia tão pacífica? Em uma situação assim, o melhor a fazer, como líderes ou como indivíduos, é cuidar das crianças. Foi necessário dizer que cada uma delas era valiosa e que todas deveriam ter a mesma educação. O governo não é capaz de dar o básico e a sociedade quer tirar essas crianças da rua. Mas é praticamente impossível fazer isso se não nos unirmos e se não conseguirmos educar a todos.
Havia algum sinal de que essa insurgência aconteceria? Existem coisas que são um sinal de que algo está por vir. Por exemplo, quando começa a existir um discurso de ódio ou demonstrações de extremismo religioso, estes são sinais de que existe algo por acontecer. Você precisa identificar os sintomas precoces para entender como influenciar os tomadores de decisão a agir contra essas insurgências. Nós não estávamos preparados.
Lidando com algo tão desconhecido, você não teve medo de que a escola passasse por alguma tragédia? Sim. O único problema que temos é com o desconhecido, é o medo do desconhecido. Mas os cachorros, por exemplo, não comem seus próprios filhotes, então, enquanto conseguirmos ter os filhos deles lá dentro... Ninguém gostaria de matar o próprio filho, certo? Mas a verdade é que ninguém sabe ao certo quem é do Boko Haram. Qualquer pessoa na faixa etária entre 18 a 25 anos pode fazer parte do grupo. Fica difícil saber quem faz parte e quem não faz. Isso configura o medo do desconhecido sobre o qual estou falando.
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Existe alguma negociação hoje entre o governo e o Boko Haram? O que o presidente fez foi tentar uma aproximação, buscar uma mediação, e essa conversa levou à libertação de 130 garotas. Esse foi o único sinal positivo que veio do Boko Haram. É importante que eles consigam usar isso [para as conversas avançarem]. Em dez anos, não foi possível estabelecer nenhum diálogo. Os militares foram capazes de subjugá-los, mas sozinhos não conseguem terminar nenhuma guerra. É preciso uma mediação entre os militares e os insurgentes e é isso que estamos tentando. Precisamos proteger os civis, dar acesso humanitário e cessar as hostilidades.
Que balanço você faz dos dez anos de trabalho na Future Prowess Islamic Foundation School? O lado bom é o vínculo que criamos com essas crianças, a educação que elas estão recebendo e o impacto que isso tem na vida delas. Algumas estão em universidades hoje, jovens que começaram na fundação em 2007 e agora voltam como professores. A educação positiva que receberam faz com que um ciclo se forme. Temos por volta de 2 mil membros, contando os que estão lá dentro e os que já deixaram a organização; todos têm a imagem de que somos um único grupo. Nos comunicamos e travamos esse compromisso de ajudar as crianças nas escolas. Isso é incrível, pessoas que se mobilizam para devolver à sociedade a educação que elas próprias receberam.
Isso foi possível porque as pessoas se identificaram e confiaram no modelo que você criou. Na escola, temos filhos dos professores, dos diretores, somos inclusivos, de modo que todos os segmentos da sociedade estejam representados. É isso que a faz especial. A Future Prowess nunca foi fechada porque trouxemos as viúvas para perto. Elas cozinham para os seus filhos e essa comida é distribuída entre alunos, funcionários, e todos comem juntos. Todas as escolas fecham, mas a Future Prowess nunca fechou suas portas. Existe algo que muita gente não entende: se estivesse sozinho aqui, estaria vulnerável. Ao reunir vários segmentos da sociedade, nós aumentamos a segurança e foi isso que fez a ONU me considerar merecedor do prêmio Nansen da Agência das Nações Unidas para Refugiados. Quando todos são colocados no mesmo local e se unem, temos a verdadeira inclusão e diversidade. Sem isso, não temos nada.
Créditos
Imagem principal: ©Unher/Rahima Gambo