Pequenas crianças, grandes negócios

Elas têm milhões de seguidores e estão a caminho dos milhões de reais. Como tanto protagonismo afeta o desenvolvimento de uma criança?

por Juliana Sayuri em

O smartphone de Gian Tancredo não para. Desde que estrelou o vídeo Quanto custa o outfit?, do canal Hyped Content Brasil, no mês passado, o estudante paulistano de 12 anos conquistou milhares de seguidores, protagonizou memes e se tornou o “fera hype” mais jovem do Brasil, como diz a legenda de uma de suas últimas fotos no Instagram: “Meet the youngest Brazilian hypebeast”.

No viral sobre streetwear, Gian exibiu um look de R$ 39 mil, com marcas como Supreme, Tag Heuer e um Nike assinado pelo rapper Travis Scott. “Muitos haters não gostaram do vídeo, mas só vejo o lado positivo: antes, 2 mil pessoas viam um post meu, agora são 60 mil. Hype não é um padrão, é estilo de vida. Mostrei o que é o hype pra muita gente”, diz. A fama instantânea fez seus pais buscarem agência e assessoria profissional, a mesma Hyped Content Brasil. Gian agora é um “influenciador digital mirim”.

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Os mini-influenciadores mantêm canais no YouTube, fanpages no Facebook e perfis no Instagram, atraindo a atenção de milhares de seguidores nas redes sociais e de diversas empresas, prontas para presentear as crianças com “mimos” para merchandising, além de convites para parques temáticos, “presença VIP” e “encontrinhos” com fãs. Alguns se tornam autores de livros, modelos de campanhas publicitárias e até estrelas de jogos eletrônicos customizados.

Supergemêas

Desde novembro de 2015 no ar, as gêmeas Melissa e Nicole Jakubovic já são veteranas aos 10 anos. As garotas protagonizam o canal Planeta das Gêmeas, no YouTube, com mais de 7 milhões de seguidores e 1,7 bilhão de visualizações. A mãe, a publicitária Camila Jakubovic, faz roteiros, filma, edita, cuida dos contratos e participa dos vídeos; gerencia o negócio, que se desdobrou em loja, livro e peça de teatro. “Para elas, sempre será uma brincadeira. Eu trabalho”, define Camila, que grava tudo no próprio smartphone.

Além de convites para TV e outras propostas de trabalho, elas recebem presentes e cartas de seguidores via caixa postal no Rio. A primeira vez que tiveram ideia da quantidade de fãs foi quando encontraram centenas de crianças esperando por elas no aeroporto de Recife. Animadas, ambas dizem querer seguir carreira artística, no combo “modelo, estilista, dançarina, cantora, atriz e youtuber”. Na entrevista, por videoconferência, as irmãs sorriem o tempo todo. “A gente fica feliz. É muito bom saber que tem um montão de gente que gosta. A gente se sente influenciadora e tenta dar bons exemplos”, dizem, atropeladas e ao mesmo tempo.

“Nós vamos até o ponto que ele quiser. Vejo uma exploração muito forte por parte dos pais, e um lado desumano nas produções”
Luciana Moreira, mãe de Ernani

Muitas crianças se inspiram em youtubers na casa dos 20, 30 anos e buscam a consultoria de profissionais de mídia. A catarinense Julia Pereira, “Julia Jubz” no YouTube, seguiu o exemplo do irmão, o ator Rizzih, 25 – os dois fazem parte da produtora Dia Estúdio, fundada pelo ex-diretor da MTV Rafa Dias. Aos 12, Julia faz tutoriais de maquiagem, desafios e daily vlog. “Aprendi a filmar sozinha. Posiciono as luzes, gravo e depois meu irmão edita”, conta a estudante, que quer ser, sem surpresas, atriz e cantora.

O baiano Isaac Guedes Moura, o “Isaac do Vine”, despontou aos 4 anos na hoje inativa rede social Vine – algo similar a um Instagram apenas de vídeos curtos. Aos 9, já está na trilha artística. Desde outubro de 2016 no Rio, o menino migrou para Facebook, Instagram, Snapchat, Twitter e finalmente YouTube, onde conta 4,9 milhões de seguidores, número que o catapultou para a série de humor Vai que cola, do Multishow. “Já tenho cinco anos de carreira. Sou um artista mirim”, afirma, em entrevista acompanhada pela avó, Val. A mãe Iasmin, e o tio, Ícaro, ambos publicitários, gerenciam seus compromissos profissionais, “além da minha agência”, nas palavras de Isaac.

