O que resta quando uma revolução acaba
João Moreira Salles reflete sobre os impactos de momentos de intensidade histórica da vida de quem os protagoniza em seu novo filme, No Intenso Agora
Dez anos depois do icônico Santiago, o documentarista João Moreira Salles lança dia 9 de novembro No intenso agora, em que investiga com poesia os impactos de momentos de grande intensidade histórica em seus protagonistas – incluindo a mãe do diretor. João descobriu imagens caseiras da Elisa Moreira Salles, sua mãe, na China em 1966, durante a fase inicial da Revolução Cultural. A partir daí, o diretor desenvolveu uma narrativa que mescla esses achados, cenas da França de 1968, e, em menor medida, do Brasil e da antiga Tchecoslováquia, hoje República Tcheca.
Nada foi captado, todas as imagens são de arquivo e pesquisa e, juntas, sugerem uma reflexão profunda sobre a força e as consequências de momentos transformadores. “A nostalgia é perigosa. Em essência, ela é uma paixão reacionária na medida em que nega o futuro. O movimento dela é de recuo, a utopia está no passado. As pessoas que não sobreviveram bem ao fim de 68 foram aquelas que ficaram presas àquele momento”, diz João.
LEIA TAMBÉM: A vida, dentro e fora da grande tela, de Walter Salles, um dos mais premiados cineastas do Brasil
As discussões do filme foram estendidas em uma série de entrevistas intituladas Ruas Rebeldes e conduzidas pelo jornalista Bruno Torturra, disponíveis no site do filme. A série busca traçar paralelos entre os momentos retratados em No Intenso Agora e outros contextos de mobilizações populares. Fernando Haddad, Claudio Prado e Fernando Gabeira são alguns dos nomes convidados à discussão.
João Moreira Salles conversou com a Trip sobre o lançamento, nostalgia, medo da morte e desigualdade social.
Em certo momento de No Intenso Agora, surge a frase “eu amaldiçoo o rio do tempo”. Em linhas gerais, a narrativa reflete sobre como a passagem do tempo pode afastar a possibilidade de felicidade. A imposição da morte, em Santiago, também flerta com esse sofrimento ligado a passagem do tempo. Essa é uma de suas maiores aflições? Imagino que se trate da aflição de muita gente, e em especial daquelas que não têm fé ou metafísica. Alguém já escreveu que a morte é uma verdade que o homem é incapaz de admitir, mas também, e infelizmente, muito capaz de compreender. Para escapar desse impasse, dizem, seria preciso uma aliança entre o necessário (não morrer) e o impossível (viver para sempre). Imagino que esse paradoxo descreve o que os gregos chamavam de trágico, esse traço da nossa condição humana: o que sabemos não cabe no nosso equipamento mental. Dito isso, a frase não é minha, é de Mao Zedong e aparece num poema dele. Eu não passo meus dias metido num quarto escuro contemplando a passagem inexorável do tempo. É o contrário. Porque tenho bem viva a consciência de que o correr dos dias é o ruído de fundo de tudo que a gente faz, de duas uma: ou busco modos de manter certa distância mental do problema, ou, inversamente, torno-o menos assustador tentando dar-lhe nome e forma. No primeiro caso, estou falando de amor, família, amizade, trabalho, bichos (meus cachorros, principalmente), Botafogo – tudo que, ao menos para mim, representa o contrário da morte; no segundo, me refiro aos próprios filmes, pois fazê-los me ajuda a domesticar a besta.
Os momentos de felicidade vividos por sua mãe na China são apresentados como raros. A tristeza que ela enfrentou impacta de alguma forma a sua forma de fazer cinema e de entender a vida? De certa forma, sim. A ideia de que se pode perder a capacidade para ser feliz, não necessariamente em conseqüência de fatores externos, é algo em que penso bastante. É como se a alegria fosse uma espécie de competência. O fato de você já tê-la dominado não é garantia de que ela não será desaprendida É uma constatação banal, mas que me marca.
