Paula Lavigne

Ela está no centro da polêmica das biografias e tem uma história e tanto para contar

por Marcus Preto em

Ela está no centro da polêmica das biografias, uma das mais barulhentas do ano. Antes, porém, já tinha uma história e tanto para contar: casou com Caetano Veloso aos 16, abortou na adolescência, foi atriz, é produtora de sucesso. A seguir, uma breve biografia - autorizada, diga-se - de Paula  Lavigne

Paula Lavigne diz que o primeiro livro que ganhou de Cae­tano Veloso foi Memórias de uma moça bem-comportada, de Simone de Beauvoir. “O bom comportamento seria aquele bem-visto pelos outros ou aquele que faz o ser humano se sentir livre?”, ela pergunta. E já responde: “Simone acredita na segunda opção. Eu também. O homem precisa da intimidade para se preservar do controle e da vigilância, provenientes da vida comunitária. Somente nela, manifestamos nosso verdadeiro eu”.

Paula já tinha uma história e tanto, além de uma série de rompimentos, pontos de virada e recomeços, antes de se ver no centro de uma das maiores polêmicas do ano, a das biografias, justamente um embate entre liberdade de informação e direito à privacidade.

Filha do advogado criminalista Arthur Lavigne e da psicanalista Irene Mafra, Paula conheceu Caetano aos 13 anos e se casou com ele aos 16, idade em que foi emancipada para abrir uma empresa em sociedade com o marido, a Uns Produções. E, nos anos seguintes, se tornou uma das empresárias mais bem-sucedidas da história do showbiz nacional.

Odeio você

Da música, alcançou também o cinema. A partir de Orfeu (1999), produziu uma dúzia de longas, incluindo nessa lista alguns blockbusters, como Lisbela e o prisioneiro e 2 filhos de Francisco. Já foi atriz também. Estreou na minissérie Anos Dourados, da Globo, em 1986; no mesmo ano esteve no filme Cinema falado, dirigido por Caetano; depois fez novelas de sucesso, como Vale tudo (1988). E com Explode Coração, de Gloria Perez (1995), rompeu com a carreira: não se achava boa o suficiente para que sua presença ali se justificasse. Engravidou ainda adolescente, mas abortou. Filhos vieram mais tarde: Zeca tem hoje 21 anos e Tom, 16. Nesse meio-tempo foi a musa de uma série de canções do marido.

casamento durou até 2005. E a separação a fez passar pelo pior momento da vida até então. Tornou-se dependente de remédios. Para dormir, para acordar, para esquecer. Ficou nesse vaivém por três anos, até conseguir a ajuda médica certa. Diz ter sofrido ao se ouvir biografada em quase todas as canções do álbum  (2006), de Caetano, composto por ele durante o período de separação. “Indiscrições de Caetano”, ela diz. É para ela, entre outras desse disco, “Odeio” (“Odeio você/ Odeio você/ Odeio você/ Odeio”).

Mas, até ali, ódio era uma coisa diferente. Bem diferente da onda de ódio de que foi vítima agora, quando se tornou a presidenta do grupo Procure Saber e, por consequência, a figura central da chamada “polêmica das biografias”. “Não sou mais a mesma pessoa que eu era quando entrei nessa história”, ela disse mais de uma vez nos bastidores desta entrevista.

Procure Saber foi criado em 2013, por nomes como Caetano, Roberto Carlos, Chico Buarque, Gilberto Gil, Marisa Monte, Djavan, entre outros gigantes da MPB. Venceu a primeira batalha contra o Ecad, a entidade arrecadadora dos direitos autorais aos artistas, que agora passou a ser fiscalizada por um órgão específico e é obrigada a prestar contas da distribuição dos recursos.

Já o segundo passo do grupo foi bem mais polêmico: uma tentativa de debate sobre a necessidade de autorização prévia para biografias, regra que está em vigor e que biógrafos e editores de livros tentam derrubar. Na ocasião, a presidenta do Procure Saber disse que a intenção do grupo era “apresentar uma alternativa que atenda os escritores, mas não crie uma situação de exploração da obra e da vida alheias sem a remuneração correspondente e sem que a vida privada e a intimidade do biografado sejam violados”.

