Ele vivia triste, como triste vivem as pedras esverdeadas pelo musgo, nos muros, nas calçadas. Triste porque infeliz, como infelizes parecem todos. Só que era dife-rente. Não escondia. Não fugia. Ele era, não estava sendo. Fazia parte de sua natureza. Encarava tudo de frente. Sem esconderijos ou fantasias. Mesmo que apertado em sua angústia de ser e não poder estar diferente do que era. Havia uma doçura escondida por trás de seus olhos vermelhos. Apertados, numa expressão enigmática, chinesa, que parecia, deixava sua vida por um fio. Sofria de repente. Sem pressa, sem ter porquê. E gostava do que era. Quando todos fugiam, ele procurava. Sentia-se humano sofrendo. Parecia-lhe que a alegria não era parte integrante da condição humana, já que efêmera. Sentia-se melhor em hospitais que em lugares de entretenimento. Ali a vida parecia-lhe pulsar em um ritmo mais verdadeiro. Doentes, as pessoas lhe pareciam mais reais, verdadeiras. O resto era fuga.Eu? Prazer em conhecer Seus olhos eram secos. Dava-se melhor com os outros assim. Era capaz de compaixão e solidariedade, sofrer com e nas dores de seus iguais. Embora se sentisse roubado, era feliz com sua infelicidade. Buscava mais a solidão. As pessoas, paradoxalmente, ao tempo que o fascinavam, cansavam. Não eram como ele. Sentia-se com cem anos de idade e os outros com cinco anos. Eram infantis em suas buscas desesperadas de fugir à solidão. Ele adorava estar consigo, só. Seu silêncio era cheio de vozes íntimas que o satisfaziam. Ninguém o entendia e assim é que ele gostava. Não tinha a menor ilusão de ser entendido. Era tão óbvio que chegava a saltar para dentro de qualquer um que o quisesse compreender. Mas ele temia perder-se caso fosse explicado. Todos que o circundavam percebiam sua densidade. Mesmo não sabendo como aproximarem-se, ficaram por perto, para o caso de ele dizer o que jamais diria. Era muito calmo em sua tristeza. Não expressava a fúria que lhe ia por dentro. A raiva acumulada contra tudo aquilo. Por que tinha que ser assim? Perguntava-se. Mas nem se dava ao trabalho de responder, era vasto demais. Sua base de poder era sua fragilidade. Sua permanente instabilidade.Um blues de Clapton Sofria sem suspiros, sem dor. Poderia-se dizer que ele sofria sem sofrer. Apenas sofria de uma tristeza nostálgica que não precisava de sentido ou motivo. Pelo menos não para ele. Sua existência consistia de conteúdos que lembravam dias de chuva torrencial. Assim coisa tropical, floresta úmida de verde escurecida. Por dentro era um livro de infinitas páginas. Assim cheio de uma substância palpável, algo feito de concreto e água, de mar e encantamento. Sim, oceano, desses pacíficos, atlânticos e índicos. Triste como um blues de Eric Clapton. Mesmo chorando sem lágrimas, apenas angústia muito clara, cantada como cantor negro, cego de olhos e longo na voz solta de sua boca. Garganta rouca, sem perdão por não haver o que ser perdoado. Talvez as primeiras composições dos Stones. Jagger a gritar scorpions e devlins. Qualquer coisa a chocar e bater por dentro. Ao tempo em ritual apaixonado, assim Nirvana e Cobain in acústico. Quase o cigarro após o café.Sofro, logo existo E era amado. Ó sim, ele era amado, principalmente por si mesmo. Particularmente porque não havia mentiras em si e para si. Estava quase encostado ao paredão que existia, no limite. O mistério o circundava. Sim, era mesmo o limite, sem máscaras, sem capas que encobrissem outras capas, infinitamente. O herói, o irreal, embora totalmente inverossímil. Para quase todos ele representava o perigo. Como uma cobra enrodilhada. Embora ele fosse tão manso como uma noite escura. Violentamente manso, de tanto vagar e pensar. Era uma longa busca, mas não de encontrar e sim sedimentar, acumular e consistir a soma de si mesmo. Uma cor violeta e seu perfume no ar... Ele era o céu e todos os lugares também, era só fechar os olhos. Era um sino a badalar horas intermináveis, esparramando melancolia no ar. Havia um fogo, um crepitar, longo e avermelhado. Todos temiam o fogo. Ele o amava. Era digno o fogo em sua necessidade. A sua tristeza era cheia de paz. Uma paz como um pecado original, parecido com versos de Rimbaud e as flores do mal. Sim, ele era triste, imensamente triste como flores murchando num vaso de cristal. Triste, mas tão triste, que nem existia...