Outra citação do filme anuncia que “a nostalgia precoce vai te matar”, em referência a dificuldade de seguir depois de momentos muito intensos, pensamento que guia o filme. Essa “ressaca” é, em sua opinião, o ponto principal do documentário? De onde surgiu essa reflexão? Por que considerou importante falar sobre ela? Talvez a citação não seja exatamente essa – não consegui localizar a frase – mas o espírito está correto. Minha impressão é de que a nostalgia é perigosa. Em essência, ela é uma paixão reacionária na medida em que nega o futuro. O movimento dela é de recuo, a utopia está no passado. As pessoas que não sobreviveram bem ao fim de 68 foram aquelas que ficaram presas àquele momento. É o risco que corre todo mundo que passa por momentos de grande intensidade, momentos de paixão política, amorosa, estética, erótica ou o que seja. A intensidade, claro, não se sustenta, seria impossível. Como diz Drummond no fim do poema conhecido, depois de se oferecer a Máquina do Mundo se fecha. O negócio é saber encontrar sentido no que vem depois desse recolhimento. Passado o momento, o que sobra é uma estrada pedregosa em Minas, e há quem encontre nela outro tipo de beleza, uma emoção mais quieta e igualmente tocante. O que é sereno também comove. Em 1985, Fernando Gabeira, já de volta do exílio, foi entrevistado por Daniel Cohn-Bendit, um dos líderes estudantis do 68 francês. Cohn-Bendit queria saber como Gabeira, depois de tanto tempo fora, se preparara mentalmente para voltar ao Brasil. Gabeira respondeu: “O passado não me interessava, eu queria me adaptar o mais rapidamente possível à realidade presente, e trabalhar a partir dela”. É isso.
O paralelo entre maio de 68 na França e junho de 2013 no Brasil está sendo feito em Ruas Rebeldes, no site do filme, mas não existe de maneira clara no documentário. Você pensou em incluir alguma referência direta no roteiro? Por que? Comecei a trabalhar no filme em 2011, portanto ele é anterior aos eventos de 2013. Quando junho explodiu, já estava a meio caminho. Na realidade, os paralelos estabelecidos no site não são apenas com 2013, mas também com a contracultura dos anos 60, com as Diretas Já, as Primaveras Árabes, o movimento Occupy. Tenho a impressão de que todos esses movimentos fazem parte do campo gravitacional do filme, não porque o documentário os comente explicitamente, mas porque há um impulso comum que os une. Nas conversas que se seguiram às projeções do filme fora do Brasil, os temas que vieram à tona foram determinados pelo contexto político do país em que o filme estava sendo visto. Na Argentina, as pessoas faziam paralelos com os movimentos de rua de 2011; nos Estados Unidos, com o Occupy; na França, claro, o tema foi maio de 68; em Israel, discutiu-se a apatia da esquerda diante da avassaladora ocupação de todo o espaço político pela direita. Numa projeção recente nos Estados Unidos, uma jovem turca deu um depoimento tocante sobre o protesto do Gezi Park, que, assim como o nosso, também aconteceu em 2013. Em todos esses casos, as pessoas encontraram paralelos entre a experiência delas e a dos jovens de 68. Falou-se de luta, de engajamento, de conquistas, de derrotas e do vazio que se segue à dissolução da intensidade.
O filme fala sobre situações em que uma fresta com uma ideia revolucionária se abre e depois de fecha, mas isso basta para que saibamos que ela existe e isso pode ser transformador. Os desdobramentos de junho de 2013 no Brasil foram radicalmente contrários ao que se propunha no início dos protestos. Mesmo assim, você acredita que esse fracasso pode trazer ainda alguma evolução? A frase não é minha, mas de Cohn-Bendit, na entrevista que deu a Sartre durante os dias de maio. Tenho pensado bastante na dinâmica desses movimentos espontâneos e abertos, de demandas difusas. Talvez um dos traços que os caracterizem é a incapacidade de determinar de antemão suas conseqüências. Nesse sentido, operam como sistemas complexos, nos quais alterações sutis nas condições iniciais (um aumento de tarifa, uma marcha reprimida com violência descabida pela polícia, o desaparecimento de um trabalhador numa favela carioca, um Jornal Nacional que dá destaque aos Black Blocs) desencadeiam processos que, ao se concluírem, dão em desfechos dramaticamente diferentes daqueles imaginados. A imprevisibilidade não é uma falha do processo, é a característica mais essencial dele. Não se trata de fracasso ou sucesso, mas de controle ou descontrole. Não creio que haveria impeachment sem 2013, o que não significa que as pessoas saíram às ruas em 2013 para destituir a presidente, por mais impopular que ela fosse. É provável, inclusive, que boa parte dos manifestantes de junho pertencesse ao campo que se define como progressista e se horrorizaria com os eventos de 2015 e 2016. Os efeitos de 2013 são muitos, e vários deles ainda estão em curso ou sendo gestados.