Começaram os ataques. Paula e os outros integrantes foram chamados de censores por parte da imprensa e nas redes sociais. No meio do furacão, ela foi defender as ideias do grupo no programa Saia justa, do GNT. E o barulho só aumentou.

Depois da repercussão do programa, Caetano defendeu a ex-mulher: “Paula foi escolhida pelos conselheiros [do Procure Saber] por causa de sua capacidade de fazer as coisas andarem. Não está ali por

ser minha empresária ou por ter sido minha mulher. É quase apesar disso”.

capacidade da empresária de fazer as coisas andarem continua acesa. Antes da polêmica das biografias, ajudou a articular a campanha Somos Todos Amarildo (veja o vídeo produzido por ela em http://goo.gl/4l9mRM), que abriu os olhos da população para o caso do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido em 14 de julho aos 43 anos e, segundo investigações da polícia, torturado até a morte por PMs da UPP da Rocinha.

 “Igual a painho”

Em outubro, Paula organizou um jantar-leilão em seu apartamento para levantar dinheiro para comprar uma casa para a família de Amarildo. Cerca de 120 pessoas estiveram no evento, que rendeu R$ 250 mil. Há poucas semanas, a empresária produziu um show no Circo Voador em prol da mesma causa, com Marisa Monte e Caetano Veloso.

Paula é produtora 24 horas por dia. E isso ficou claro quando Trip a encontrou em seu apartamento na avenida Vieira Souto, de frente para o mar de Ipanema. Ela própria foi atrás da equipe que produziria as fotos, a maquiagem, o cabelo etc. Organizou os passos de cada um, os horários. “Sou mais rápida do que todo mundo, então fico aflita e acabo eu mesma resolvendo tudo.”

Só parava para enrolar os cigarros (“preciso parar de fumar”) e para responder às mensagens de texto que pipocavam no celular.

Queridos, vamos resolver logo essas fotos? Estou igual a Painho [Caetano], achando um saco esse negócio de fotografia e querendo começar logo a entrevista. Nem parece coisa de mulher, né? Mas ando assim agora: gostando mais de falar. Quem diria?”

Antes de começarmos, você disse: “Eu não sou mais a pessoa que eu era quando entrei nessa história”. Estamos falando da questão das biografias, claro. Pode falar dessa sensação? Não sei exatamente que outra pessoa eu sou, só sei que não sou a mesma. A gente já viveu escândalos antes. O caso do réveillon [de 1996] foi um deles, a gente respondeu a um processo por superfaturamento de cachê, uma coisa absurda, disseram que o Paulinho da Viola ganhar menos era racismo, aquela história toda. Fomos inocentados, mas é pra você ver como a gente, nosso meio, é despreparada. Não tinha nada a ver discutir cachê de Caetano, Chico, Milton, Gil, Gal e Paulinho da Viola e de repente aquilo virou dois processos. É uma classe visada e sem representatividade. Na questão das biografias, vi o poder da mídia, a ponto de nos transformar em censores. Levantamos uma questão pra discutir. Mas, quando há um judas pra bater, não há discussão.

Você foi o judas? Todos fomos os judas. Eu botei a cara, louca e impulsiva do jeito que eu sou, porque eu sabia que a gente não queria o mal, nem censura. Fui tentando falar e a coisa foi incontrolável. O trauma foi grande, não vou ser mais tão espontânea e tão sincera como eu era. Fico falando aqui e cada palavra penso: “Meu Deus, será que estou falando alguma palavra que alguém vai poder destacar e me criar problema?”. Ouvi muito: “Como a Paula Lavigne pode falar de privacidade se ela saiu na Caras?”. A intimidade é minha! Se eu acho que estou num momento bom pra sair na Caras, eu vou sair. Mas, quando um paparazzo corre atrás de mim, ele decide sobre a minha privacidade. Não somos BBBs.

