História sem fim
"O ano de 2018 tão cedo não vai terminar", diz Mario Magalhães, autor de "Sobre lutas e lágrimas: uma biografia de 2018"
Em 1988, o jornalista Zuenir Ventura publicou 1968 - O ano que não terminou, livro, hoje um clássico, que relatava os acontecimentos que marcaram o ano de 1968 no Brasil e no mundo. Diferentemente de Zuenir, que narrou os ventos daquela revolta libertária que varreu o mundo com duas décadas de distância, o jornalista Mário Magalhães escreveu Sobre lutas e lágrimas: uma biografia de 2018 no calor da hora. Mário descreve, com fidelidade aos fatos mas sem abrir mão da crítica, as lutas travadas contra o obscurantismo que, definitivamente, entrou na sala de casa do Brasil e culminou com a eleição de um governo de extrema direita. “Daqui a 50 anos, lembraremos o Brasil de 2018 como no ano passado recordamos 1968”, aposta Mário em entrevista para a Trip.
Os protagonistas no livro em 2018, descrito pelo repórter como um ano que “tão cedo não vai terminar” e cujas consequências influenciarão o País por um tempo prolongado, são Marielle Franco, Lula e Jair Bolsonaro. O assassinato da vereadora, que deixou o país em um bad trip por semanas e que completou 500 dias sem descobrir os mandantes; a prisão de Lula, que mudou os rumos da eleição; e a eleição de Bolsonaro, das fake news à facada. Estão ainda no livro o reaparecimento de movimentos com ideário nazifascista, o Escola sem Partido, a censura às artes, o aumento da violência política, além de causos mais pitorescos como a conspiração da Ursal e o vampirão da Sapucaí.
“Daqui a 50 anos, lembraremos o Brasil de 2018 como no ano passado recordamos 1968”
Mário Magalhães
Alguns textos em Sobre lutas e lágrimas foram publicados no The Intercept quando Mário colaborava com o site e o restante, os mais densos, são inéditos e escritos, conta, com a cabeça e o coração. Autor de Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, biografia que inspirou o filme do ator e diretor Wagner Moura com previsão de estrear em novembro, Mário não fica em cima do muro ao assumir que o livro tem lado quando escreve que “o presidente mais popular da história do Brasil está preso em virtude de uma condenação sem provas acima de dúvida” ou quando avalia que a Lava Jato pavimentou o caminho para a eleição de Bolsonaro. “O livro toma o partido da civilização contra a barbárie.”
Trip. No dia do assassinato da Marielle, rolou aquela bad trip no país inteiro. Foi a partir daí que você escolheu 2018 como biografado?
Mário Magalhães. Já havia em janeiro muitos indícios de que 2018 não seria “mais um ano”, um “ano normal”. Da brutalidade e ignorância da caçada a macacos, tidos erroneamente como transmissores da febre amarela, à condenação do ex-presidente Lula em segunda instância. Mas foi de fato na noite de 14 de março, a dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes, que eu decidi escrever a biografia do ano. A ideia de biografia se funda no conceito de ano-personagem, de ciclo anual com larga envergadura histórica. Daqui a 50 anos, lembraremos o Brasil de 2018 como no ano passado recordamos 1968. Se o ano é personagem, eu escrevi a história da vida dele, uma biografia.
Quais as sequelas que carregamos hoje do apocalipse que foi 2018? Há
sequelas demais, muitas delas decorrentes do resultado da eleição em outubro. Em 2018, anunciou-se uma orientação obscurantista na educação, nas relações exteriores, no meio ambiente e em muitas outras áreas. Deu no que deu ou está dando. O sucateamento da ciência não terá impacto apenas nos próximos anos, e sim nas próximas décadas, por isso 2018 tão cedo não vai terminar. A intenção de servir aos patrões, como o candidato Jair Bolsonaro anunciou em meados do ano passado, tem numerosas consequências em 2019. Para as artes e a cultura, são desastrosos os efeitos de 2018, quando os artistas foram demonizados pelo candidato presidencial vitorioso. A conflagração política no país mantém parentes afastados uns dos outros. A propósito, em 2018 aprendemos que parente é parente. Família, com tolerância, amor e solidariedade, é outro papo, generoso, como escrevo no livro.
