Dá para manter a sanidade mental durante uma pandemia?

Os impactos dessa crise ainda são incertos, mas ela expõe as fragilidades e angústias que já nos atormentavam. Jorge Mautner, Juliana Alves, Christian Dunker e Vera Iaconelli refletem sobre o assunto

por Nathalia Zaccaro em

"O vírus pega a gente nas nossas próprias fantasias", diz a psicanalista Noemi Moritz. Está difícil mudar de assunto. A vida de todo mundo foi atravessada pela pandemia da Covid-19, mas os impactos dessa crise na saúde mental de cada um são diferentes. E, mais que isso, são reflexos de quem somos, nossos medos e desejos. "Quem tem muito temor do adoecimento, por exemplo, chega a sentir a dificuldade de respiração. Quem sofre de paranoia sente que precisa estocar coisas. Cada um sofre de acordo com sua psique", diz Noemi, que, desde o início da quarentena, viu aumentar significativamente o número de pacientes que a procuram.

"As pessoas mais frágeis se aprumam muito nesse momento, precisam promover suas autonomias, inclusive a digital", diz a psicanalista Noemi Moritz - Crédito: Luiz Maximiano/Acervo Trip

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“Um inimigo real, como o vírus, pode fazer sossegar os inimigos imaginários, mesmo que por pouco tempo”
Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP

Apesar do isolamento ser frequentemente relacionado à ideia de tédio, a situação é, na verdade, marcada por uma forte sensação de novidade e imprevisibilidade. "O contexto ainda está sendo absorvido. É algo que veio e mudou o cotidiano das pessoas, transformou os regramentos e impactou as relações. Tem muita gente se separando, se vendo obrigada a viver junto com alguém e combinados que evoluem ou são desfeitos. É muita novidade intersubjetiva ao mesmo tempo. Pode acontecer o reforço das práticas de tratamento selvagem, métodos que as pessoas inventam para tratar o sofrimento, como cocaína contra depressão e a maconha contra a ansiedade, por exemplo", avalia Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP.

Espelhos

A ilustradora Maria Lúcia Rigon, de 26 anos, já tinha um diagnóstico de depressão e, com a nova rotina, tem sentido que está "fracassando miseravelmente" em manter seu equilíbrio emocional em meio à crise. "Sinto que não vou conseguir atender às expectativas do que é esperado que eu produza neste tempo. Para mim, pega muito a falta de controle. Do nada, tudo virou de ponta cabeça", diz. 

Para Dunker, as pessoas que já viviam um estado de angústia prévio devem experimentar uma quebra em seus mundos psíquicos. "Quem vinha variando de uma expectativa ansiosa para outra de repente teve sua vida impactada por algo externo. Isso lembra as pessoas que existe algo para além do 'eu' e de seus espelhos. Um inimigo real, como o vírus, pode fazer sossegar os inimigos imaginários, mesmo que por pouco tempo", avalia.

Confinada no interior de São Paulo com a mãe e o marido, a fotógrafa Nathália Curti percebeu que o caos externo a ajudou, de alguma maneira, a organizar suas tensões emocionais. Há anos convivendo com a depressão e o transtorno de personalidade borderline, ela sente que o contexto da quarentena a colocou em um lugar de controle. "Eu recorro muito ao sono. Antes eu acordava às 13h sempre me sentindo muito culpada. Agora, se eu preciso dormir 10 horas, não me sinto culpada. Eu me permito e aí fica tudo mais leve. Comecei a fazer coisas que eu não conseguia fazer antes, como praticar exercícios físicos, por exemplo", diz.

"O risco para a saúde mental é grande porque perdemos uma série de recursos e defesas que tínhamos na rotina e que disfarçavam algumas coisas", diz Vera Iaconelli - Crédito: Divulgação

Portas fechadas

“É um véu da vida que desaparece e as relações ficam em primeiro plano. Perdemos recursos e defesas da rotina que disfarçavam algumas coisas”
Vera Iaconelli, psicanalista

Quem está vivendo o confinamento encara dois processos simultâneos: a privação da vida fora de casa e, muitas vezes, o excesso do contato íntimo com a família ou com quem divide o teto. "É uma situação em que existe um grande potencial para encarar os problemas, mas a verdade é que também existem becos sem saída. E isso vai aparecer. É um véu da vida que desaparece e as relações ficam em primeiro plano. O risco para a saúde mental é grande porque perdemos uma série de recursos e defesas que tínhamos na rotina e que disfarçavam algumas coisas", explica a psicanalista Vera Iaconelli. 