 

"Levantamos uma questão pra discutir. Mas, quando há um judas pra bater, não há discussão"

 

Alguém escreveu que isso de proteger a privacidade é falácia: quando o artista expõe a intimidade em momentos escolhidos por ele, na verdade só quer controlar o que é mostrado. Discordo. Uma pessoa querer mostrar seu trabalho ou mostrar que está bem, fazer um retrato, não significa que ela quer falar tudo da sua vida. E ela não é obrigada. Tem coisas na intimidade que você não quer que saibam. Você pode ter uma doença, uma paranoia, enfim, namoros, coisas que você não quer que saibam. Se você é uma pessoa pública, notória, todo mundo tem direito de saber tudo? A Patricia Pillar teve câncer, graças a Deus ficou boa e resolveu falar. Foi uma decisão dela. Se ela estivesse doente e alguém tivesse ido lá fuçar, seria, sim, uma invasão à privacidade dela.

Mas isso é notícia. Mas isso vira base de pesquisa para uma biografia. Sai uma nota errada no jornal, você desmente e a pessoa escreve: “Apesar de fulano negar, foi visto não sei onde”. Então a biografia vai pontuar o quê? Se o biógrafo passa a ser um detetive, ele vai ter responsabilidade de checar fatos? E onde vai checar? Na imprensa. Há 25 anos uma nota na Folha de S.Paulo dizia que eu estava caindo de bêbada numa festa. Nunca tomei porre. Falei pro repórter: “Não bebo”. E ele: “Ah, então devia estar se comportando como tal”. Não tem jeito.

Não dá pra generalizar. Claro, não estou falando de grandes biógrafos, de pessoas sérias, mas a gente tá nessa tendência da invasão da privacidade. Quando você vê, estão os caras do Pânico num guindaste pra filmar a Carolina Dieckmann.

Mas Pânico não tem a ver com biografia. Calma, eu falo de um jeito confuso, vou de frente pra trás, de trás pra frente... O que a gente tentou o tempo inteiro dizer foi: se é pra mudar as regras, vamos estudar e combinar as novas regras? O Brasil perdeu a oportunidade de discutir um assun­to interessante, que confronta o direito de liberdade de expressão com o direito de privacidade. A questão nunca foi autorização. Talvez seja pro Roberto Carlos. Mas, como o próprio empresário do Roberto Carlos disse quando ele saiu do Procure Saber, temos estilos diferentes. No momento em que o Roberto Carlos veio com advogado criminalista, lobista, que sabe lidar com questões de Brasília, a gente estranhou. Não era o tom da gente.

Tanto que a fala do Caetano, depois da briga com Roberto Carlos, foi praticamente “eu quero que libere”. Querer que libere, eu acho que todo mundo quer. O que a gente queria conversar era quando um direito acaba e começa o outro. E como esses dois direitos andam juntos.

Mas pra esses impasses existe o Judi­ciário. Em primeiro lugar, no Brasil, Justiça é coisa de rico. Pra processar alguém tem que ter dinheiro pra pagar um bom advogado. O dano moral no Brasil é imoral, cheio de ideias loucas e jurisprudências que levam sempre a desvalorizar o ser humano. É a história do Amarildo: o cara foi torturado, morto, esquartejado, sumiram com o corpo e a família teve direito a um salário mínimo como indenização! A gente vive num país injusto, e o Código Civil é uma colcha de retalhos.

Ainda acho que sua questão é mais sobre a cultura da celebridade, o paparazzo, do que biografias propriamente. Bom, nunca fizeram biografia minha, mas vejo pessoas muito magoadas. Muitas vezes as histórias são contadas a partir de uma nota no jornal. E hoje parece que o legal é descobrir os segredos das pessoas. Só vale o que é podre, o que é ruim. Não é um direito da família do [Paulo] Leminski não querer revelar que o irmão dele se suicidou? A família é censora? Fui ver o Saia justa depois, e eu parecia uma louca, desesperada. Porque cheguei ali e já estava essa coisa de “censores, são censores”. Botaram esse carimbo na cara da gente.

Você se arrepende de ter ido ao Saia justa? Cara, não me arrependo. Se você assiste lá no YouTube, vê que eu tô falando a mesma coisa de sempre. De uma maneira mais irritada, claro, porque eu não conseguia falar. Já tinha uma predisposição a um linchamento.

