Uma vez nômade, sempre nômade
Convidado da Flip 2019, o escritor angolano e membro da banda Buraka Som Sistema, Kalaf Epalanga, fala sobre identidade, imigração e seu novo livro
Engana-se quem pensa que todo escritor se agarra a palavras preferidas. Para Kalaf Epalanga Alfredo Ângelo, o que importa é transmitir uma ideia certeira da forma mais simples possível. “Não me apego a palavras”, diz o autor angolano, convidado da 17ª Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece entre 10 e 14 de julho. Radicado na Europa, Epalanga costuma escrever livre e longamente – mas depois volta às páginas para lapidar o texto, linha a linha, eliminando tudo o que julgar dispensável. Resta, assim, o essencial.
Nas palavras que o escritor escolhe preservar, pode apostar que há um porquê. A começar pelo próprio nome: “epalanga” era o conselheiro real que, na ausência do monarca, tomava as rédeas de antigos reinos no sul de Angola – um tipo de vice-rei. Era este o apelido de seu avô, Faustino Alfredo, um ex-estudante de teologia que virou militante marxista e aderiu ao Movimento Popular de Libertação de Angola. Assim, Epalanga busca honrar sua memória.
Outra palavra-chave é “kuduro”, o estilo musical que nasceu na periferia de Luanda e lhe deu projeção internacional a partir da banda Buraka Som Sistema, na década de 2000. A expressão é referência literal a quadris duros, tal qual a dancinha sem ginga estrelada pelo ator belga Jean-Claude Van Damme no filme Kickboxer (1989), o muso do kuduro.
A história está nas primeiras páginas de Também os brancos sabem dançar (2018). O livro narra a trajetória de um artista angolano que, a caminho de um show em Oslo (Noruega), acaba detido na fronteira por tentativa de imigração ilegal. O autor, nascido em Benguela (Angola) e radicado desde os 17 em Lisboa, trata de questões como identidade e imigração no romance de autoficção (que mescla autobiografia e ficção). “Admiro quem consegue criar com a habilidade de desligar o mundo lá fora e só olhar para a beleza do verbo. Eu não sou assim. Parte da minha identidade é definida pela política. E isso se reflete no que eu escrevo”, diz.
Autor dos livros de crônicas Estórias de amor para meninos de cor (2011) e O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço) (2014), Kalaf Epalanga vive entre Lisboa e Berlim. Da capital alemã, o escritor conversou com a Trip sobre arte, literatura e política – e adiantou detalhes de seu novo livro, Como criar crianças negras em Prenzlauer Berg. “Uma vez nômade, sempre nômade. Estou constantemente buscando sair da minha zona de conforto. Vou atrás de histórias que me são intrigantes”, diz.
Trip. Atualmente, você vive entre Lisboa e Berlim. Você definiu Lisboa como "um porto" imaginário e real, certa vez. Como definiria Berlim?
Kalaf Epalanga. Berlim é uma descoberta. Por volta de 2004, visitei a cidade, que é fantástica e tranquila, com muita arte e muita cultura, mas ficou por aí. Desde 2009, quando arranjei um apartamento aqui e me mudei, notei que, por trás dessa fachada artística, há outra porta: uma cultura do conhecimento, que é uma vontade de saber das coisas – e saber das coisas com profundidade. Nunca tinha vivido em uma cidade de ares intelectuais e valorização do conhecimento científico nesta dimensão. Tem sido uma experiência impressionante. E tem me permitido aprender muito sobre outros pontos da história da África pré-colonial. Aliás, não por acaso, foi aqui que foram discutidas as fronteiras africanas [líderes europeus decidiram a partilha do continente na Conferência de Berlim de 1885]. Portugal, por razões históricas, obviamente me ajudou a compreender a história colonial da África. Mas, agora, estou conseguindo ver um quadro maior, do Marrocos à África do Sul.
Onde você se sente em casa – Berlim, Benguela, Lisboa, Luanda? Uma vez nômade, sempre nômade. Lar é onde está minha família, mas não tenho a ideia de casa como um lugar fixo. Estou constantemente buscando sair da minha zona de conforto. Quer dizer, constantemente em busca do que eu não sei – e não do que eu sei. E isso me leva a diversos lugares. Tenho projetos de temporadas, de visitar lugares onde nunca estive ou revisitar lugares onde já estive, mas por breves períodos e novos olhos. Vou atrás de histórias que me são intrigantes.
No livro Também os brancos sabem dançar, você perpassa questões sobre identidade e imigração. Que impressões você tem sobre a condição de imigrantes e refugiados na Europa atualmente? Tento ver o mundo em duas dimensões. A primeira é individual, o encontro um a um, em que um indivíduo te diz coisas próximas do coração. A segundo é coletiva – e os grupos não necessariamente se movimentam na mesma direção que o indivíduo. Isto é, no plano individual, as pessoas podem pretender ser genuinamente boas umas com as outras; mas, no coletivo, há mais dissonâncias e conflitos. Muitas vezes, mais retrocessos do que avanços. A Europa está envelhecendo e, nas sociedades mais envelhecidas, a tendência é tentar manter as coisas como elas são, apegando-se ao passado por pensar que o futuro é assustador. O continente está se confrontando com essa realidade. De certa forma, as sociedades dominadas por uma maioria caucasiana está se confrontando agora com a sua própria mortalidade. Isso faz com que o novo, o desconhecido seja visto como assustador. Então, no plano individual, sinto que os imigrantes sejam tratados como bem-vindos. Mas, no plano coletivo, eles são encarados com certa desconfiança e, às vezes, com violência também.
