Música para ver

Marcelo D2 prepara o disco "Amar é para os fortes", que sairá juntamente com um filme roteirizado e dirigido por ele

por Eduardo Ribeiro em

Prestes a completar 50 anos, em novembro, Marcelo D2 anda ativo como nunca (ou como sempre?). Ele acaba de retornar de Los Angeles com o esqueleto de seu décimo álbum, Amar é para os fortes, que contará com participações de Gilberto Gil, Marisa Monte, Nação Zumbi e Seu Jorge. Em paralelo, ensaia com o Planet Hemp para compor três músicas novas e segue fazendo apresentações com o projeto Marcelo D2 & SambaDrive, em que faz versões jazz de suas músicas. Previsto para março de 2018, será o seu décimo álbum e, segundo ele, o mais inovador.

Já faz algum tempo que o D2 anda pirando em audiovisual, mas, dessa vez, decidiu levar a sério esse gosto e, para além dos tradicionais clipes — em seu disco anterior, Nada pode me parar, D2 lançou um vídeo para cada música —, decidiu criar um álbum que fosse de fato um projeto audiovisual. Assim, Amar é para os fortes narra faixa a faixa a história de Sinistro, moleque que nasce numa favela não pacificada do Rio de Janeiro e tem que sair do morro fugido por causa de tretas. Apaixonado por arte, Sinistro conhece uma artista plástica francesa e a vida dele muda. O passado, porém, o atormenta. Essa trama idealizada como roteiro e criada como música derivará para o cinema, em um filme pensado para ser lançado juntamente com o disco. 

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No meio disso tudo, também na telona, está para estrear o longa-metragem Legalize Já, de Johnny Araújo, que aborda a história da amizade entre D2 e Skunk e os primeiros passos do Planet Hemp.

A Trip conversou com Marcelo D2 , que, de boa em casa mastigando pipoca, falou sobre esse momento de sua vida criativa.

Como nasce essa ideia de fazer um projeto que unisse filme e música e o que os fãs devem esperar? Cara, eu não posso falar muito agora porque ele não está pronto, então nem eu mesmo sei. Mas posso falar em que ponto está. No último disco, eu fiz 16 clipes, um pra cada música. Depois que eu acabei de fazer esse disco, fiquei pensando porque eu não escrevi uma história pra isso, sabe... O meu próximo disco é o décimo de estúdio: três com o Planet Hemp, um em homenagem a Bezerra da Silva e seis discos solo. Fiquei com vontade de fazer uma coisa especial por ser o décimo, é um ciclo, um número legal. Nunca acreditei muito nessas porras, não. Mas pelo menos é significativo. Eu comecei no vinil, passei pelo CD e estou no digital.

O que inspirou a escrita do roteiro? Resolvi fazer uma história, estava super afim de fazer um roteiro. Parei um pouco, escrevi. Passei um ano estudando antes de escrever. As ideias foram surgindo, abrindo. A ideia de lançar um álbum visual já vem desde 2015, tipo o que a Beyoncé fez, mais ou menos o que o Frank Ocean fez também, o Daft Punk anteriormente... A ideia é um álbum visual, no meu caso um filme de ficção. É a história desse personagem que se chama Sinistro, o nome do álbum é Amar é para os fortes, e esse disco, cara... Mesmo quando você faz um trabalho solo tem muita gente trabalhando junto, né. Como eu escrevi o roteiro e quero muito dirigir, a ideia de um trabalho coletivo me soou mais interessante. E o personagem, no filme, tem um coletivo de arte chamado Mulato. E na verdade o coletivo somos eu, ele, pessoas reais.

Quantas músicas farão parte do álbum? Tenho 11 músicas novas, mas no filme são oito. Não é uma trilha sonora, o áudio do filme é o álbum. Se tirar o vídeo, você ouve o disco normalmente. Os diálogos estão dentro das músicas e entre as músicas. Quero filmar em janeiro e acho que só lança em março.