*Luiz A. Mendes, 49,vive corajosamente atrás das grades há 29 anos. Seu e-mail é: mendes@revistatrip.com.brO nome da dor por Henrique Goldman* A Debi, minha mulher, estava grávida e na semana passada sofreu um aborto natural. Enquanto o feto crescia no ventre dela, ele passava também a existir no meu afeto e na minha fantasia. Já estava muito apaixonado pela criança antes mesmo de conhecê-la. Será isso amor incondicional? É muito difícil descrever o que sinto a respeito de um filho ou uma filha que morreu antes de nascer. Sinto dor, uma dor indefinida, sem nome e sem rosto como a criança que não nasceu. Minha mulher está sofrendo essa perda muito mais do que eu. Pra ela é uma perda tangível, até mesmo na dor física. Ela entende melhor quando e por que chora. Pra mim tem só um puta frio e um som incompreensível que ecoa no escuro.Muito além do Oriente O que sinto é muito interno, muito íntimo e só. Resisti muito até me convencer de que queria falar disso aqui nesta coluna. Não queria banalizar a dor gritando em praça pública. Tentei me refugiar escrevendo sobre o Oriente Médio. A calamidade que aflige dois povos inteiros é com certeza muito mais importante do que o meu drama pessoal. Mas não consegui passar do primeiro parágrafo. Moro longe da minha terra e da minha língua. Todos os meses uso esta página para me encontrar com o Brasil. Nas palavras escritas espero encontrar e transmitir um pouco de luz. Kafka dizia que escrever é como rezar. Um dos mais fascinantes paradoxos da vida é que é nas profundezas da nossa intimidade que nós nos encontramos com a humanidade. Porque por dentro, por trás da máscara dos nossos rostos, somos praticamente todos idênticos. A cor da nossa pele, nossas neuroses específicas, nossas culturas e todo o pouco que nos distingue um dos outros são nada se comparados com tudo o que de humano temos em comum. Palestinos, israelenses ou corinthianos, hoje, ontem e amanhã também sentiram ou sentirão a dor de perdas surdas e sem cor. Somos sós - mas não somos sós.Arbítrio e fatalidade No passado, duas ex-namoradas minhas abortaram. Foram experiências dolorosas, escolhas que tive de aceitar, mas que não teria feito - não por moralismo ou religião - mas porque acho que a vida vale muito a pena. Nunca deixei de imaginar como teriam sido esses filhos ou filhas, que tipo de gente eles ou elas seriam. Trinta por cento das mulheres têm aborto natural durante os primeiros três meses de gravidez. E os médicos ficam babando. Não entendem quase nada do que acontece. São pobres meninos vestidos de branco brincando de cabra-cega. A explicação científica do que aconteceu é a seguinte: o feto provavelmente tinha alguma anomalia genética. Um mecanismo de seleção natural entra em ação e elimina o feto. Mas essa explicação é muito superficial. Na cosmovisão dos índios Navajos da América do Norte, o universo está apoiado sobre uma tartaruga. Essa tartaruga primordial então seria a base e a explicação da existência de tudo. Mas essa mesma cosmovisão indaga: e a tartaruga, sobre o que ela se apóia? Sobre outra tartaruga? E esta outra tartaruga, sobre o que se apóia? Sobre uma esfiha do Habib's? Tartaruga chapada As camadas de mistério são infinitas e nós homens somos muito burros. A ciência, essa nossa grandiosa capacidade de compreensão, não é nada mais do que uma tartaruga chapada. Tudo isso me leva para os braços de Deus. Mas não um desses deuses capengas das religiões, em nome dos quais os homens se matam. Me sinto no colo aconchegante do Deus da vida, Deus do universo em geral. Para esse Deus, basta viver para que os destinos se realizem, não adianta rezar ou construir templos. É para ele que eu um dia quero oferecer meu filho.
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