Coração suburbano
A luta diária de Anderson França para melhorar a vida de outros invisíveis, como ele foi um dia
Quem quer ouvir a voz do morro? A julgar pelo que diz o personagem destas Páginas Negras, ninguém. Desde que os posts cáusticos e irreverentes do carioca Anderson França, o Dinho, extrapolaram seu perfil no Facebook para ganhar as páginas do principal grupo editorial do país, a Companhia das Letras, não se fala de outra coisa – de Madureira, na zona norte, ao Leblon, na zona sul. Seu primeiro livro de crônicas, Rio em shamas (Objetiva, 2016), é finalista do Prêmio Jabuti 2017 e recentemente ganhou o aval do companheiro de ofício Xico Sá, para quem a obra “reafirma a crônica como o grande gênero descobridor do país”.
De fato é um Brasil nu, multifacetado e contraditório que emerge da visão desse descendente de retirantes nordestinos de 42 anos, evangélico e bissexual, que não poupa de sua ironia a própria Igreja, a truculenta polícia carioca, o corrompido poder fluminense, a elite econômica “boba, imatura” do país e o “socialismo branco do Leblon”. Com tanta munição disparada quase sempre do teclado de seu celular, não é de se estranhar que muita gente terminasse #chatiada com a verve de Anderson. Da direita que quer proibir o funk, “como fez no passado com o samba e o candomblé e tudo o que deriva do povo como cultura”, até a esquerda, “intelectual demais para ouvir trabalhador”.
O incômodo com essa voz que conta a vida no subúrbio e defende o direito de mulheres, gays e transexuais chegou a tal ponto que sua cabeça foi posta a prêmio por grupos racistas – e Anderson foi obrigado a participar dos debates da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2017 por videoconferência. Esse ex-porteiro, camelô, marmiteiro e vendedor de planos de saúde, no entanto, não gosta de ser chamado de escritor. “Só uso 10% do meu tempo escrevendo. Em 90% dele, trabalho tentando fomentar uma cultura empreendedora nas favelas”, diz. Foi assim que ele fundou, entre outras iniciativas, a Universidade da Correria (UC) e a escola de culinária A Pequena Cozinha, a última em parceria com Suelen Masiero, sua companheira há quatro anos.
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Na entrevista a seguir, a voz áspera e bem-humorada desse guerreiro dos morros cariocas – para quem quiser de fato ouvir.
Trip. Depois de ter atravessado a barreira social da periferia para a zona sul, o que vê de bom e de ruim em sua infância em Madureira?
Anderson França. A coisa mais interessante da minha infância foi o contato com o território, com a terra. Nasci em Madureira, mas em 1979 fui para Cavalcanti, que era um bairro-dormitório distante do centro do Rio de Janeiro com ordenações sociais muito simples. Então a gente ficava basicamente na rua. Como não tínhamos dinheiro para ter brinquedo, a liberdade era o brinquedo. Todo cachorro, todo gato, era nosso. Eu me lembro do cheiro da amendoeira, árvore muito presente no subúrbio do Rio. Chegava a virada de estação e a gente sentava e ficava olhando as folhas caírem, corria atrás de bicho, ouvia o silêncio, sentia o vento. Era essa a minha conexão com esse território afetivo que só mais tarde passei a chamar de subúrbio. Apesar da escassez que a gente vivia, como criança a gente não tinha a lente da dor. Alguém coloca essa lente depois. É o que me faz pensar hoje nas crianças que moram no Complexo do Alemão, na Vila Cruzeiro, no Complexo da Maré, que dois dias atrás foram fotografadas numa escola municipal, todas deitadas no chão se protegendo de três horas de tiros de arma longa. O Rio é a única cidade do país em que a violência letal se dá por arma longa. Estou falando de fuzil, metralhadora e submetralhadora. O que não acontece em São Paulo, por exemplo, onde a violência letal se dá por 38, 45, pistola 9 milímetros. No Rio, alguém colocou uma lente nessas crianças, que tiveram uma visão antecipada do sofrimento. Agora elas veem precocemente o que é a favela.