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Certa vez, no Twitter, alguém o desafiou a jogar um balde de água gelada num mendigo. O menino “aceitou”, mas com outra proposta: distribuir comida. “Foi minha ideia. E foi uma das melhores sensações da minha vida”, diz, orgulhoso, sobre o vídeo que ultrapassou 7 milhões de visualizações. Mas lembra assustado de outro momento: no lançamento d'O livro de Isaac (2016), em São Paulo, uma jovem na casa dos 25 anos pediu um de seus cachos castanhos como souvenir. O menino pensou que era brincadeira, mas se apavorou ao ver a mulher tirando uma tesoura da bolsa. Impedida por seguranças, ela sussurrou no ouvido dele: “Um dia eu vou conseguir esse cachinho...”.

Não é brincadeira: o fenômeno dos mini-influenciadores chama atenção para questões como assédio, segurança e superexposição, desenvolvimento e impactos psicológicos, publicidade abusiva e trabalho infantil.

Expectativa x realidade

A idade mínima para registrar uma conta no Google, portanto no YouTube, é 13 anos. Facebook e Instagram, idem. Entretanto, muitos mini-influenciadores se lançam às redes a partir de contas avalizadas pelos pais. De acordo com o estudo TIC Kids Online Brasil de 2016, realizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), 86% das crianças e adolescentes (de 9 a 17 anos) possuem perfis próprios nas mídias sociais. No YouTube, segundo uma pesquisa da ESPM Media Lab, a audiência saltou de 20 para 50 bilhões de visualizações de vídeos voltados ao público infantil entre 2015 e 2016 – e a categoria dos youtubers mirins cresceu 564%.

A audiência dos canais, medida pela combinação de número de inscritos, views, likes e comentários, permite a monetização pelo YouTube, que abre janelas para publicidade. Logo, lucro. “Os influenciadores digitais se tornam iscas para vender de tudo, uma máquina de produzir desejos para as crianças, que não têm, por exemplo, as habilidades cognitivas de controle de emoções, impulsos e pensamentos”, critica a psicopedagoga Paloma Garcia.

Quanto mais jovens, mais difícil é a compreensão. “A criança entra num personagem, a fim de atender a expectativa da família e os likes dos amigos e, no fim, corresponder a padrões de corpo, comportamento, consumo. Isso pode prejudicar o desenvolvimento da identidade”, explica a psicóloga da infância Ana Flávia Fernandes, autora do blog Terapia de criança. Para ela, essas expectativas sobre a “performance” vão provocando ansiedade, angústia e outros transtornos – segundo dados da OMS, o índice de crianças diagnosticadas com depressão saltou de 4,5% para 8% na última década.

O goiano Ernani Coelho Neto é um ponto fora desta curva. Depois de quebrar o braço jogando futebol aos 9 anos e passar por quatro cirurgias, o estudante mergulhou num quadro depressivo. O médico sugeriu à família buscar uma nova atividade para estimular a autoestima. A irmã Giulia, 19, se propôs a fotografá-lo e postou no Instagram. “Ele dormiu com dez seguidores e acordou com 10 mil”, conta a mãe, a empresária Luciana Moreira – o menino se animou e a família decidiu apostar na ideia. Ernani segue em acompanhamento psicológico, mas o médico o liberou dos antidepressivos.

“Sou estudante e modelo, ‘barra’ brincalhão. Gosto de Guardiões das galáxias e Gravity Falls”, diz o garoto. Em novembro de 2016, ele venceu um concurso de digital influencers mirins. Em junho de 2017, alvo de bullying no colégio, mas já mais confiante, Ernani fez um ensaio fantasiado de Tritão, um deus marinho da mitologia grega, no Instagram. “Na minha casa impera a igualdade de gênero e o respeito à diversidade. Ele teve a ideia e eu aceitei”, lembra Luciana, que adicionou às fotos uma mensagem sobre sexismo, machismo e bullying.

