O amanhã é colorido
Uma youtuber, um cantor de R&B e um escritor dividem suas vivências como LGBTQI+, celebram a conquista de uma maior visibilidade e defendem a importância de sorrir e se divertir
A 23ª Parada do Orgulho LGBT, celebrada em junho em São Paulo, atraiu mais de 3 milhões de pessoas, coloriu a avenida Paulista de ponta a ponta e se consolidou como a maior parada LGBT do mundo. A convite de DORITOS® RAINBOW, a Trip conversou com personagens que estão na vanguarda da mudança de padrões de gêneros e sexualidade no Brasil: uma youtuber com mais de 500 mil seguidores, um dos fundadores do primeiro grupo de rap LGBTQI+ do país e um escritor que se desafiou a criar a sua própria narrativa trans.
Leia os depoimentos a seguir.
“Ser feliz é transgressor”
Louie, 28 anos, produtora de conteúdo e ativista. Tem mais de 500 mil inscritos no canal Louie Ponto
Eu me assumi muito cedo para minha família. Tinha 14 anos. Mas, naquele momento, não me assumi como lésbica, só disse que gostava também de meninas. Eu era muito nova, não tinha estrutura emocional ou capacidade argumentativa para discutir o assunto. Não foi fácil. Só me entendi como uma mulher lésbica aos 20 anos.
Logo que comecei a ir para a escola, sofri bullying, violências verbais e até físicas. Conforme fui crescendo, passei a ter conflitos em relação a minha sexualidade. Mas as referências lésbicas eram sempre negativas... Primeiro eu achava que elas não existiam, depois encontrei apenas referências como o casal de lésbicas de uma novela da TV, que morriam queimadas na explosão de um shopping. A gente vive em uma sociedade heteronormativa, que espera certos comportamentos de meninas e de meninos. Quando alguém fala "você é menina” ou “você é menino", é como se a gente passasse a ter um papel social a cumprir. Mas eu nunca me identifiquei assim. Eu sempre fui uma criança que não correspondia aos padrões de gênero.
É um paradoxo complicado. Quando penso nas coisas que vivi, percebo que foram elas que me trouxeram até aqui. Sei que só me tornei quem eu sou por causa delas. Ao mesmo tempo, tem muitas experiências que eu gostaria de não ter vivido. Como a gente não volta atrás, hoje eu tento ressignificar a minha história pensando que ela pode ter tido um lado positivo. Eu cresci muito com tudo o que aconteceu, e agora posso transformar aquelas dores em amor e afeto.
Ao mesmo tempo em que meu canal ajudou pessoas, pessoas me ajudaram no processo de autoaceitação. Tive muitas dificuldades nesse tema e ainda tenho. Acho legal falar das dificuldades que a gente ainda tem. Mas nossa realidade é tão dura, tão difícil que tento tratar esses assuntos com leveza. Fiz um vídeo dizendo que ser uma pessoa LGBTQI+ significa sair do armário todos os dias, porque, mesmo hoje, ainda tem lugares onde não consigo falar sobre esse assunto com as pessoas – e tudo bem, também. Acho que a gente tem de acolher as nossas dificuldades.
Por mais que a gente ainda tenha de avançar muito como sociedade, sinto que existe uma luz no fim do túnel. Eu tento ver as coisas de forma otimista, mesmo. Sinto que se a gente não for otimista, não consegue lutar, e precisamos continuar a nossa luta. Ser uma pessoa LGBTQI+, em nossa estrutura social, já é uma forma de resistência. Ser feliz, nesse contexto, é transgressor.
Louie é mestre em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina e youtuber. Seu canal, o Louie Ponto, teve 40 milhões de visualizações durante a transmissão da 23ª Parada LGBT.
“Hoje um menino preto e gay da periferia tem referência”
Harlley, 21 anos, é integrante da Quebrada Queer, o primeiro grupo de rap LGBTQI+ do país
Eu moro na região do Capão Redondo [na periferia de São Paulo]. Aqui, somos muito unidos, todo mundo tem consciência da classe em que vive. Eu me criei nesse ambiente de união do bairro, mas, ao mesmo tempo, me sentia sozinho por ser uma criança LGBTQI+.
Ao meu redor, eu via as pessoas discriminarem LGBTQI+ o tempo inteiro. Mas, dentro de mim, eu sentia um desejo, justamente aquele que os outros estavam condenando. Foi muito difícil aceitar que eu era essa pessoa. Durante a infância, a Princess, que hoje é minha amiga, se tornou a primeira gay afeminada da rua. Eu estava na fase de negação e não gostava do jeito dela, influenciado pelo preconceito dos outros. Felizmente, hoje somos muito amigos. Ela entende as minhas vivências e dificuldades.