“O Rio é a única cidade do país em que a violência letal se dá por arma longa. Estou falando de fuzil, metralhadora, submetralhadora”
O subúrbio de hoje é muito distinto do que você conheceu? Eu acredito que já existia violência no subúrbio. A zona norte, a zona oeste e a baixada são regiões de abandono de políticas públicas de segurança desde 1977, quando o Rio se integra ao estado da Guanabara e perde a chamada bitributação por ser capital do país. É quando a renda do tesouro estadual vai para o chão e começa o abandono. Tanto que, até esse momento, Cascadura era um bairro muito formoso, Madureira era bonito, o Méier era incrível. Grandes artistas moraram por lá. Aracy de Almeida viveu no bairro do Encantado, transitou por Cascadura e andava de trem – era chamada a Dama da Central. Pixinguinha e Dolores Duran moraram em Piedade. Nelson Rodrigues morou na Aldeia Campista. Fernanda Montenegro nasceu no Méier. Estamos falando de um Rio em que a estrutura urbana geral era menos precária do que é hoje. Agora, como resultado desses 40 anos de abandono, forças territoriais passaram a disputar o controle: o crime organizado e o Estado, organizado como milícia. Sem contar as facções: Comando Vermelho, Terceiro Comando, Terceiro Comando Puro, Amigos dos Amigos e agora o PCC, que chegou na cidade. Então é verdadeira aquela música do Fausto Fawcett, cantada pela Fernanda Abreu, que pergunta: “Quem é o dono desse beco? Quem é o dono dessa rua? De quem é esse lugar?”. Essa é a lógica no Rio: você entra em lugares que pertencem a pessoas. “Rio 40 graus” é um hino da cidade, uma leitura antropológica perfeita do Rio.
Seus pais vieram para o Rio quando? Minha mãe veio em 1968. Minha família sai de Caruaru e Gravatá e vai para Recife. A minha mãe, a minha avó e as minhas irmãs são as verdadeiras presenças criadoras e educadoras, já que a ausência do pai é muito comum na periferia. Como elas chegam fugindo daquele estado de pobreza no Nordeste, aceitam trabalhar em qualquer coisa aqui. E o nordestino, naquele momento, não tem vínculos com a cidade. Então eu cresci numa casa em que a gente não ia para a Lapa sambar ou tomar cerveja. Porque aquilo não é o nosso lugar. Não só porque não tínhamos dinheiro – porque não tínhamos –, mas porque aquilo não era nosso. Também não íamos para o Pão do Açúcar ou o Corcovado. Aquilo era “do carioca”. Quando eu fui pela primeira vez à Quinta da Boa Vista, a gente teve que tomar banho, se arrumar, foi um evento. E para ir num parque que fica na zona norte. O nordestino ainda hoje passa por isso, ele não é uma pessoa que se apropria da cidade. Hoje, um grande núcleo de nordestinos mora na Rocinha, na Nova Holanda e no Parque União, no Complexo da Maré, e sai de casa para o trabalho e do trabalho para a casa nas favelas. O que eles entendem por circulação é ir ao restaurante que fica dentro da Nova Holanda ou ir para a igreja evangélica. Então, a vida social desse cara é resolvida dentro da própria favela. Se ele vai a um shopping da zona norte, se sente desconfortável. E nem entra num shopping da zona sul. Então, a nossa diversão muitas vezes era ir com minha mãe a Madureira comprar alguma coisa ou comer um churrasquinho. A primeira vez que fui ao Leblon já tinha 21 anos – para você ter uma ideia de como o Rio é uma cidade segregada.
E como você extrapolou os limites de Madureira? Teve uma época, quando meu pai ainda morava com a gente e não tinha muito emprego certo, que ele começou a dever aluguel. E a gente sempre recebia carta de despejo. Fizemos um tour pela zona norte, indo de casa em casa porque meu pai não pagava ninguém e as pessoas iam despejando a gente. Foi uma situação muito traumática, muito triste, mas que fez com que eu descobrisse um pouco mais da zona norte. A minha pesquisa de campo da zona norte foi dentro do caminhão de mudança.
Tantas mudanças atrapalharam a sua vida escolar? Eu tive problemas no final do que se chamava primeiro grau, hoje fundamental. Comecei a trabalhar com a minha mãe na rua vendendo de tudo, roupa, bolsa, arranjo de flor, calcinha e sutiã... Ela vendia para outras nordestinas que trabalhavam nos supermercados como caixas e empacotadoras. E eu ajudava. Então, entrei no ensino médio com muita dificuldade de aprendizado.