O clipe “Resistência Cultural”, que você lançou recentemente, é o primeiro capítulo da história, algo assim? Aquele clipe que saiu é uma pequena prévia. Não é o primeiro capítulo. Na verdade, seria o último, uma festa depois de tudo.

As cenas do clipe de “Resistência Cultural” têm uma estética meio hardcore, bem underground. Como surgiu essa ideia? Quando lancei o vídeo de “Resistência Cultural” eu estava à procura de uma estética e o [fotógrafo] Wilmore Oliveira me mostrou as imagens retratando a cena do rap underground do Rio. Cara, eu adoro fotografia em preto e branco e quis aquilo como estética pro clipe, porque quando você fala de resistência cultural, a maioria das pessoas acha, ou espera, que o artista coloque um coroinha com uma roupa folclórica lá. Só que, dentro daquele papo que a gente estava falando sobre revolução digital, temos um movimento de resistência cultural no meio disso tudo. É claro que aquelas coisas tipo blogueiras fitness têm milhões de seguidores, são o mais pop, mas tem uma galera foda fazendo arte, fotografia, modelos alternativos, usando a internet pra isso também. Aí resolvi não seguir um caminho óbvio, que é o que todo mundo esperaria: eu, gritando “Resistência Cultural”, e um coroa dançando maracatu, sei lá.

“Acho sempre interessante usar as ferramentas que temos no momento. A gente faz tudo no celular. Por que não fazer um filme com o celular?”

Em que estágio do trabalho vocês estão agora? Eu tenho o roteiro inteiro, já estou com as músicas prontas. Já gravei, acabei de voltar de Los Angeles com as músicas prontas. Falta uma mixagem final, mas elas já estão aí, batendo.

Quando você diz que as músicas estão prontas, são as bases? Vai finalizar no Brasil? Dessa vez eu fui pra lá pra começar o trampo. Antigamente eu fazia tudo no Brasil e finalizava em Los Angeles. Dessa vez eu resolvi ir pra lá, fazer os arranjos, tudo. Porque cada coisa no arranjo, cada movimento que a música dá tem um porquê, por causa do roteiro, pra dar o clima e os movimentos da história. Fui lá pra fazer esses arranjos, gravei umas vozes-guia, e agora estou gravando o resto das participações. Vai ter Gilberto Gil, Marisa Monte, Nação Zumbi e Seu Jorge.

Quão parecido esse novo repertório será dos seus álbuns anteriores? Esse álbum vai ter uma sonoridade nova, diferente do que já fiz. Beats novos, tem uns tambores a mais.

A história do personagem surge na forma de um relato pessoal? A história é quase autobiográfica, mas tem a ver com a história de vários moleques aí. Eu leio muito, sempre gostei de cinema, tinha certeza que uma hora ia fazer algo assim, dirigir um filme. É um filme de hip hop, então ele tem tudo que eu gosto, de Kids, do Larry Clark, a Nascido Para Matar, do Stanley Kubrick, passando por Spike Lee. Tem de tudo. Pode ser sobre o meu filho, sobre os moleques do Bloco 7. É basicamente sobre jovens vivendo numa cidade grande, e como isso é difícil. Um monte de violência e o caralho, por isso eu digo que amar é para os fortes. É difícil viver sem fazer uma merda, sem odiar, e principalmente, sem dar tiro em ninguém. Ainda mais pro moleque que nasce pobre. Mais do que o filme tem uma porrada de coisa em volta: artes plásticas, fotografia, música. Tem uma personagem que é artista plástica, eu quero criar a exposição, as obras dela.

Que tipo de tecnologia você vai usar para gravar? O filme vai ser todo gravado com celular, mas não vai ser só com aquele tipo de fotografia do “Resistência Cultural”, não. Quero experimentar mais. Desde 98, quando saiu a câmera digital  AVX1000, e depois essas DSLR, sempre gostei muito de experimentar e tal, e agora os celulares todos são 4k, né cara. Dá pra fazer uma parada legal.

