Victoria Garaventa
A artista plástica de 25 tem paixão por taxidermia, coleciona ossos e, a seguir, atravessa a selvagem noite de São Paulo sem roupa
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Fotografar no metrô foi bem maluco. Era quase meia-noite. Saímos da estação Consolação até a Vila Madalena, num dos últimos trens. A ideia era tentar captar certa selvageria da cidade, uma coisa meio "Anybody seen my baby", aquele clipe dos Stones. Estava tudo indo bem, eu estava apreensiva, mas tranquila. Todavia, assim que botei o pé no metrô, pronto: encontrei um cara que eu conheço, de uma galeria. Fiquei tensa. Mas conseguimos despistá-lo. Depois, tudo foi muito rápido, eu tirava uma parte da roupa, as fotos eram feitas. Então, a gente saiu, pegou o carro. Eu estava na caçamba, sem a parte de cima da roupa, naquele túnel da Paulista, com outros carros passando. Em resumo, foi bem divertido.
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Eu amo São Paulo, nasci e cresci na cidade e acho que é um dos lugares mais legais do mundo. Nos últimos anos, porém, a selva de concreto me engoliu um pouco. Estar cercada por prédios altos, pegar tanto trânsito, ter sido assaltada, isso tudo teve um impacto sobre mim. Não ver o horizonte fez com que os problemas do dia a dia se tornassem maiores, então achei que era o momento de mudar de ares. Decidi vir para Los Angeles. A escolha pelos Estados Unidos se deu muito pela língua, inglês é o único idioma, fora o português, que sou fluente mesmo. E pelo momento da minha vida agora, meu marido tem uma banda de indie rock, e está fazendo uma turnê pela Califórnia. Aqui tem deserto, montanha, praia. E tem uma cena de arte de que gostei muito. A cena de arte de São Paulo é muito forte também, é verdade. Mas foi bom estar num lugar novo, com pessoas novas, é inspirador. O legal de Los Angeles é que tem gente do mundo inteiro, conheci mais estrangeiros do que americanos até agora por aqui. É como São Paulo, uma mistura incrível de culturas.
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Aqui em Los Angeles esbarro em muitas lojas com materiais que uso no meu trabalho. Sou artista plástica e há alguns anos vim para cá fazer um curso de maquiagem e efeitos especiais. Queria aprender a técnica, essa coisa de pele, realista. Muito do que faço hoje é relacionado à anatomia. Gosto de taxidermia, por exemplo (como preservação e reciclagem, jamais proveniente de caça), e aqui o acesso a isso é muito fácil. Tem a ver com a cultura desse lado dos Estados Unidos. Outra das minhas paixões é o colecionismo. Eu tenho coleções meio bizarras. Tenho fetos de vários animais diferentes, ossos, crânios. Gosto de colecionar fragmentos de coisas – e depois criar um novo significado pra elas. Gosto de certa linha tênue entre o artificial e o natural. E de pensar que essas categorias são, no fundo, fundamentalmente conceitos.
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Quando eu falo de aberrações ou da minha coleção de coisas bizarras (fetos, ossos, fragmentos do corpo) como referências para o meu trabalho, minha intenção é retirar esses elementos de um lugar extravagante e trazer isso para o lugar-comum, tradicional. Eu sempre tive interesse pelo corpo. Há um tempo, comecei a olhar para dentro e ver que por dentro todo mundo é estranho. E que poderia haver uma liberdade de criação aí, por ser uma coisa meio desconhecida. Comecei a colocar dois corações dentro de um tórax, inventar órgãos, inventar nomes, criar partes do corpo que não existiam, fazer hibridismos com animais e humanos. Eu me vejo como uma espécie de cientista. É como se eu estivesse pesquisando uma coisa que não existe, e enquanto pesquiso, vou inventando.