E como começou a escrever? Eu já sabia ler, porque aí entra a minha avó, que me levava na igreja e a função da Igreja batista também era educacional. Existe uma coisa chamada Escola Bíblica Dominical, criada para ensinar as pessoas a ler a partir da Bíblia. Eles matam dois coelhos com uma cajadada só: catequizam o cara e ensinam a ler.
A Bíblia é uma tremenda narrativa, né? É uma narrativa incrível. O texto bíblico abriu algumas portas para mim, sobretudo de abstração. Quando, por exemplo, a gente lia o Velho Testamento, Deus surge no meio de uma árvore e pergunta a Moisés o que ele tem na mão. Aí Moisés: “É um cajado”. A gente lia isso e era obrigado a abstrair. Como assim Deus fala? Se ele é onisciente, por que está perguntando o que Moisés tem na mão? Essa necessidade de fantasia, que talvez uma leitura de Harry Potter poderia me proporcionar, foi a Bíblia que supriu.
A cultura protestante deixou outras heranças em você? A culpa, né? Tinha uma música para crianças na igreja que ensinava sobre pecado. Em vez de você ensinar a criança sobre o amor, a tolerância, a diversidade, ensinava sobre o pecado. A letra da música era: “Cuidado, olhinho, no que vê, cuidado, mãozinha, no que pega. O Salvador do Céu está olhando para você”. Você cresce já na paranoia [risos]. Mas aí eu entro no ensino médio e conheço uma professora que diz para mim que eu escrevia muito bem. Ela se chamava Mildred. Eu não entendia nada de substantivo, adjetivo, oração coordenada assindética... esses nomes todos eram opressores pra mim, e até hoje não sei usar crase. Então passo o ensino médio num conflito de adolescente, de entender o mundo, entender meu corpo. E a escassez começa a fazer presença, porque é na adolescência que a gente tem as festas, os bailes, os tênis, as roupas, as marcas. Então eu ia para o baile do Viaduto de Madureira ver as pessoas dançarem. Por isso as minhas referências estéticas não vieram da cultura branca. Eram os pretos da escola de samba, do jogo do bicho, que usavam cordão com sapato bicolor e calça com vinco. O [traficante] Escadinha era um homem lindo, cheio de estilo.
“Quando eu tinha que montar algum evento da Universidade da Correria na Maré, gostava de fechar acordos com o tráfico, não com a polícia”
Você conviveu com ele? Eu o vi pela primeira vez quando ele morava no pé do Juramento. E a gente presenciou aquele momento em que o tráfico começou a ordenar o fechamento de lojas. Quem estabeleceu isso foi o Escadinha, inclusive proteger o comerciante e o morador quando iam descer tiro na polícia. Naquele tempo o traficante ainda era uma cria do morro. O pai do Escadinha foi líder comunitário. Então, quando se torna rico, a primeira coisa que ele faz – que é criticada pelas pessoas que moram fora da favela e eu dou razão até certo ponto – é distribuir remédio, bola, brinquedo, leite, botijão de gás para a comunidade. Eu tomei leite do Escadinha. Às vezes eu me pergunto se ele, como personagem, não conseguiu realizar, através do crime, o que o pai gostaria de ter feito.
Bezerra da Silva é um grande ídolo seu. Também chegou a conhecê-lo? Infelizmente não, conheci o irmão dele. Para mim, Bezerra é a versão malandra da Bíblia. Ele fala que o malandro é um sujeito homem, no sentido de alguém que tem palavra. O homem com palavra, o homem da verdade, que tem conduta ética. Então eu lia a Bíblia e ouvia Bezerra, que foi quase um coevangelizador meu – apesar de ser do candomblé. Ele me ajudou a entender a ética da favela, que é a do olho no olho, de ter uma palavra só, o que a gente chama de papo reto. Quando eu tinha que montar algum evento da Universidade da Correria na favela da Maré, gostava de fechar acordos com o tráfico, não com a polícia. Porque a polícia não tem palavra, o traficante tem. Se ele disser “não vou mexer com o seu trabalho”, ele não mexe. Em agosto de 2013, por exemplo, eu organizei um TEDx no Complexo da Maré em que a gente levou o Fernando Henrique Cardoso. Foi o único realizado até hoje numa favela no Rio de Janeiro e acho que no Brasil. Compareceram o ex-presidente, ativistas do Mídia Ninja, o sociólogo Tulio Custódio, a jornalista Cecília Oliveira, do The Intercept. Eu não tinha nada, só uma equipe de voluntários e R$ 4.500 para montar o evento, mais as passagens que a Gol deu para trazer o FHC. E fui conversar com o tráfico para avisar que ia ter uma palestra ali. Eles perguntaram até que horas íamos ficar e disseram: “Tá tranquilo. A gente sobe a nossa boca um pouco e pronto”. Mano, veio Polícia Federal escoltando o ex-presidente, veio policial da UPP falar no evento, e não aconteceu nenhum incidente. O único problema foi que o voluntário que se ofereceu para gravar os discursos esqueceu de pôr cartão na câmera e não ficamos com nenhum registro. Mas temos fotos para comprovar [risos].