Minha mãe chorou muito quando soube que eu era gay. Depois de um tempo, ela começou a entender e aceitar. Passou pelo processo dela. Primeiro, eu me assumi como bissexual, porque na minha cabeça seria mais fácil. Isso foi há dois anos. Aconteceu após uma discussão no grupo de WhatsApp da família, sobre homossexualidade e homofobia. Eu li algumas coisas ali e fiquei bem bravo. Minha mãe reparou na minha reação. Foi quando eu me senti confortável para me assumir. Hoje, a gente conversa mais sobre o assunto e ela procura evoluir. Fico bem feliz com isso.
É importante as pessoas entenderem os processos pelos quais passam. Para mim, foi um processo deixar meu cabelo crescer, usar maquiagem, vestir tops, ser quem eu sou. Essa aceitação precisa vir da gente e acontecer para a gente. Minha aceitação foi muito mais para mim do que para as outras pessoas. Eu me assumi gay para mim.
O medo sempre vai existir. Eu tento passar coragem para as pessoas. Se a gente tiver medo, não vai conseguir fazer a sociedade mudar. Vamos mostrar que a gente existe. A cada ano, nossa visibilidade aumenta. Apesar dos perigos, vamos mostrar que estamos vivos. Vamos nos divertir. Isso é revolucionário. Tem um verso do Quebrada Queer que fez sucesso: “Mesmo ameaçado, serei cada vez mais viado”. Eu não tinha a dimensão da potência dessas palavras. Hoje, tenho. O rap sempre falou de minorias e a gente nunca esteve presente nesse discurso. Agora, nós estamos. Hoje, um menino preto e gay da periferia tem uma referência no rap, coisa que eu não tive. Não quero que o Quebrada Queer seja o único grupo de rap LGBTQI+ do país, apenas o primeiro.
Harlley é cantor. Além de uma carreira solo em R&B, ele participa do Quebrada Queer, grupo de rap LGBTQI+ lançado em 2018.
“Não é preciso se encaixar em uma narrativa trans escrita por outras pessoas”
Jonas Maria, 28 anos, é escritor e produtor de conteúdo
Eu comecei a pensar criticamente sobre sexualidade e gênero em 2013, quando estava na universidade e ainda me considerava uma mulher sapatão. No entanto, essas questões já me atravessavam, porque os padrões de gênero são impostos desde muito cedo. Eu descobri a transexualidade por acaso em uma matéria na internet, e a partir daí comecei a pesquisar e saber mais sobre esse universo.
A transexualidade não foi algo imediato para mim. Passei um tempo refletindo e desconstruindo ideias que eu tinha sobre o assunto. O discurso era apresentado na grande mídia como algo negativo, muitas vezes com humor ou de forma fatalista, e eu não me identificava. Até que cheguei a um ponto em que passei a ver como um direito do corpo e comecei a dar os primeiros passos. Em 2015 fiz a mamoplastia masculinizadora e depois desse procedimento comecei a confiar mais em mim, nos meus instintos, tive mais autoestima. Então pensei em dar um segundo passo e ver se os hormônios eram o que eu queria. Eu nunca impus como algo que precisava fazer, foi uma escolha a partir da minha experiência. Não é preciso se encaixar em uma narrativa trans escrita por outras pessoas.
Ter tido contato direto com pessoas trans falando de si foi o mais importante nessa trajetória. Eu criei um blog para compartilhar minha vivência porque ao mesmo tempo em que você tem essas histórias, ninguém nunca se encaixa completamente. Eu queria romper com a ideia de que existe uma única narrativa trans e apresentar a minha, do meu ponto de vista, que acaba ajudando outras pessoas. Ser transexual, de um modo geral, na sociedade em que vivemos, é estar à margem. As pessoas não têm respeito, não entendem o que é e não têm interesse em ajudar. Vivemos em uma tensão em relação à violência e não sabemos se nossos direitos estão garantidos. Conquistamos o direito do nome social apenas em 2018 e não sabemos até quando vai.
No começo, quando me entendia como sapatão, havia muita vergonha, as pessoas LGBTQI+ tentavam disfarçar, não existia orgulho em ser LGBTQI+. É muito bom ver como isso tem mudado ao decorrer do tempo, como as pessoas LGBTQI+ têm repensado a sua história, quem são e qual o papel delas na sociedade. Hoje em dia, felizmente, temos muito mais orgulho de quem somos, porque reconhecemos muito mais a nossa narrativa. Vemos que isso não é um problema pessoal, mas sim da LGBTQI+fobia presente na sociedade.
Jonas é escritor e formado em letras pela Universidade Federal de São João del-Rei. Em seu blog DEGENERAD$ e redes sociais, ele explora suas experiências na retratação da transgeneridade.
Fazendo parte
Desde que DORITOS® RAINBOW foi lançado em 2017, as ações promovidas por essa iniciativa buscaram dar ainda mais voz à comunidade e a endereçar temas relevantes à causa LGBTQI+. Em 2017, a marca iniciou as parcerias com ONGs e, desde então, expandiu sua atuação para todas as regiões do Brasil, além de aumentar a assistência a programas e projetos como abrigos, oficinas de capacitação e cursos profissionalizantes para membros da comunidade LGBTQI+.