Pelo fim da vida merda!

Esta é a grande, a verdadeira, única e monumental causa da Trip: dedicar cada segundo de nossas existências para que não tenhamos uma vida merda

por Paulo Lima em

“O que aconteceu? Todo mundo virou cientista? Agora tudo é ‘experiência’? Ninguém mais vai a um evento, mas vive uma experiência... Não são mais prédios, mas experiências imobiliárias... Churrascaria não oferece carne, mas uma experiência proteico-gastronômica.”

As frases acima, disparadas num tom insolente de protesto por um amigo que costuma antever movimentos como uma espécie de oráculo moderno involuntário, podem soar um pouco exageradas e com doses aumentadas de rabugice. Mas é fato que certas expressões e, pior, certos conceitos, têm a estranha habilidade de invadir cérebros menos protegidos e se alastrar como epidemias nefastas pela linguagem e pelo comportamento da sociedade. A ideia de “causa” corre seriamente esse risco. Pode não estar distante o dia em que uma criança deixe de desejar uma bicicleta e passe a se identificar como um ativista da causa da mobilidade sustentável. O jardineiro se apresentará como um soldado da causa da saúde da flora, um esteta das samambaias, e o pizzaiolo andará com o crachá da associação pela defesa das tradições napolitanas...

Feitas as devidas salvaguardas, você verá nas próximas páginas uma seleção de algumas das causas que perseguimos nessas três décadas de Trip. Não resta dúvida de que, no cenário dos últimos 30 anos de um país imaturo e adolescente como o nosso, empunhar estandartes como o combate à mentira na propaganda tabagista, advogar pela igualdade de gêneros e pela criminalização do racismo, entre outras batalhas, têm algo de relevante.

O arquiteto Oscar Niemeyer - Crédito: Christian Gaul

Mas, quando penso na verdadeira causa da Trip, me lembro de outro oráculo, consagrado não só como um dos maiores gênios da história recente mas também com a autoridade de quem viveu mais de um século de forma atuante, original e corajosa: Oscar Niemeyer. Uns 20 anos atrás, Oscar, então um garoto com cerca de 90 anos de idade, aceitou generosamente receber a equipe da Trip para uma memorável entrevista de Páginas Negras (bit.ly/trip-niemeyer). Fiz questão de encabeçar o time pessoalmente, escalando para a tarefa o arquiteto e designer gráfico Rafic Farah, o então diretor de redação da Trip Giuliano Cedroni, entre outros bravos companheiros. Antes de seguir para o Rio de Janeiro, como mandam as boas práticas, fizemos pesquisas aprofundadas e preparamos o que tínhamos de melhor em termos de perguntas que julgávamos mais pertinentes e inteligentes para formular ao maior arquiteto vivo da época. Chegando ao famoso escritório/ateliê de Niemeyer perto do forte de Copacabana, devidamente recebidos por ele e seu assistente e instalados numa mesa ampla e confortável, foi impossível não perceber um certo ar de enfado no semblante marcado e ligeiramente mal barbeado do parceiro de Lúcio Costa. 

Quanto mais elaboradas e bem tramadas as perguntas sobre a importância da arquitetura, as obras realizadas e mesmo sua biografia, mais evasivas as respostas e profundos os suspiros. A certa altura, Niemeyer, apontando para uma estante repleta, dispara o tiro de misericórdia: “Meus filhos, sobre isso eu já falei tudo o que tinha para falar. Vocês podem levar alguns desses livros... Está tudo lá. Arquitetura não importa, nada disso importa muito, o que importa é gente”. 

Como líder da brigada da Trip, cabia a mim tentar ressuscitar a entrevista que naquele momento parecia mais morta e inútil do que uma bicicleta de spinning em casa de saci. O que de melhor me ocorreu para o momento foi virar o barco na direção para a qual o velho prático apontava: “Então, Oscar, o que precisamos saber para lidar melhor com gente?”. De repente o rosto emoldurado por orelhas enormes se iluminou levemente. A carranca cedeu um pouco e um pingo de interesse foi tomando seu lugar. Oscar, que até então olhava mais para o tampo da mesa do que para nossos olhos, ergueu sua torre de comando em nossa direção e disparou a frase lapidar de precisão e grandeza raras:

“O importante é não ter uma vida merda”.

E explicou com mais algumas frases soltas... “Não se deixe levar pela ganância, por objetivos menores, que não levem em conta o todo, que não defendam os interesses dos outros além dos seus próprios, que não pensem no coletivo. Enfim, não deixe que a sua vida seja uma vida merda...”

É esta, na verdade, a grande, verdadeira, única e monumental causa da Trip.

Dedicar cada segundo de nossas existências para que não tenhamos uma vida merda.

Nenhum de nós.

Créditos

Imagem principal: Christian Gaul

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