Você já chegou com essa sensação? Quando eu cheguei, a Maria Ribeiro e a Mônica [Martelli] já tinham dito que a Barbara Gancia tinha brigado com elas, tava uma confusão. A Maria veio aqui em casa me chamar pra ir. E então falei com a Mari [Mariana Koehler], diretora do programa. Mas, um dia antes de ir ao ar, a Astrid [Fontenelle] escreveu que eu tinha me convidado. Nunca pedi pra ir a programa nenhum na vida! Tive que ligar pra Dani [Daniela Mignani], diretora do GNT, e falar: “Pô, vocês que convidaram”. A Astrid tirou o post do Twitter, mas não se retratou. Bom, quando cheguei lá tava um clima ruim. A Barbara Gancia nervosa, a Maria nervosa. Aí a Barbara diz que hoje em dia não existe privacidade. Como não? Quis dar um exemplo de que existe, sim, e falei: “Se eu perguntar o nome da sua namorada, ela não vai gostar”. A Marcela [Bastos, namorada de Barbara Gancia] estava no estúdio, levantou e saiu. Criei uma situação real de invasão de privacidade.

Você foi chamada de homofóbica. Sim! O Carlos Tufvesson foi sensacional, entrou no Twitter me defendendo com propriedade. Sem contar meus amigos, que deram gargalhadas, né? Eu, homofóbica? Eu queria discutir. Quando deu o break, a Maria disse: “Barbara, a gente corta isso”. Aí fiquei irritada e falei: “Não!”. A Barbara já tinha escrito um artigo horroroso, dizendo que eu era oportunista, gananciosa. Mas tô acostumada, tem que nos esculhambar pra aparecer. É o que o Lobão faz, põe no Twitter: “Por que Paula Lavigne é tão filha da puta?”. Uma energia muito ruim pra cima de mim.

Você já não tinha sentido isso na vida? Dessa maneira, não. Acho que nunca estive tão exposta. A agressividade foi muito grande, a violência, os xingamentos na internet.

E pra lidar com isso? Você não se desestrutura? Claro que eu me desestruturo. Chamei a Mônica Bergamo de encalhada! Você acha que acho isso legal? Você acha que acho legal derrubar portão?

que houve de fato na história do portão? (Em 2005, Paula avançou com o carro no portão do prédio onde Caetano Veloso morava, após a separação.) Eu que fazia as malas do Caetano. Ele ia sair em turnê e estava em estúdio gravando a trilha de 2 filhos de Francisco. Eu era produtora, fui lá no apart-hotel, de nossa propriedade, onde ele estava morando. Ele não estava lá dentro com mulher nenhuma, inventaram uma história que nunca existiu. Aí veio o segurança: “A senhora não pode entrar”. “Por que eu não posso entrar?” “Porque não tem autorização do Caetano.” “Mas eu não preciso de autorização do Caetano, vim fazer a mala dele.” “A senhora não tem mais o direito de entrar.” “Eu vou entrar.” Aí ele mexeu no terno e me mostrou a arma. Acelerei o carro e derrubei o portão.

Aí chamaram a polícia. A gerente chamou. A Gloria Perez, que tem apartamento lá, viu a confusão e ligou pro meu pai. Quando a polícia chegou, meu pai falou: “Mas por que ela foi barrada? Cadê a escritura do apartamento?”. E a escritura era no nome do quê? Da nossa empresa, que abri com 16 anos. Eu não podia ser impedida de entrar na minha propriedade. Por isso nem fui à delegacia. Muita gente fala: “O pai da Paula deu dinheiro”. Não, não deu. Não acho bacana ter feito isso. Preferia ter dito “dane-se a mala do Caetano”. Mas estava num estado de nervos, me senti agredida e reagi mal.