Essa “ética da bandidagem” ainda é comum no tráfico hoje? Sei que isso para vocês pode soar de uma forma muito negativa, mas não é. Estou dizendo que existe no cara da periferia – ou pelo menos existia – uma ética prévia ao fato de ser traficante. É claro que hoje, com o desmantelamento das cabeças do tráfico no Rio, muitos jovens que estão assumindo o negócio têm menos compromisso. A gente tem que fazer os devidos filtros, porque esta semana mesmo teve um estupro coletivo no Morro da Barão, que mostra que aqueles traficantes não têm mais nenhuma vinculação com o território, apenas com o comércio.
A Rocinha hoje está enfrentando uma situação tão complicada que o traficante Nem, que comandou a favela em uma época de relativa tranquilidade e hoje está preso, se ofereceu para pacificá-la. Sinal dos tempos? É realmente incrível isso. A história do Nem é a nova grande história do tráfico no Rio. Sou a fim de escrever um livro sobre a história do Escadinha como esse que saiu sobre o Nem [O Dono do morro, do jornalista britânico Misha Glenny]. São os desafios que a gente como povo brasileiro se coloca. A gente pede para passar por essas situações que, a princípio, parecem não fazer sentido. Mas o que não faz sentido é o Temer, é Gilmar Mendes, é o [ministro da Fazenda Henrique] Meirelles, o ovo da serpente desse governo, já querendo se candidatar para a sucessão. Faz sentido o Nem vir e falar: “Vocês estão fazendo delação premiada com o Eduardo Cunha, podem fazer comigo também”. Mas aí imagina quem poderia aparecer por trás do tráfico na delação? Um grande empresário, um banqueiro, um senador da República...
Leis como a que quer criminalizar o funk fazem sentido, por exemplo? A resolução 1.013, que tenta criminalizar o funk no Brasil, é a repetição do que aconteceu com o samba, com o candomblé. A origem da intolerância brasileira é o racismo. Desde o momento em que você traz o primeiro africano para cá e dá a primeira chicotada nele. A partir daí, tudo o que deriva desse povo você vai criminalizar como cultura. E esse preconceito é tão forte que se manifesta até na periferia. O fato de um traficante evangélico recentemente ter invadido um terreiro e obrigado as pessoas a destruírem o lugar mostra o nível de esquizofrenia e de racismo em que estamos mergulhados.
“Traficante evangélico” não é uma contradição em termos? Pois então. O líder do tráfico hoje no Morro do Dendê, se não estou enganado, ainda é o Fernando Guarabu, que se declara crente e lê a Bíblia. Mas ele, por vir de orientação neopentecostal, entende que Deus é só o Deus dele. Hoje, o Bope é evangélico, o traficante é evangélico, o [atual prefeito do Rio] Marcelo Crivella é evangélico e o [ex-presidente da Câmara dos Deputados, preso pela Lava Jato] Eduardo Cunha é evangélico. Está entendendo? Nós estamos passando por um momento de disputa da narrativa evangélica neste país que pode gerar um novo Estado de idade medieval, um Estado teocrático evangélico. Quando Silas Malafaia e o pastor Feliciano chegam no púlpito e dizem as coisas que dizem sobre o país, a política e outras religiões, estão ferindo o primeiro chamado deles como sacerdotes.