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Antes de completar 18 anos, como treino, eu prestei vestibular para medicina. Depois, pensei que me realizaria mais nas artes plásticas mesmo. Há uns meses, fiz um vídeo para uma exposição. Peguei o vídeo de uma endoscopia, tratei a imagem, passei um blur e deixei a imagem em super slow motion. Coloquei sons gravados no espaço, da Nasa, e estendi o vídeo, que tinha dez minutos, para 1 hora, mais ou menos. A ideia é que isso seja projetado nas quatro paredes de uma sala, só que momentos diferentes do mesmo vídeo. Fico pensando: o corpo é um universo tão particular, estranho, algo fora do tempo.
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A morte da minha mãe teve forte impacto sobre mim, sobre meu trabalho. Serviu não só para eu amadurecer cedo, mas também para eu ver a vida de outra maneira. Viver para mim, não para o que os outros achariam melhor ou mais certo. Prestar atenção numa certa fragilidade da vida. Eu tinha 13 anos, hoje tenho 25. Acho que meu trabalho tenta dialogar com esse lado efêmero e transitório. Tento usar elementos que estão mudando o tempo todo, se deteriorando. Coisas em que consigo enxergar o tempo.
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Eu vejo um bicho morto e, claro, aperta meu coração, mas também vejo beleza na morte. Há pouco tempo, no meu ateliê em São Paulo, encontrei um passarinho morto na varanda. Ele havia caído do ninho. Fiquei observando aquilo e comecei a fotografar. Passei 13 dias fotografando as mudanças no passarinho, quer dizer, naquilo que era, mas já não era o passarinho. Na mesma semana, outro passarinho do ninho saiu do ovo, aprendeu a voar. Foi meio que o Discovery Channel ali na minha frente.
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As pessoas têm um pouco de medo de arte contemporânea. Acaba se tornando algo fechado. As coisas parecem muito complicadas. Falta espaço para discussões mais abertas. No Brasil, gosto do trabalho da Sandra Cinto, do Walmor Correia. Eu adoro o Anish Kapoor, gosto de como ele trabalha com escala, pigmentos. Gosto muito da Cindy Sherman. Toda arte é política; só de fazer o espectador pensar, a arte já é política. Claro que existem trabalhos panfletários, mais diretamente políticos. E claro que a arte não precisa ser necessariamente diretamente política.
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Estou acompanhando os protestos recentes no Brasil pela internet. Difícil opinar de longe, mas acho que teria ido aos protestos de junho de 2013 – na época, eu estava aqui em Los Angeles. Mas às vezes se misturam tantas questões nesses protestos. Não são todas que me representam. Nas manifestações recentes eu com certeza não iria. Gente que não viveu a ditadura falando sobre ditadura. É complicado isso. O país já teve momentos horríveis, e as pessoas falando que este é o pior. Agora, eu nunca votei. Nunca me senti representada por ninguém, por nenhum político.
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Quando pensei neste ensaio, fazer fotos nuas, pensei na ideia de desconstruir a ideia do nu em revista, do nu para o outro. Eu não vejo a Trip como uma revista masculina, é uma revista, e ponto. O empoderamento feminino está ligado ao poder de escolha da mulher. Suas opiniões e o que decide fazer com o próprio corpo, por ela mesma, e não pela sociedade ou pelos outros. Além disso, mostrar o seio não deveria ser tão polêmico assim. É um absurdo existirem leis proibindo mulheres de amamentar em público, por exemplo. Enquanto isso, um homem sem camisa é normal. Tornar públicas essas imagens é uma forma de fortalecer as mulheres, estimular a igualdade de gênero.
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Tenho nove tatuagens. Tenho um dente do siso. Gosto muito do formato do dente do siso. Tenho este anel com diamantes, que fiz quando casei. Tenho um Jackalope, que é um personagem interessante americano, um coelho com chifres – várias cidades do interior dos Estados Unidos têm a cabeça do Jackalope, de taxidermia, nos estabelecimentos. Tenho o meu sobrenome, que fiz depois que minha mãe morreu. E tenho um cupcake. Eu fui numa loja de cupcakes quando era pequena e voltei vários anos depois. Isso me trouxe várias lembranças, o cheiro, as cores. Foi uma viagem que fiz para os Estados Unidos, com a minha mãe.
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