E a briga com a Mônica Bergamo, como foi? Aquilo começou antes. Feito uma garotinha boba, a Monica começou a fazer bullying por causa de um erro de português que eu cometi. E eu, com meu temperamentozinho, comecei a ficar irritada. Aí dei um retuíte de uma coisa que vi, sem ver que o perfil dizia “Globo mente”. Aí a Monica Bergamo bota lá “Empresária de Caetano tuíta ‘Globo mente’”. Ah, não, espera aí! Chamei ela de encalhada e ela fez a festa. A vida vira um inferno, é porrada de todo lado. Ligaram pra minha personal trainer, pra ex-namorado em Londres, pro Marcelo [Marins, também ex-namorado], que agora namora a Carolina Ferraz. Ligaram pra Dedé [Gadelha, ex-mulher de Caetano] pra perguntar de brigas nossas, que nunca existiram. Ela é a mãe do Moreno, uma pessoa queridíssima, direitíssima, que amo. Falou: “Me separei do Caetano tem 30 anos! O que vocês querem saber?”. Queriam achar uns podres, mas não tenho nada a esconder. Com a matéria da Veja Rio, todo mundo riu.

Esse perfil da Veja foi até positivo pra sua imagem, não? Você aparece como uma mulher engraçada, fala de aborto... Não sou a favor de gravidez na adolescência, é um erro. Acho que aborto é direito da mulher. E sou ateia. Quando digo isso, as pessoas reagem mal. Parece que você está dizendo que não tem sensibilidade, não tem amor ao próximo. Gente, desculpa, eu não consigo imaginar alminha, vida depois da morte. Não tô falando mal de quem tem fé, tenho inveja de quem tem fé, religiosidade, espiritualidade. Mas não consigo. Então, aos 16 anos achava que se eu tivesse um filho ia estragar a minha vida, a do Caetano, tudo que a gente planejava. Mas é crime, então minha mãe me levou escondida pra fazer um aborto. Depois tive filhos maravilhosos. Se alma existe no feto, me desculpe, sou uma pecadora e vou pro inferno, paciência. Mas não acho que cometi crime. É muito sério ter um filho.

Você não vê problema em falar de experiências tão íntimas? Não tô abrindo minha intimidade simplesmente pra dizer: “Uhu, fiz um aborto!”. Gostaria que outras meninas que quisessem fazer aborto

tivessem essa opção, fossem pra um bom hospital, com segurança. Somos obrigadas a ter filho porque a Igreja quer? Eu tenho que reagir a isso. Eu abro minha intimidade pra dizer coisas que eu penso e defendo. Numa boa, pode num país como o Brasil a maconha ser proibida? Qual a diferença de uma maconha bem usada pra um Rivotril, que é o remédio mais tomado no país?

Como é sua experiência com drogas? Não lido bem com drogas, tive uma educação de ter cuidado com isso. Todo mundo brinca que casei com Caetano porque nos anos 80 todo mundo cheirava e fumava, e eu e ele não fazíamos nada, então a gente sobrava nas festas. Anos depois, fiquei workaholic, agoniada, sem dormir dois, três dias. Fui a um psiquiatra, tomei remédios, e o que aconteceu? Virei dependente química. Queria dormir, me apagava. Queria acordar, me acordava. Tomei de Tylenol a Rivotril, Dormonid, Frontal... Não pensava em outra coisa.

Mas como começou? Teve um fato? Teve um fato. Eu fui no médico porque não conseguia dormir. Então era remédio pra relaxar e dormir.

Foi no tempo da separação? Exatamente. A barra foi muito pesada, muito dolorida. Parecia que eu tava perdendo um braço, uma perna. Comecei a tomar remédios e teve uma hora que não pensava em mais nada. Qualquer dor, eu tomava.

alivia? Claro que remédio alivia. A pessoa também se vicia em cocaína porque dá bem-estar, se sente inteligente, né? Álcool relaxa... Mas qualquer coisa que você fizer em excesso faz mal. Minha dependência foi forte, tive que tratar, ficar internada. Depois de muitas tentativas dei a sorte de pegar uma médica que deu certo comigo, que me ouvia e tentava estudar minha química. Essa coisa da neurociência é uma das que mais me interessam no momento. Um remédio que faz bem a uma pessoa pode não fazer a outra. Você é meio cobaia. Aí fui num médico na Califórnia e a receita dele era dois copos de vinho e um tipo de sativa [maconha] sei lá das quantas, que no Brasil eu nunca pude comprar, porque é ilegal, obviamente. Era uso medicinal. Você tem um vaporizer lá, que é usado em hospital e tudo. Mas não sou médica, claro que deve ter coisas da maconha que fazem mal.