Você traz diversos elementos autobiográficos no livro. Logo nas primeiras páginas, inclusive define-se o narrador como "um agitador cultural", expressão escolhida para te definir na imprensa portuguesa. Você se identifica assim atualmente? Quem usou a expressão pela primeira vez foi um jornalista português, por volta de 2002-2003, na época em que me lancei na música. E a expressão pegou, ao lado de outra: poeta-cantor. Não foi invenção minha. Não levo assim tão a sério – e confesso que há uma boa dose de ironia quando tento definir quem eu sou e o que eu faço. Minha ideia de biografia não é a soma de fatos de minha trajetória. Aspiro ser uma pessoa que toca, provoca e acende e uma faísca em algumas pessoas. Para mim, importa menos o que eu fiz factualmente aos 20, 30 e agora 40 anos – e mais o que eu fiz as pessoas sentirem. Então, a ideia de agitador cultural cai quase como uma luva. A história se movimenta, porque nós nos movimentamos. Penso que o meu papel não é ser movido pelo ego (dizer "eu fiz isso", "conquistei aquilo"), mas é saber, no fim do dia, como contribuí para um bem maior. Nós precisamos uns dos outros: precisamos da arte, da ciência, da política. A sacada é encontrar equilíbrio entre todos nós.
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Chico Buarque venceu o Prêmio Camões 2019. Bob Dylan recebeu o Nobel de Literatura 2016. Como músico e escritor, que pontes você vê entre música e literatura? Música e literatura se cruzam, mas não necessariamente sempre. Conheço escritores que buscam inspiração escrevendo canções e conheço músicos que criam a partir de um livro, um filme, uma fotografia. Os fins justificam os meios. E eu diria que, para mim, o importante não é o título ou o prêmio dos artistas. O importante é a arte. Quando você citou os prêmios, Camões e Nobel, dados a músicos, o que me ocorreu foi que, daqui a 50 anos, talvez se premie alguém pelo conjunto das obras veiculadas no Twitter. Ora, há tuiteiros talentosos – e quem vai dizer se é literatura? Quem define o cânone absoluto da arte? Há, por exemplo, uma poetisa que se consagrou após publicar seus versos no Instagram: Rupi Kaur, autora de Outras jeitos de usar a boca. Então, o que ela produz é mais importante do que o meio que ela escolhe divulgar. E Chico Buarque é romancista e escreve pra caralho [risos].
E entre arte e política? Admiro quem consegue criar livre dessa condição [de relacionar política e arte], com a habilidade de desligar o mundo lá fora e só olhar para a beleza do verbo. Eu não sou assim. Parte da minha identidade é definida pela política. E isso se reflete no que eu faço, no que eu escrevo. Imigrações, por exemplo, é um assunto que está à minha volta. É uma realidade política. Todos os livros que pretendo editar têm essa tônica.
Certa vez, você comentou que seu avô Faustino Alfredo Epalanga era absurdamente correto, a ponto de lhe faltar o jogo de cintura, o 'esquema'. É tipo o jeitinho brasileiro? Esquema é tudo. Outro dia estava assistindo a O Mecanismo, de José Padilha, que ilustra bem essa expressão. Esquema é mecanismo, é jeitinho, é jogo de cintura. É o que mantém a roda girando. Há quem encare a habilidade de articular esquemas como algo positivo ou algo negativo – e há quem considere o esquema como algo próprio da política. São as brechas no sistema social, um tipo de zona cinzenta onde prevalecem improvisações. Não sei se é possível ficar inteiramente imune a isso tudo.
O que você define primeiro quando está escrevendo, o título ou a história? Depende. N’O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço), o título veio primeiro, como conceito. No romance Também os brancos sabem dançar, o título foi um presente do amigo José Eduardo Agualusa [premiado autor angolano]. Ele me citou um provérbio, que diz: também os brancos conhecem boas canções, que quer dizer não julgar ninguém pelas aparências. A ideia, a intenção do provérbio estava no livro, que é a tônica de todos que defendem as imigrações, que é um dos pilares das discussões globais, ao lado da igualdade de gênero. No fundo, é não julgar ninguém que chega às fronteiras com uma mão na frente e outra atrás, muitas vezes vindos de zonas de conflito.
O que está escrevendo agora? Como criar crianças negras em Prenzlauer Berg, que é um livro sobre a experiência da paternidade. Meu filho mais velho tem 2 anos e meio. O livro parte desse bairro que se desenvolveu depois da queda do Muro de Berlim [1991]: reuniu primeiro músicos e criativos, gentrificou, virou classe média, atraiu publicitários e agora está vivendo a fase do baby boom. É até estranho quem não tem crianças aqui. O título é uma provocação não só sobre como criar crianças negras (o que é absurdo, afinal, cria-se como se cria qualquer outra criança), mas sobre a trajetória do bairro.
Qual a expectativa nesta visita ao Brasil? Já estive no Brasil na condição de músico e de turista. Estive na Flip 2017, para assistir, então minhas expectativas estão calibradas: já sei como é a dinâmica e não estou tão nervoso. Festival sempre dá certa ansiedade, mas, no caso de Paraty, como vi a forma festiva de celebrar a literatura ali, isso me dá certo alento e ansiedade positiva.
Créditos
Imagem principal: Ali Mousavi/Divulgação