Você narra o filme e isso te coloca entre os protagonistas. Como é pra você se ouvir em cena? Não gosto da minha voz, mas não tinha outro jeito. O filme é pessoal, portanto exigia uma narração na primeira pessoa. Em Santiago, cheguei a sair pela tangente pedindo a meu irmão Fernando que falasse por mim. Acontece que não se dá o mesmo golpe duas vezes, de modo que agora o narrador sou eu. Por essa razão, assistir o filme é penoso para mim.
Você é crítico ao “modus operandi” da produção cinematográfica brasileira, em que documentaristas de classe média/alta se propõem a gravar a vida nas favelas, por exemplo. O tom autobiográfico, presente também em Santiago, é uma linguagem que você encontrou para fugir dessa armadilha? Sim.
Outra citação do filme é a de que “a sociedade é uma flor carnívora”. O que isso significa?Essa é uma daquelas belas frases que apareceram nos muros de Paris, sem as quais Maio não seria o que foi. Muita gente comentou que elas devem mais ao surrealismo do que a Marx. Fica a cargo de cada um interpretá-las, o que é parte da dimensão libertária do período. Se tivesse de dar um palpite sobre essa aqui, diria que ela tem perfumes anarquistas; que suspeita de toda estrutura que tenta organizar a vida social. É como se as sociedades acabassem por devorar quem delas faz parte. Resta saber qual seria a alternativa. Dito isso, um alerta: não se deve menosprezar o puro efeito retórico dessas frases de maio. Talvez elas soem mais profundas do que realmente são. Acho que uma das graças do período é esse fascínio com a própria imaginação. Talvez o objetivo seja apenas provocar um curto-circuito no nosso raciocínio e com isso prestar um serviço poético ao nosso pensamento. No caso, então, melhor pirar na ideia do que tentar esclarecê-la.
A ideia de que a elite brasileira[a família Moreira Salles é dona de uma das maiores fortunas do país] carrega alguma responsabilidade pelas enormes desigualdades sociais no país faz sentido para você? Essa percepção guia de alguma forma sua produção cinematográfica ? Somos o que somos: um país que, após quinhentos anos de história, tem a mostrar ao mundo uma sociedade ofensivamente injusta. A responsabilidade por esse estado de coisas não será de quem está do lado errado da desigualdade. Acho que as pessoas fazem cinema, escrevem, cantam, pintam e, de um modo geral, se manifestam para dar forma ao que as cerca. Sou brasileiro e sou cercado pelas glórias e misérias do meu país. Não posso fazer um cinema sueco.
Para além dos documentários, você está por trás também da revista Piauí e no Instituto Serrapilheira. Qual a importância desses projetos no âmbito pessoal e também social? São projetos que me dão alegria, tanto pelo que realizam quanto pela chance que me dão de conviver com as pessoas envolvidas neles. Para além dessa dimensão pessoal, há a questão dos bens públicos, uma ideia na qual tenho pensado bastante. Quero que a Piauí e o Serrapilheira se tornem isso, independentemente de eu estar lá ou não. Talvez meu afastamento seja até essencial. Criar coisas sem dono, que tragam algum resultado e possam ser boas para a nossa vida em comum. É o que tem passado pela minha cabeça.
Créditos
Imagem principal: Divulgação