Queria falar da sua ligação com artistas como Criolo, Emicida. As pessoas falam: “A Paula é esperta, né? O Caetano daqui a pouco se aposenta e ela está com os caras”. Essa história é simples. A gente está passando por uma transformação no mercado e esses artistas me fascinam. Principalmente Criolo e Emicida, com sua estrutura de produção. Eles estão fazendo um favor ao mercado, arriscando um modelo de negócios que me interessa. O Caetano virou independente pela primeira vez na vida. Depois de 52 anos de carreira, a gente tem um contrato independente: a Universal, que era dona de todos os produtos do Caetano, agora distribui a gente. Um lançamento de disco no Circo Voador custaria 30, 40, 50 mil reais nos moldes antigos. R$ 7 mil de rádio, R$ 15 mil de televisão, R$ 4 mil de lambe-lambe etc. Quando fui fazer uma reunião sobre isso com a turma do Circo pra lançar o Abraçaço, riram da minha cara. “Paula, vamos abrir a bilheteria amanhã, faltando três meses pro show, você vai botar nas redes sociais do Caetano, nós vamos botar nas redes do Circo e não vai ser gasto um tostão.” A gente lotou as três noites. E não gastou nada com promoção.

Hoje você usa muito as redes sociais, né? A gente começou atrasado, temos poucos seguidores em relação a outras pessoas. Mas é maravilhoso, a gente fala com o público certo. Não precisei sujar a cidade com lambe-lambes, não precisei gastar mídia de televisão, que todo mundo está vendo sem estar interessado no que você está vendendo. Você fala com o público-alvo sem pagar nada. Claro, agora o Facebook já está cobrando, está nascendo um mercado. Mas quem mais sabe disso? A turma do Criolo, do Emicida, porque está com isso em prática. Eu aprendo com eles.

 

"A barra foi muito pesada [na separação]. Parecia que eu tava perdendo um braço, uma perna"

 

Numa das colunas, o Caetano diz que você é uma pessoa “que faz a coisa andar”. Quando essa ficha caiu na sua vida? A ficha nunca esteve emperrada. Fui emancipada com 16 anos para abrir uma empresa, é uma vocação minha. A Gal Costa canta, o Milton Nascimento nasceu com aquela voz de Deus, eu nasci com isso. Morri de rir daquela biografia minha na Piauí. Porque é quase aquilo mesmo, eu organizava a fila do xixi. Sempre tive a noção de que a verdadeira liberdade é a financeira. Na infância inteira eu brinquei de fazer comércio. Meu pai acabava de ler as revistas e eu ia pro lado da banca perguntar se alguém queria comprar pela metade do preço.

Isso acaba sendo um talento. É um talento, e é necessário para os artistas. O Cae­tano é incapaz de coisas práticas nesse sentido. Com 15 anos, meu pai me mandou pra estudar em Cambridge. Aí o Caetano foi a Londres e eu fugi da escola para encontrar ele. A gente saiu para jantar e ele tinha esquecido o dinheiro. Paguei com minha mesada. Ele é assim. Não tem celular. Ele fala: “Pra que vou ter celular? Vou ter sempre alguém do lado, peço emprestado”. Ligar para ele, ele não quer que liguem, mas ligar para os outros ele quer! Ele diz: “Empresta seu celular um minutinho?”. Quem não vai querer emprestar?

Por que você e Caetano, tão diferentes, deram certo? A gente se completava, e se completa até hoje. O casamento acabou, mas continuamos sócios. Nossa empresa é dona deste apartamento, de tudo que a gente tem, é uma sociedade na vida. Não quis abrir mão disso, porque dá certo.

Tudo passa por você? Artístico, não. Ele compõe uma música, eu não aprovo.

Claro. Mas tem uma coisa assim: “Ah, a Paula odeia a fase ”? Eu odeio a fase  porque esse é um disco sobre a nossa separação. É a indiscrição de ser o Caetano. Tudo bem, depois vira arte. Mas quando você está vivendo aquilo é foda.