Durante o primeiro mês em isolamento, a atriz Juliana Alves desenvolveu algumas estratégias para não desgastar o relacionamento com o marido e a filha, com quem divide o tempo na quarentena. "A privação de novos espaços parece potencializar tudo. Não conseguimos extravasar um desentendimento, por exemplo. Fica com aquela ideia fixa.  Então, eu procuro silenciar. Entender que não vai ser durante a quarentena que vou resolver questões conjugais. Estabeleci alguns limites e priorizei alguns pontos. As outras coisas ficarão para depois", conta. Juliana é mãe da pequena Yolanda, de 2 anos, e precisa lidar também com as pressões que a maternidade traz em meio à crise. "Mãe está sempre culpada, né. Me preocupa muito que a quarentena seja prejudicial para ela. Tento ao máximo protegê-la deste momento assustador e inseguro, mas alguns impactos são inevitáveis", diz.

Juliana Alves e Yolanda: maternidade no confinamento - Crédito: Divulgação

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Da porta pra fora

Em momentos de quebra da normalidade, ficam ainda mais explícitos os impactos dos privilégios de classe na saúde emocional. Se é complexa a situação do confinamento para qualquer pessoa, a realidade de quem não consegue se proteger é bem mais delicada. Gilson Rodrigues, líder comunitário da imensa favela de Paraisópolis, em São Paulo, optou por se afastar dos dois filhos pequenos para poder se dedicar à criação de estruturas de apoio para o enfrentamento da Covid-19. Mas lidar com a solidão é só uma das cargas mentais que ele precisa suportar durante o período.

"As recomendações oficiais de saúde só são possíveis para as classes média e alta. A população aqui se sente ignorada por essas narrativas. Existe uma enorme agitação local, uma agonia em ter comida em casa. Já registramos casos de surtos, crises de ansiedade, pânico, depressão, pessoas que temem infectar seus avós em casa, mas não têm outro lugar para dormir. Estamos criando uma rede de apoio dentro da comunidade. Vamos precisar contar uns com os outros", diz.

As comunidades carentes do país podem ser o palco das piores tragédias de pandemia. Mas é ali, também, que se criarão as redes comunitárias mais fortes e solidárias. "O vírus traz um paradoxo. Com todo mundo sob stress, fica difícil saber se podemos contar uns com os outros. Mas, como só sairemos dessa juntos, é possível que seja disseminada também a empatia", afirma Gilson.

Jorge Mautner em sua casa: "Sinto medo, sim. Mas o medo me fascina, o transformo em curiosidade. Tudo é absurdo" - Crédito: Leo Eloy/Divulgação

Os idosos também têm experimentado realidades muito diferentes das que estavam habituados. Se por um lado estão ainda mais isolados que o resto da população, por outro se tornaram protagonistas deste contexto. "As pessoas mais frágeis se aprumam muito neste momento, precisam promover suas autonomias, inclusive a digital", opina Noemi.

Aos 79 anos, o músico Jorge Mautner desenrolou estratégias físicas e mentais para passar pela pandemia. "Faço ginástica chinesa, o tai chi chuan, por até umas 7 horas por dia. É ótimo! Fico fazendo e assistindo televisão. Ajuda também no meu humor", conta. Confinado com a esposa no Rio de Janeiro, ele dribla a solidão se comunicando com suas filha, Amora, e com seus amigos pelo telefone. Segundo Mautner, dá para matar a saudade também nos sonhos. "Sempre encontro meu parceiro Nelson Jacobina, que já faleceu, em meus sonhos", diz. Um pouco de poesia ajuda para tudo, sempre. "Essa doença mata mesmo os idosos, expõe a condição da vida e a complexidade da matéria. Sinto medo, sim. Mas o medo me fascina, o transformo em curiosidade. Tudo é absurdo", diz. 

Créditos

Imagem principal: Heitor Loureiro

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