Sobre o Front da periferia conflagrada
Do Front
Diretamente do Front, na conflagrada periferia da grande metrópole, relato a carne viva dos fatos reais. Há dois dias, minha comadre Daniele veio me procurar. Há cerca de 5 dias uma jovem aqui do bairro passou na casa de uma amiga nossa e deixou seus dois filhos dizendo que iria à padaria comprar cigarros. Não voltou mais. As crianças têm 1 e 2 anos, respectivamente. A amiga, onde as crianças estavam tem mais três filhos pequenos. Só com a ajuda do povo do bairro tem sido possível ela sozinha sustentar suas próprias crianças. Agora acrescia mais dois.
Em cinco dias havia acabado tudo que havia em sua casa. Imaginem: são 15 mamadeiras e 15 fraldas por dia. Leite é ouro naquela casa. Mulheres do bairro estavam socorrendo. Aproveitei para fazer uma compra no supermercado e fomos, eu a comadre, levar minha contribuição. É uma garagem que mal os protege da chuva. Um colchão de casal no chão abrigava a todos. Não havia cadeira e nem mesa. Fogão e geladeira muito usados a um canto. Guarda roupas velho vomitando maços de roupas das gavetas, noutro. Mais nada. Foi uma alegria nossa chegada. A criançada não sabe fingir que não esta com fome.
Mais tarde, a mãe da moça foi buscar as crianças. Mas traria pela manhã. Trabalha e não tem com quem deixá-las. Esta desesperada. Sua filha e o marido dela estavam sumidos. Ela é dependente de crack. Ele envolvido também. Temia-se o pior. A mãe da moça esta na dúvida se devia procurar o Conselho Tutelar. Como a filha é drogada, perde a guarda dos filhos e ela seria a guardiã seqüente. Ela afirma não pode. Então as crianças iriam para instituição do governo aguardar possível adoção.
Todos nós aqui do bairro sabemos como são essas instituições governamentais. Já vimos como as crianças voltam de lá. Machucadas, feridas por dentro e por fora, parecendo bichinho assustado. Estávamos querendo solução que não passasse por essa via. Pessoas se apresentaram para ficar com as crianças definitivamente ou temporariamente. Ontem a mãe da moça não foi trabalhar. Cedo deixou as crianças com nossa amiga e foi procurar notícias da filha no Instituto Médico Legal.
Hoje cedo a garota apareceu. Magra, quase só no osso. Ela e o marido haviam se internado em uma casa em que os donos eram também dependentes químicos. Usaram tanta droga que perderam a noção do tempo. O sujeito não suportara e estava internado em um hospital. Ela dizia que conseguira voltar só por causa dos filhos. Estava apavorada e muito assustada. Havia percebido que se não fosse a lembrança dos filhos, teria usado droga até morrer. E pior: estava grávida! A mãe e os filhos a receberam chorando.
Não vou julgar nada. Não é esta minha função no mundo. Muitos deitam falação e nada fazem (chegam a nos censurar pelo que fazemos) porque afirmam que a garota não presta. O discurso é assim: “se ajudar agora, ela vai fazer de novo porque sabe que ajudaremos; se não ajudarmos agora, ela sofre e aprende.” Até posso concordar com essa lógica, mas e as crianças? O que têm elas com isso? Provavelmente ela fará novamente; é uma dependente química. Nós socorreremos as crianças novamente. Que mais poderemos fazer? Dar lição de moral?
Aqui encerro meu breve relato no front da periferia de São Paulo. Prometo voltar novamente quando novos fatos acontecerem, torcendo para que não ocorram.
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Luiz Mendes
29/01/2010.