Quando você ouve “Não me arrependo de você”, não acha linda? Não é que eu não achasse linda. Quem me mostrou essa música foi o Tom, e foi superemocionante ver meu filho cantando. Mas, quando você está vivendo aquilo, é muito forte. Você se sente despida no meio da rua. Eu acho  um grande disco, mas é muito eu ali. Foi bem difícil. Hoje não, já tem tempo, já se estabilizou uma nova relação. Não gosto de “Branquinha” [do disco Estrangeiro, feita para ela]. Gosto de “Odeio você”. O Jorge Mautner diz que é uma das músicas de amor mais lindas do mundo.

Mas de cara você não gostou. Quando eu ouvi eu quase morri.

De ódio? Não. De dor. De dor de o Caetano ter sentido aquilo. A música é muito boa. Mas sofri, só isso.

Tem o “mulher indigesta”, que ele fez agora, “o ciúme é o estrume do amor” (versos de “Funk melódico”, do disco Abraçaço). Não é pra mim.

Pra quem é? Não sei! Já perguntei: “Você tem certeza de que não é pra mim?”. E Caetano respondeu impaciente: “Não é pra você”. E Caetano não mente.

Um sonho”, também do , era pra Luana Piovani? Ah, isso eu não sei. Não me mete nas fofocas de seu Caetano, não. Eu já era separada dele, não é mais minha jurisprudência.

Você renega sua fase atriz, né? Rolou reprise de Vale tudoAnos dourados, coisas nas quais você atuou. Você acha mesmo que era péssima? Não justificava eu estar ali. Fui fazer teatro porque eu era uma criança hiperativa, falei disso na entrevista à Tpm [Paula esteve nas Páginas Vermelhas da Tpm, em maio de 2003]. Fiz Tablado e, como sempre digo, entrei no lugar certo pela porta errada. Aos 15 anos eu fiz o teste pra minissérie Anos dourados e até virou folclore. Quando o assunto é cachê, sempre botam um executivo pra constranger você. Falei uma quantia tal e o cara rebateu dizendo que era absurda, que eu estava fora da realidade porque era namorada do Caetano. Aí eu falei: “Então você chame a mulher do Wando, porque a mulher do Caetano vale mais”. O Wando ficou chateado.

Não era pra ficar? Eu estava falando de uma questão de mercado, não queria desqualificar o Wando. De jeito nenhum queria ofender. Era uma piada. Mas você estava perguntando o que mesmo?

negócio de ser atriz. Então, aí eu fiz Anos dourados, tinha salário, FGTS, ganhava até o peru de Natal do doutor Roberto [Marinho]. Continuei um tempo, mesmo sabendo que eu não queria. A novela da Gloria Perez [Explode coração, de 1995] foi a última que eu fiz. Eu estava grávida do Tom e foi ali que eu tive certeza de que eu queria me dedicar aos negócios, que eu não tinha vocação para as pessoas ficarem mandando: “Anda pra cá, anda pra lá”. Aí eu já tinha entrado de sócia da Natasha, veio a trilha de O quatrilho, depois vendemos 1 milhão de discos com a trilha de Lisbela, virei empresária e não precisava mais do salário da Globo.

como você começou a produzir cinema? Primeiro a Natasha começou a distribuir a Disney, fazer essa produção local que a Disney faz, de chamar produtores do lugar, dublar os filmes. E comecei a gostar de produzir trilha de cinema. Cacá Diegues chamou o Caetano para fazer a trilha de Tieta e eu produzi, vendemos discos pra caramba. O Caetano é muito bom de encomenda. Falei: “Eu quero hit, Caetano, quero algo que pegue no Carnaval da Bahia”. E ele fez “A luz de Tieta”. Foi aí que o Cacá Diegues me chamou para produzir o Orfeu. Falei: “Não sei produzir filme”. E ele falou: “Paula, não tem nada que você não saiba fazer”. Dali eu produzi 13 longas.

 

"Qual a diferença de uma maconha bem usada pra um Rivotril, que é o remédio mais tomado no país?"