Por quê? Jesus veio exatamente para não se envolver nas questões mundanas e políticas. Quando Pilatos pergunta “você é rei de onde?” e Jesus responde “sou rei de um outro reino” é isso que quer dizer. Ou quando diz “dai a César o que é de César”: ele se exclui disso. O problema é que religião e Estado sempre andaram juntos numa relação de poder e opressão. Mas Jesus veio justamente dizer que Deus não precisa mais dessa estrutura sacerdotal e que o reino de Deus é horizontal, não é um mandando e todos ouvindo. Isso era muito disruptivo e retirava o privilégio daqueles caras.
Para você, que é crente, Malafaia e Feliciano entendem a Bíblia de maneira distorcida? Eles seriam os que matariam Jesus hoje. O que Malafaia e Feliciano pretendem é manter os próprios privilégios. A Igreja evangélica precisa ter coragem de se discutir novamente. Na doutrina não existe isso de você pagar um dízimo e vir Deus e fazer descer um carro no quintal da sua casa. Eles atribuem a Deus uma coisa que foi a pessoa que fez. Foi você que ficou mais centrado, trabalhou e conseguiu comprar um carro. Outro exemplo: a Andressa Urach, que foi Miss Bumbum, teve um problema de saúde, se converteu e agora trabalha com culinária, gastronomia. Para muitas pessoas, inclusive ela própria, foi a Pombagira que a levou a fazer aquelas coisas, então ela encontrou Jesus e virou uma mulher de bem. Perceba: nem a Pombagira, nem Jesus. Foi ela mesma, sujeito, que quis ser Miss Bumbum e é ela mesma, sujeito, quem decidiu agora virar chef de cozinha. Isso é lúcido dentro do protestantismo, seu maior legado é a livre consciência. Sou protestante de uma igreja calvinista reformada e não existe papa nem pastor de igreja que diga pra mim o que eu devo fazer e como devo entender a Bíblia.
“A verdade é que a esquerda perdeu as eleições para o Crivella porque não trata o trabalhador como a igreja trata”
Além da Bíblia e de Bezerra da Silva, o que mais ajudou a formar a visão de mundo que aparece nas suas crônicas? Na verdade menos li do que ouvi. Muita música. E a televisão não me deixou burro demais: eu amava Trapalhões, vi a novela fantástica Saramandaia, de Dias Gomes, pornochanchadas nacionais. Eram as narrativas a que eu tinha acesso. Fiz a limonada com os limões que tinha. Nosso país é contraditório. O brasileiro é aquele sujeito nu que quer se pensar europeu, vestido. Tenta passar uma impressão de civilidade, mas na verdade não é nada disso. São Paulo, por exemplo, se considera muito americana, mas é um lugar onde vejo o Brasil o tempo inteiro. Eu saio para passear no centro e vejo o Brasil. Vou tomar um cafezinho e quem me serve é o Brasil. Vou pedir um PF e quem cozinhou foi o Brasil. É uma cidade incrível e que ao mesmo tempo nega a sua brasilidade.
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Você trabalhou três anos como porteiro, na pele desse “Brasil” que está falando. Como foi a experiência? Dos 18 aos 21 anos. Foi uma experiência solitária. O que me chamava a atenção era o fato de que ninguém falava comigo, ninguém me via. São profissões em que você se sente invisível. Nessa época, minha única diversão era pegar o trem do subúrbio e circular sem destino, ouvindo Racionais MC’s. Para mim e para todos daquele período, nos anos 90, os Racionais explicaram o Brasil na nossa língua. E me trouxeram todo um repertório, um verdadeiro estudo de brasilidade.
Por que você costuma dizer que o Brasil é uma grande filial do Rio de Janeiro? O Rio é mesmo, voltando à música da Fernanda Abreu, a capital do melhor e do pior do Brasil. É o ponto de onde viemos. A corrupção nasceu aqui, assim como o PMDB é uma invenção nossa. Sediamos os Jogos Olímpicos e, um ano depois, a cidade está quebrada. Temos um governador preso e outro que se segura no cargo para não ser preso também. Como não pensar que o Brasil é uma filial dessa estrutura terrível que nós construímos no Rio, que foi a própria República?