Nos bastidores, a mãe e as duas irmãs monitoram as redes sociais do caçula. “Nós vamos até o ponto que ele quiser. Vejo uma exploração muito forte por parte dos pais, e um lado desumano nas produções. Crianças vão fotografar e não podem comer nem tomar água para não inchar a barriga, um absurdo. Fazemos tudo no ritmo dele”, diz Luciana, que bloqueia mais de dez usuários por dia no perfil do filho, por suspeita de pedofilia.

Fama e timidez

Tiago Riesemberg ainda aprendia a falar quando estreou no YouTube, aos 3 anos. Seu pai, o professor e revisor home office Luiz Riesemberg, postou alguns vídeos pensando apenas na família fora de Curitiba. Uma das postagens, porém, viralizou e atingiu mais de 70 mil views. Não demorou para o menino, de jaleco branco e óculos redondos, ficar famoso com vídeos fofos e didáticos sobre temas como “o que é o amor” e experimentos de estilo científico sobre bullying. O garoto de 5 anos apresenta hoje o Show do Tiago, página no Facebook com mais de 400 mil likes.

“A criança entra num personagem, a fim de atender a expectativa da família e amigos. Isso pode prejudicar o desenvolvimento da identidade”
Ana Flávia Fernandes, psicóloga da infância

Tímido, Tiago não disse diretamente uma palavra na entrevista, respondendo baixinho no ouvido do pai. “Ele está acostumado a gravar em casa, sem pressão, sem pressa. Tivemos duas experiências terríveis em estúdio, um programa de TV e uma campanha: os produtores ficaram pressionando e os diretores ficaram bravos por causa da timidez dele. Recusamos vários outros convites. Minha prioridade é meu filho ficar feliz”, diz. Segundo Luiz, o sucesso foi momentâneo e não se transformou num negócio.

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Maria Eduarda Yamazaki também economizou palavras na conversa, preferindo mostrar um álbum dela de quando era bebê, especialmente uma foto de seu sorriso lambuzado de chocolate. A menina de 5 anos é definida como mini digital influencer no perfil no Instagram, gerenciado pela mãe, a turismóloga Patrícia Yamazaki. “Dudinha não entende o que ela representa, não tem ideia do que é ser influencer. Mas, sem saber, influencia muita menina que quer se vestir igual a ela...”

Duda participou de uma campanha estrelada por Ivete Sangalo para uma marca de Salvador. “Vejo o lado negativo: inveja, disputa de ego entre mães, exposição. Mas ela se diverte, ganha presente e convite pra parque e cinema. Se ela deixar de ser influenciadora um dia, não importa. A vida segue...” Agarrada ao pescoço de Patrícia, Duda a interrompe. Quer mostrar as bolhas gigantes do “slime” azul na sua mesinha de princesas da Disney para a “tia”, esta repórter.

O slime é uma febre na internet (para quem foi criança na década de 80, é a antiga Amoeba, uma massinha elástica e colorida). A graça agora é fazer a geleca artesanalmente. Foi nessa onda que surfou Sofia Furlani: entre janeiro e junho, sua página dedicada a slimes saltou de 15 mil para 280 mil inscritos, ultrapassando 29 milhões de visualizações.

Usando materiais importados pelo tio que vive na Flórida, outros encomendados no Mercado Livre e itens simples encontrados nas papelarias de Florianópolis, a bailarina de 11 anos faz versões com bolinhas de isopor, glitter e miçanga, inspirada por tutoriais americanos. Ela lembra, animada, que certa vez recebeu uma caixa de cola transparente da Slime Kids Brasil de presente, postou um vídeo testando o produto e, dias depois, o estoque da marca esgotou.

A mãe filma amadoramente as experiências na varanda de casa, na capital catarinense, e edita, ensinada pela filha. Sofia define a prática como uma “brincadeira relaxante” e um “hobby gratificante”. “Não tem dia certo para gravar. Primeiro, porque ela é uma criança; segundo, é estudante, tem dever de casa e prova; terceiro, ela é atleta, faz balé, jazz e ginástica rítmica, treina todos os dias. Nos fins de semana ou dia de folga, ela quer fazer slime para relaxar”, diz a mãe, Tatiana Scheibe, que tem todas as senhas e acompanha com quem a filha interage na

internet. “É 1 minuto de stories e 23 horas e 59 minutos de vida real”, define.