 

que nos traz à questão das leis de incentivo. Antes de eu ligar o gravador, você me dizia que não vai fazer mais nada enquanto não resolver esse negócio de Lei Rouanet. Fiz parte de uma geração que conquistou as leis de incentivo, com muita propriedade, baseada em dados. Agora de repente rola uma demonização de tudo isso, da Lei Rouanet, que eu não tô entendendo. Não sou bandida, não uso Lei Rouanet pra roubar ninguém. Fiz filmes de sucesso, dei dinheiro, empreguei. A indústria cultural emprega mais que a indústria automobilística. O quanto deixa de render ao governo subsidiar automóveis? Por que só a nossa renúncia, que é mínima, é criticada? Por que quando você bota uma blusa não tem lá a plaquinha “isto aqui foi incentivado pelo governo”? Por que quando você entra num Fiat, num Chevrolet ou num Volkswagen não vem escrito “este automóvel não pagou IPI”? A gente foi pego pra cristo. A Maria Bethânia foi aprovada pra captar sei lá quanto. Aí o Ministério da Cultura te pede uma contrapartida social, e o Hermano Vianna e o Andrucha [Waddington] têm a brilhante ideia de fazer aquilo ficar livre na internet... Meu filho falava: “Mãe, o que a tia Beta fez?”. “Nada, meu filho!”

discussão era se uma artista do porte da Bethânia precisaria usar recursos públicos. Ela é uma grande artista, fala poemas como ninguém, tinha um projeto e existe uma lei que é feita pra isso. Onde está o problema? Se a Lei Rouanet não é feita pra Maria Bethânia ler poemas, pra que essa lei é feita? Pra visita do papa? Pra reformar o Palácio do Alvorada, como já foi usada? Tem que discutir? Sim, mas então vamos discutir tudo. O que não dá é dizer que somos encostados no governo. Não sou encostada em ninguém, fofo. Trabalho que nem louca. Tô cansada, sabe? Não quero mais usar isso. Não tenho mais projetos inscritos. Usar lei de incentivo hoje me dá um arrepio.

o Amarildo? Como essa história caiu em você? A gente se envolveu com a campanha do Marcelo Freixo pra prefeitura, existia essa ligação. E o Freixo, que é um cara de direitos humanos e acompanhou todo o caso, um dia chamou a gente pra ir à casa do Amarildo. Subimos de carro até determinada altura, depois a pé. Chegamos à casa, um cômodo só, em cima de um esgoto. Quando entrei na casa, onde oito pessoas moravam, tive uma visão: meu banheiro cheio de creme. Cara, como a gente é alienada. Bom, depois o Freixo me ligou e disse: “Será que você não arruma 60 pessoas, e cada uma ajuda com R$ 1.000 e a gente compra uma casa pra família do Amarildo?”. Falei: “Mole, deixa comigo”. Existe uma ridicularização das pessoas que querem ajudar. “Fulano está fazendo isso para aparecer.” Ou “lá vem a chata da Paula pedindo dinheiro”. Dane-se, tem que fazer. Conseguimos muita coisa, além do dinheiro da casa. Produzi o vídeo Somos todos Amarildo, que é importante. Mas o projeto foi atropelado por essa coisa toda das biografias. Eu virei a censora.

Você ainda fica muito irritada com essa situação? Dá aquela revolta do inocente. O comportamento do inocente é sempre indignado. A gente vai sempre viver esse sentimento de indignação de ter sido tachada como censora, porque é muito distante da nossa realidade. Quatro grandes artistas na capa da Veja sendo chamados de censores? E um monte de gente repetindo essa bobagem? O Caetano fala isto: quando o Jânio de Freitas e o Pânico estão com a mesma teoria, alguma coisa tá errada. Mas qual é o lado bom disso tudo? A Glória Perez me disse: “Paula, você vai limpar as gavetas. Vai ver quem é quem”. Aquela sensação de que todo mundo gosta de você, que a gente agrada geral, é ilusão. Por isso não vou ser igual nunca mais. Vou dar uma boa limpada na vida.

 

"Se a Lei Rouanet não é feita pra Maria Bethânia ler poemas, pra que é veita? Pra visita do papa?"

 

Paula Lavigne esteve nas Páginas Vermelhas da Tpm #21, em maio de 2003. Vai lá: http://bit.ly/1awk9Rf

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