Suas crônicas aliam crítica social com um senso de humor afiado. É o segredo do sucesso delas? É muito melhor ouvir um humorista cínico do que um ativista raivoso. Quando comecei a escrever em minha página no Facebook, o tema mais comum era segurança pública. Criticava o governo, a polícia, a inexistência de uma política pública de saúde para os entorpecentes. E quando eu queria variar um pouco, me divertia escrevendo sobre o Leblon. Por exemplo, zoando o fato de que os moradores da zona sul compram numa “boutique de carnes”, enquanto poderiam adquirir a mesma coisa no mercadão de Madureira [risos]. Essa coisa da elite econômica brasileira boba, imatura. Acho que a zona sul começou a me ouvir porque eu mexi com a vaidade dela. Dizendo “esse vinho que vocês bebem é uma bobagem. Essa ioga que vocês fazem também. Até esse socialismo que alguns pregam é uma bobagem”.
Você tocou num ponto interessante: não é só a elite rica que se incomoda com o que você escreve, mas também uma certa elite cultural de esquerda. Por quê? Quando falo do “socialismo branco do Leblon” eles ficam reativos e acham que estou no lado oposto. Ou quando digo que Marcelo Freixo faria melhor indo para o Senado defender as pautas dele de regulação de entorpecentes do que virar prefeito para nomear o presidente da empresa de limpeza urbana. Defendo isso simplesmente porque não acho que essa seja a vocação do Freixo. Aí, quando eu manifesto a minha opinião, a esquerda em vez de pensar “ah, tem uma crítica de um suburbano aqui, vamos ouvir”, vai lá e me desqualifica. Já chegaram a dizer: “Você, Anderson, é o responsável pela eleição do Crivella”. Como se eu fosse capaz de ir lá e nomear o prefeito.
A que você atribui a vitória do Crivella? A verdade é que a esquerda perdeu as eleições para o Crivella porque não trata o trabalhador como a Igreja trata. Não dá pertencimento, não coloca o trabalhador na centralidade. Que é a estratégia que os pentecostais têm para atrair os mais pobres, dizendo: “Fala que eu te escuto”. A gente na periferia quer que as pessoas nos ouçam. E a Igreja Universal – na qual eu não voto e não defendo – faz isso há muito tempo. Para mim, o Crivella não poderia nem estar em cargo público. Mas o que eles propõem a esquerda não faz. A esquerda é muito intelectual para ouvir trabalhador. A verdadeira revolução é colocar o povo na centralidade econômica e política. Mas não, a revolução tem que ser a que a esquerda branca diz qual é. É a feminista branca pichando o muro do banheiro, escrevendo lá “machos não sei o quê”, mas quem vai limpar aquilo é a servente preta. Está entendendo? Não é o discurso que está errado, é a falta de escuta.
Você já se definiu como um “fruto do governo Lula”. Como vê a crise ética que envolveu o PT e o ex-presidente? Sou, sim, fruto das políticas do governo Lula. E que fruto é esse? Um sujeito que teve acesso à educação crítica e que pode, inclusive, criticar quem o gerou. Isso é crítica, livre. Penso que Lula passou. Ainda não dá para falar sobre 2018, mas as opções que estão colocadas representam retrocesso. A dele peca por falta de pertinência. A de Bolsonaro, por falta de lucidez.
E sobre Dilma Rousseff? Entendo que Dilma está dentro do contexto político de Lula e do que foi o PT nos últimos anos. Mas com relação a ela há um componente que não se relaciona necessariamente com a política, que é uma reação de políticos homens e machistas. Gosto de usar essa lente não como valor absoluto, mas como uma das lentes necessárias para explicar o que aconteceu com a Dilma. Porque, no final das contas, se você pensar bem, só ela foi afastada, só ela pagou o preço até agora. Então há aí um componente sério de sexismo, por mais que ela possa estar envolvida em qualquer outra situação.
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Você diz que é mais empreendedor social do que escritor. E que “a direita romantiza o empreendedorismo como a esquerda romantiza o trabalhador”. O que quer dizer? Que a questão não é livre-iniciativa versus carteira assinada. Ambas podem ser positivas ou mera ilusão. É por isso que tenho pensado em renomear o que a gente faz na Universidade da Correria. Ainda usamos “empreendedorismo” como palavra, mas estou cada vez mais convencido de que o que a gente faz não é exatamente isso, no sentido do mercado. Quando alguém empreende uma ideia, uma aceleradora, está empreendendo a si próprio e à sua empresa. Na Universidade da Correria, que é basicamente um projeto de educação, a gente está empreendendo um coletivo – pessoas impulsionando umas às outras. Uma rede de pessoas, que funciona também no projeto A Pequena Cozinha, da Suelen, minha companheira. Ela fez um curso de gastronomia em 2014 e começamos a vender comida na rua. Hoje coordenamos juntos a maior cozinha industrial da região portuária, onde mulheres que saíram da Universidade da Correria trabalham cozinhando ou vendendo. Todas dividem tudo, despesas, tarefas, lucro. Tudo é colaborativo, não é um Steve Jobs que vai lá e cria um supercomputador e fica rico pra caralho. Não é uma Bel Pesce, que faz crowdfunding para montar uma hamburgueria e empreender a si mesma. Ninguém da Universidade da Correria vai ficar rico. A gente fala do valor do dinheiro, mas também critica o dinheiro.
