Sobre maconha, ciência e preconceito
O neurocientista Fabrício Pamplona defende que a ciência não é tão objetiva quanto parece
Estava conversando com um amigo sobre o potencial terapêutico da cannabis. Papo vai, papo vem, ele me diz: "Gosto dos seus textos, mas você não deveria ser mais imparcial?". Respondi firme: "Não". Ele se assustou: "Ué, um cientista não deve ser imparcial?". Bela pergunta – aliás, recorrente nas rodinhas científicas. E a questão me levou a uma nova reflexão, particularmente quando falamos de divulgação científica e de escrever para o público.
Esta é uma conversa longa, densa e que nos leva à discussão da epistemologia da ciência. Vou tentar, então, fazer uma versão mais curta. Mas, antes, você deve estar se perguntando: o que é epistemologia? De forma resumida, é a teoria do pensar científico. Ou seja, estuda o conhecimento científico e como ele é obtido pelo método científico – é o que chamamos de meta-ciência. Os estudiosos debatem com profundidade o grau de confiança que se tem nas descobertas científicas, e o ponto-chave da discussão, sob a ótica da epistemologia, é a busca pela "verdade", e como ela é impactada pelo "juízo/julgamento" e pelas "crenças" do autor da pesquisa.
Para você, o importante é entender que a ciência não é tão objetiva quanto parece e que as respostas obtidas em um experimento sofrem, sim, a influência do pesquisador. Assim como na vida, em que as conclusões que tiramos são inevitavelmente interpretativas – portanto, carregam nossa perspectiva –, a ideia de um experimentador distante e neutro também é um idealismo.
Essa discussão é bastante pertinente nos dias atuais, quando falamos tanto sobre ideologias e em que correntes políticas opostas se acusam mutuamente de assumirem posturas ideológicas. O que soa curioso, já que, para mim, o próprio posicionamento político é, por definição, uma ideologia. Como diria minha mãe, "é o sujo falando do mal lavado".
Quando aquele amigo me perguntou se meus textos não deveriam ser neutros já que, afinal, sou cientista, devolvi: "Meu caro, você não é flamenguista?". Ele estranhou, mas respondeu que sim, ao que continuei: "E, quando você discute futebol, consegue fazer isso sem ser flamenguista?". Pois é. Na ciência, como em qualquer área do conhecimento, é a mesma coisa: a perspectiva do narrador é indissociável da narrativa.
E, antes que me joguem pedras, vejam lá: não estou falando que é razoável mentir, distorcer dados, forjar conclusões. Isso é obviamente execrável. Quero dizer que na interpretação dos dados – que é basicamente construir uma narrativa coerente, lógica e linear dentro de uma linha de pensamento – a perspectiva do cientista causa impacto.
“A evidência sozinha não gera a conclusão. A conclusão é sempre uma interpretação dos fatos”
Fabrício Pamplona
Um bom exemplo é a máxima do copo preenchido até a metade: ele está meio cheio ou meio vazio? É difícil analisar sem influência ideológica. A evidência sozinha não gera a conclusão; a conclusão é sempre uma interpretação dos fatos.
A boa ciência é feita com o máximo de neutralidade no que diz respeito a estudo, coleta e análise dos dados; ela vive em uma busca incessante pela verdade e grandes esforços são empregados para aproximá-la cada vez mais desse Santo Graal com evidências sólidas. Ainda assim, quando passamos para a camada de interpretação dos experimentos, há uma intersecção importante entre nossas crenças e a realidade objetiva (a verdade).
“O conhecimento é fração da intersecção entre a verdade e as nossas crenças que pode ser justificada”
Fabrício Pamplona
Como as crenças são construídas a partir de nossas múltiplas vivências, formamos uma perspectiva particular e única sobre o tema. Nesse sentido, o conhecimento é a fração da intersecção entre realidade e crenças pessoais validada a partir de evidências. E isso vale tanto para o autor quanto para o leitor de um estudo científico.
Recentemente, tivemos o exemplo de um fenômeno perigoso e recorrente: quando uma conclusão é tirada apenas a partir da perspectiva individual. Em reportagem d'O Globo, ficamos sabendo que o Terceiro levantamento nacional sobre o uso de drogas, estudo realizado pela Fiocruz com 16 mil voluntários a fim de definir um mapa do consumo de substâncias lícitas e ilícitas no Brasil, foi engavetado por ordem de um ministro, que justificou: “Não confio nas pesquisas da Fiocruz. É óbvio para a população que há uma epidemia de drogas. Andei pelas ruas de Copacabana e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de violência que tem a ver com as drogas, não entendo mais nada. Temos que nos basear em evidências”.
O que o ministro está dizendo nas entrelinhas é: “O resultado não reflete minha experiência e minha perspectiva sobre o tema, portanto, não pode ser real”. E ainda termina com: “Temos que nos basear em evidências”. Parece piada. Claro, toda pesquisa tem sua fração de desvio da realidade, mas quais as evidências com maior chance de refletirem a verdade: a pesquisa realizada com rigor científico e estatístico para definição de amostragem populacional ou a opinião de um único indivíduo?
Quando falamos sobre um tema polêmico como a maconha, é inevitável que a discussão seja carregada de conceitos anteriores (ou preconceitos). Mas o conhecimento que embasa uma opinião não é mera informação: ele interage com as experiências prévias do indivíduo e, portanto, traz também sua perspectiva única. No caso do cientista, o cuidado primordial deve ser com o selo do "comprovado cientificamente", já que sua figura confere respaldo e peso para qualquer assunto. É uma responsabilidade imensa. Assim como acontece com qualquer pessoa pública. Por isso, é enormemente irresponsável da parte de uma autoridade questionar uma pesquisa feita por uma das instituições mais sérias do país, sem qualquer embasamento além da própria opinião.
E, infelizmente, não é novidade. Houve um episódio parecido nos anos 1930, quando Harry Anslinger, do serviço de narcóticos americano, iniciou sua famosa "cruzada contras as drogas". Vale destacar o seguinte trecho da página na Wikipedia: “A Conferência da Maconha foi realizada em 5 de dezembro de 1938, quando Anslinger convocou o departamento de Tesouro americano, assim como médicos renomados do país, para formar opiniões sobre a legalidade e a viabilidade do comércio do cânhamo. Os deputados votaram pela proibição do cultivo, da venda e do uso da Cannabis, sem levar em conta as pesquisas que afirmavam que a substância era segura. Proibiu-se não apenas a droga, mas a planta". Engraçado (e trágico) como a história se repete, não é?
A ideologia influencia nosso pensamento e nossa comunicação, seja qual for nosso posicionamento, e a imparcialidade é ilusória. No geral, a defesa de uma neutralidade é usada para recriminar e invalidar a ideologia do outro. Por isso, para uma discussão produtiva, penso que precisamos de uma boa dose de empatia – a busca de um espaço de entendimento passa por reconhecer as experiências dos demais.
Então, vamos ser responsáveis e nos basear nas melhores evidências possíveis ao discutirmos a maconha. Seja qual for o tema – efeitos adversos, potenciais, custo-benefício clínico etc. –, a única certeza, por ora, é que surgirão opiniões diferentes e a polêmica será instaurada. Mas ainda acredito que exista espaço para focarmos no que interessa: ajudar as pessoas, sejam elas usuárias recreativas, dependentes químicos intratáveis ou pacientes de doenças sem alternativa. Todo o resto é secundário.
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