Sharenting, unboxing, unlike

“A internet, os gadgets, os recursos digitais e as redes sociais despertam a curiosidade das crianças. Cabe aos mais velhos mediar essas experiências”, alerta a psicóloga e psicanalista Isabel Santana Gervitz, integrante do Laboratório de Educação – Labedu. “Tudo depende de como a criança se insere na internet. É fruto de um desejo dos adultos de mostrar habilidades da criança, ou a criança legitimamente quis aprender e compartilhar, a partir de seu interesse?”, questiona.

Para ela, ainda que a vontade tenha partido da criança, os adultos precisam filtrar exposições que possam ferir a privacidade e pôr em risco o bem-estar dela. “É preciso compreender o que está sendo veiculado: a criança está compartilhando seus conhecimentos e descobertas sobre o mundo? Ou está tornando público algo íntimo? Está sendo retratada enquanto criança ou assumindo uma postura adulta e artificial? Para qual público está sendo divulgada a sua imagem?”, indaga a psicanalista.

As crianças que ainda não sabem sequer ler também se tornam alvo de sharenting, o fenômeno de postagens desenfreadas de fotos e vídeos dos filhos por seus pais. “Quem disse que os pequenos, quando forem mais velhos, vão querer ter sua imagem divulgada e registrada nas redes? Como fica a possibilidade de cada um de contar sua própria história a partir de suas impressões e memórias pessoais?”, pergunta Isabel.

A advogada Isabella Henriques, diretora de advocacy do Instituto Alana, responde: “O direito à própria imagem é personalíssimo. Os pais são responsáveis legais, mas um dia a criança cresce. Talvez não queira mais ser vista como o bebê que fazia gracinha na internet e pode questionar judicialmente, como direito ao esquecimento”. Segundo a advogada, o fenômeno dos mini-influenciadores pode ter duas implicações legais: violação do direito da criança que está sendo gravada, deixando rastros digitais; e violação do direito da criança que está assistindo, ludibriada por publicidades abusivas.

Crescente nebulosa

Ancorada em diversos dispositivos legais, como o artigo 227 da Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor, a legislação sobre a publicidade dirigida ao público infantil “independe se a publicidade está na novela, no gibi, no colégio ou na internet”, destaca a advogada. “No caso dos youtubers mirins, é muito nítido que as publicidades são destinadas ao público infantil, ainda que inseridas num contexto digital não voltado para crianças”. Em março de 2014, foi aprovada a resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, que considera que toda publicidade para criança que tem intenção de persuadi-la ao consumo é abusiva.

A crescente nebulosa dos mini-influenciadores envolve casos mais claros para monitoramento, como os youtubers já posicionados no mercado, com produtoras, contratos e autorização judicial; mas também casos mais complexos, como os novatos que recebem “presentes” de marcas e postam vídeos desembrulhando os brinquedos (conhecida como unboxing nos Estados Unidos, a prática virou mania no Brasil). Na perspectiva de Isabella, ainda que não haja contrato, é uma publicidade, pois o produto foi mandado pela área de marketing com intenção de divulgá-lo no mercado.

Todas as crianças ouvidas pela Trip afirmam ver suas atuações nas redes sociais como “diversão”. Muitos pais, por sua vez, frisam que os filhos não deixam de aproveitar a infância fora da internet, monitoram interações, moderam comentários e tomam cuidados como não postar fotos de biquíni e uniforme do colégio. Alguns pais pediram autorização judicial para trabalho infantil artístico e até instruções no Conselho Tutelar; outros nem sabiam que era preciso autorização de um juiz. No fim, se muitas dessas questões (apelos da publicidade, desejo de fama, expectativas, experiências frustradas, padrões, superexposição) já pesam sobre ombros adultos e calejados, para uma criança, um unlike pode ser uma bigorna.

Créditos

Imagem principal: Adams Carvalho

Ilustrações: Adams Carvalho

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