Como você começou a empreender? Eu queria montar um projeto que ajudasse as pessoas no Complexo da Maré. E a gente estava numa época em que havia muito dinheiro no Rio por causa dos eventos. Só que não conseguíamos acessar essas verbas, que sempre caem na mão das grandes ONGs. Chegou uma hora que eu disse: “Bom, não vai ter dinheiro de patrocínio mesmo”. Então comprei malha de camiseta, fui à favela de Acari, lá as mulheres costuraram para mim e depois “silquei” um logo em outra favela. Então, saí puxando mala na rua e vendendo a R$ 40 cada uma. Vendi 200 camisetas e aquilo virou o meu sustento e viabilizou o curso, que oferecemos de graça. A primeira turma tinha só seis pessoas, mas depois foi crescendo. Aí chegaram os apoiadores: Fundação Telefônica, BrazilFoundation, Sesi... Hoje, já formamos 4.200 pessoas.
Explique o título do seu livro, Rio em shamas. “Shamas” é uma expressão um pouco histérica, exagerada. O título veio de um post que eu publiquei em 2015 no meu perfil pessoal comentando uma outra postagem, de uma mulher no Leblon que estava horrorizada porque um restaurante famoso que ela conhecia estava vazio “por causa da crise que a Dilma causou”. Era uma afronta à sociedade leblonense! Enquanto isso a gente saindo de Cascadura para Madureira e vendo ônibus pegando fogo. Acho que os amigos dela não gostaram da crítica e denunciaram meu post, que caiu. No dia seguinte, escrevi que o Leblon estava em “shamas” por causa do que eu tinha escrito – isso teve milhares de compartilhamentos e despertou o interesse das editoras.
O livro também rendeu a você um convite para colaborar com a Conspiração Filmes. Como foi isso? Veio pela Carolina Jabor, que me pediu um argumento para um projeto. Acabamos escrevendo um roteiro e foi um trabalho muito legal. Mas ainda não sei em que a coisa vai resultar exatamente.
Uma ameaça de morte impediu você de ir à Flip falar do seu livro. Como foi essa história? Esse caso está até hoje sob investigação e estou colaborando com a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática do Rio. Eu tinha defendido num texto uma mulher negra agredida por um homem que postava num site de conteúdo racista. Então ele e pessoas ligadas a ele promoveram todo tipo de ameaça contra mim, descobriram meu endereço e o da minha mãe e a coisa tomou um tamanho tão grande que o meu e-mail foi invadido e enviaram mensagens ameaçadoras para amigos meus, como o [ator] Lázaro Ramos. Então, eles ofereceram dinheiro para quem me matasse. Primeiro 15 [mil reais], depois 30. Eu considerei que poderia ser uma bravata, mas a Flip, não. E a editora negociou que eu participasse ao vivo, por videoconferência. Esse monstro da intolerância despertou não só no Brasil, mas no mundo todo, como pudemos ver em Charlottesville, nos EUA e no crescimento da extrema direita na Europa. Acho que se todos nós não nos juntarmos, apesar das nossas diferenças como grupos sociais, e defendermos uma humanidade plural, é esse grupo de intolerantes que vai vencer.
A situação crítica em que o Brasil se encontra hoje deixa você pessimista? Eu tenho muita esperança no povo brasileiro. Se você assistir a uma aula nossa na Maré e vir uma mulher negra chegando lá... Eu tenho muita esperança. Eu não estou nessa vibe de “ah, a gente está no Brasil, vamos ouvir Chico Buarque, tomar cachaça e chorar”. Não estou nessa parada. Vamos botar Lecy Brandão e Alcione e vamos pra cima deles.
Créditos
Imagem principal: Pablo Saborido