No livro, você sugere que, daqui a alguns anos, 2018 terá o mesmo histórico que 1968. Em que sentido você traça essa comparação? O impacto de 1968 na vida nacional foi imenso. Só o Ato Institucional Número 5, norma liberticida baixada pela ditadura naquele ano, durou uma década. Os eventos de 2018 influenciarão o Brasil por décadas. O endosso à degradação ambiental delineado no ano passado provocará estragos sem volta. A política econômica ultraliberal estimulará o regresso de milhões de pessoas à pobreza, inclusive a mais extrema.
Além de Bolsonaro, Marielle e Lula serem os protagonistas do livro, podemos dizer que 2018 teve ainda como protagonista o cidadão de bem? A hipocrisia viveu jornadas de glórias. O capítulo dedicado ao médico conhecido como Doutor Bumbum [médico cassado que responde a processo por homicídio doloso duplamente qualificado e associação criminosa e que fazia postagens pregando, por exemplo, intervenção militar], no fundo, trata disso. Prega-se uma coisa, mas se faz outra.
O que te levou a mudar o nome do livro (antes era O ano do apocalipse)?
Houve duas mudanças. Primeiro, o título era “O ano do apocalipse”. Mudei para “O ano em que o Brasil flertou com apocalipse” porque não houve apocalipse, que equivale ao fim. A história não terminou, como atestam os protestos gigantescos de 15 e 30 de maio de 2019 contra o governo. Mais tarde, a jornalista Fernanda da Escóssia sugeriu Sobre lutas e lágrimas, combinando o épico das lutas e o lirismo das lágrimas. São as lutas e as lágrimas de quem combateu o obscurantismo. O subtítulo original foi mantido, Uma biografia de 2018. E O ano em que o Brasil flertou com o apocalipse virou um segundo subtítulo, que ocupa inteira a contracapa do livro, numa ousadia editorial.
“O sucateamento da ciência não terá impacto apenas nos próximos anos, e sim nas próximas décadas, por isso 2018 tão cedo não vai terminar”
Mário Magalhães
Você escreve no livro que “O presidente mais popular da história do Brasil está preso em virtude de uma condenação sem provas acima de dúvida” e também chama de golpe o impeachment de Dilma. Tem receio de alguém achar que o livro tem um lado? Quem achar estará absolutamente correto. O livro tem lado, não fica em cima do muro. É partidário, pois toma o partido da civilização contra a barbárie.
Aliás, Lula te mandou esses dias um bilhete dizendo que está lendo o livro na prisão. Isso trouxe algum sentimento a você? Eu fiquei comovido ao saber que um homem preso injustamente reservou, nas circunstâncias dramáticas em que vive, um tempo para ler o meu livro.
Lá pelas tantas você escreve: “Alguém ainda enxerga em Moro um magistrado equilibrado, e não um contendor de Lula?”. As mensagens até agora divulgadas pelo The Intercept corroboram essa afirmação? Sim, com mais informações. Em 2018, quem quis ver viu. Isto é, já estava claro como uma operação policial-judicial foi essencialmente uma ação política cujo resultado foi levar ao Palácio do Planalto um deputado de extrema direita.
“Em 2018, anunciou-se uma orientação obscurantista na educação, nas relações exteriores, no meio ambiente e em muitas outras áreas”
Mário Magalhães
Se 2018 foi um “ano que flertou com o apocalipse”, o que 2019 está sendo? A continuidade do flerte. O ano de 2018 tão cedo não vai terminar.
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O filme Marighella estreará em novembro. Você já assistiu? Antes da filmagem, tive um encontro com o elenco. Assisti a algumas filmagens. Não vi o filme na íntegra, apenas cinco ou seis sequências, somando por volta de 15 minutos. O resultado do que eu vi é excepcional, de altíssimo nível, um filme tenso, de ação. Eu já esperava. É muito talento junto para não dar certo. Sem contar a história do protagonista, que é de tirar o fôlego, goste-se ou não de Carlos Marighella. As resistências ao filme se originam de entusiastas da censura que querem impedir cidadãs e cidadãos de terem o direito de assistir a uma obra de arte. Por enquanto, esses arautos das trevas estão sendo derrotados.
Créditos
Imagem principal: Heitor Loureiro