Por que essa fuga ao processo tradicional de captação? Eu tenho uma carreira longa, estou há bastante tempo fazendo música, e acho sempre interessante usar as ferramentas que a gente tem no momento. E hoje a gente faz tudo no celular, nunca mais usei meu computador. Então, por que não fazer um filme com o celular? Acredito que ainda estamos vivendo um momento de mudança digital tão ou mais impactante na sociedade do que a Revolução Industrial. Está mudando completamente o comportamento do ser humano. É como no filme Her, do Spike Jonze, aquilo faz parte de uma mudança, e daqui a pouco isso vai ser normal.

Tipo um lance mais voltado também pro legado das culturas urbanas e as novas expressões. Mais do que a resistência dos mais velhos, eu quis mostrar que tem gente nova fazendo coisas interessantes e que isso não necessariamente precisa ser folclórico. A cultura não é só folclore, tá ligado? É engraçado, porque pouca gente reclamou, na real. É interessante buscar uma vanguarda de cultura, é isso.  Claro, na música eu falo sobre João do Vale, Zé Keti, Manacéia, mas tem uma porrada de gente mostrando outro tipo de beleza, não aquela imposta pela sociedade. Parece um papo antigo, mas ainda é isso. Você tem que ter barriguinha sarada e num sei o quê. Você vê que as blogueiras mais famosas são as mais saradas, mais adequadas a um padrão de beleza que é imposto. A beleza tem muitas formas: pode ser um rosto bonito, uma mente brilhante, um movimento, incorporar o movimento artístico, sabe?

Você acha que vão restar novas coisas pra explorar depois de Amar É para os Fortes? Ainda vai sobrar coisa. A música brasileira é muito rica, um disco só não cabe. Mas te digo assim: esse talvez seja o meu disco mais profundo dentro da cultura brasileira, dos tambores brasileiros. Tem tambor pra caramba, referência a uma porrada de maestros da música brasileira, Moacyr Santos, José Prates. Vai ser uma coisa diferente. Em 23 anos de carreira isso é muito bom pra mim, a liberdade de falar: “Vou fazer uma coisa totalmente diferente.” E eu tenho certeza que o que a galera espera de mim não é um outro Planet Hemp, nem um outro À Procura da Batida Perfeita. Sabe qual é? A galera espera de mim o novo.

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Como você se vê no cenário atual? Eu não vou entrar na onda do trap melódico, falando de garotinha, da balada VIP, parãrã. Minha parada é um pouco mais profunda. Acho que o rap se popularizou, obrigado a Deus por isso, porque eu acho demais ter uma porrada de banda, tem espaço pra todo mundo. Acho que é válido, tudo bem, mas eu quero meu espaço também. Tenho coisas pra falar e gosto de falar de coisas que realmente façam as pessoas pensarem. Eu ouvi o Raul Seixas certa vez falando uma coisa muito foda numa entrevista. Ele disse: “Eu faço arte, quero que me amem ou odeiem.” É preciso provocar alguma reação. Eu quero que o cara ou jogue a porra do aparelho de som no chão porque está odiando ou que ame a música. De todas as formas de arte, a música, que é a mais consumida, perdeu alguns aspectos essenciais. Tem muito entretenimento, não é mais arte. É como se fosse um videogame, algo assim. É só uma passada de tempo. Eu gosto de ser um entertainer no palco, acho que faço bem essa função de MC, botar a galera pra gritar, botar a mão pro alto, dar mosh, mas nos meus discos eu quero conteúdo bravo. O cinema é um entretenimento e tem filmes que mudam a vida das pessoas. Eu quero isso. Tocar alguém.

E essa parada de tocar as suas músicas em versão jazz que está rolando agora? Já soltamos seis vídeos. Eu sempre fui muito viciado nessas trilhas de samba-jazz brasileiro, acho que o Brasil é um dos poucos países no mundo que têm um jazz próprio. O samba-jazz a bossa nova. E esses trios, Zimbu Trio, Azimuth, Milton Banana Trio, Samba Trio, todos sempre me inspiraram muito, acho muito foda. E como esse é um ano pra fazer disco, eu não consigo ficar parado. Faz muito tempo que eu estou com esse projeto de tocar as minhas músicas em versão samba-jazz, meus amigos têm essa banda que se chama SambaDrive, um trio que toca standard de samba-jazz. Aproveitei essa coisa de estar esse ano só focado no disco novo pra fazer algum projeto pra dar rolê na Europa, tocar por lá. Nós vamos tocar em lugares diferentes de onde já estive, não são festivais, grandes casas. São clubes pequenos de jazz, para até 400 pessoas sentadas. Mal não vai fazer [risos]. Tem que manter a mente ativa.

“Me sinto muito moleque quando toco com o Planet Hemp, cara. Parece que eu tenho 16 anos, sei lá, pulando no palco”

Quais são os planos para esse projeto? Só fazer shows mesmo? Não sei aonde vai dar, não. Por enquanto vou fazer algumas poucas apresentações. Tenho oito na Europa, quatro no Rio, no Blue Note, em dois dias, América do Sul, que não está toda fechada, mas vai rolar Uruguai, Argentina e Chile. De resto quero tocar em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, algumas capitais, e depois, já foi. Depois é disco novo. É um projeto super especial, mesmo. Há muito tempo eu queria fazer isso. Estou muito feliz de poder tocar com meus amigos em lugares clássicos. Em Paris vamos tocar no Jazz Café, onde o Miles Davis e o John Coltrane se apresentaram. A ideia era essa, fazer pequenas casas e tal.

Daí tem o Planet Hemp na ativa também, né? Tá ensaiando com os caras? Estamos entrando em estúdio essa semana pra ver se conseguimos fazer duas ou três músicas. Tem coisa pra caralho ao mesmo tempo, puta que pariu [risos]! Pensei que quando ficasse mais velho teria menos trabalho. Eu tenho três letras, o Bernardo parece que tem uma ou duas também. A gente vai gravar “Crise Geral”, do Ratos de Porão, que estamos tocando nos shows. Mas não sei nem se vai lançar, só se ficar bom. Se ficar uma merda, desencana. Planet Hemp é porradaria, vamos ver como vai sair.

Quando você toca com o Planet Hemp hoje o sentimento é o mesmo das antigas? Sim, eu me sinto muito moleque quando toco com o Planet, cara. Parece que eu tenho 16 anos, sei lá, pulando no palco. E tem uma coisa também que a gente parou há 12 anos quase como uma street legend, sabe qual é? Tem uma legião de fãs, neguinho que pira e nunca viu Planet Hemp.

Fala também sobre as suas expectativas para a estreia do filme Legalize Já, sobre a história da amizade entre você e o Skunk. Poxa, tô feliz pra caralho, cara. O filme está incrível! Ficou foda, tô amarradão o Ícaro Silva (Skunk) e o Renato Góes (D2) arrebentaram, é um trabalho muito bonito.

O diretor Johnny Araújo estava receoso sobre esse nome, mas acabou que ficou, né? O que acontece é que esse é um nome forte, tá ligado? Pra levar as pessoas ao cinema e ao mesmo tempo pra explicar o que foi o Planet Hemp. Não era só sobre maconha, era muito mais, falávamos sobre liberdade, conquistar o seu espaço na sociedade. Um camarada meu falou uma parada depois de assistir aqui em casa que eu achei linda. Ele disse que o filme tem a ver com você saber que é importante. A sua importância no mundo. Era isso que estávamos buscando quando éramos moleques. Pensávamos: “Cara, o mundo é meu também. Por que eu tenho que só me foder?” Queríamos cavar o nosso espaço.

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