É assim que termina

Nos últimos dias de meu pai, havia a Ana Maria Braga, o cheiro de urina, doença e morte

por André Caramuru Aubert em

 

 

Você olha para a parede branca à sua frente, vira a cabeça para o lado direito, olha a porta marrom gasta do armário; agora vira para o lado esquerdo, olha o céu muito azul e a copa da árvore junto à janela, que tem num galho uma maritaca muito verde, mas você não vê a maritaca, apenas ouve. Agora olha de novo para a frente, para a TV (que sempre jurou desprezar) pendurada na parede. Você respira com dificuldade enquanto espera pela fisioterapeuta e, antes dela, o copo de Sustagen. Você aumenta o volume da TV para ouvir melhor a Ana Maria Braga, “sua amiga de todas as manhãs”, e deixa de lado os grossos volumes das biografias de Santo Agostinho e Carlos Magno, que jamais acabará de ler.

Você tem a alma transtornada e reclama que não gosta de suco de uva. Reclama das enfermeiras, do purê de batatas. Você morre de medo de sua segunda mulher, e o maior pavor que tem, depois da morte, é que ela venha fazer-lhe uma visita. Você outro dia mesmo sonhou que ela o levava embora. Nossa, aquilo foi um pesadelo e tanto, não é mesmo? Você não quer morrer, mas começa a desconfiar de que não está melhorando e que talvez não se recupere mais, mas faz com que essa ideia passe rápido por sua cabeça, a Ana Maria Braga ajuda nisso.

Passa o dia, à noite eu volto para casa e me despeço. Vou viajar. Vou surfar, vou me lembrar que sou, também, marido e pai. Você ficará com as enfermeiras 24 h por dia e provavelmente sua filha virá visitá-lo. Você olha para mim e suas últimas palavras, balbuciadas sob a dificuldade respiratória, são: “Não me abandone aqui sozinho”. Fico com raiva, quero berrar que o pai que você foi não lhe dá o direito de me dizer isso e que ficar em casa com o cheiro de urina, doença e morte que você trouxe é uma tortura, mas me controlo e respondo, sereno, que você não está abandonado, que terá companhia o tempo todo, e que domingo à noite estarei de volta. Eu não sabia, mas quase desconfiei, não nos veríamos mais.

Na segunda-feira, logo cedo, tenho uns minutos a sós com você, na morgue do hospital São Luiz, até que chegue o serviço de remoção de corpos da prefeitura. Um pano amarrado no alto da cabeça segura seu maxilar, você está azulado, você não está bonito, a morte não é bonita. Ali eu penso na nossa história e me despeço. Eu estou, sim, triste. A morte é definitiva. Na lembrança mais antiga que tenho com você, eu estou na Vespa prateada, de pé, preso entre suas pernas, segurando o guidão, olhando o velocímetro quebrado à minha frente, e você dirige, devagar, saindo da praia onde nasci e morávamos, em direção à cidade de Ubatuba. Eu não tinha muito mais que 3 anos, e pouco tempo depois desse dia você e minha mãe se separaram e você voltou para São Paulo. A partir daí, sua figura paterna seria para mim uma quase permanente ausência.

Rios de prazer

Você morreu às 5h30 do dia 9 de fevereiro de 2009, no hospital, embora tenha estado em casa até tarde da noite do dia anterior. Depois da infância em Ubatuba, os três meses em que viveu em nossa casa, sofrendo com a fibrose pulmonar terminal, foi o tempo de convívio contínuo mais longo que tivemos. Foi um dos períodos mais difíceis que atravessei, que vejo agora como uma densa, escura e turbulenta nuvem.

Você foi ausente por mais de 40 anos e agora exigia purê de batatas, atenção, amor? Depois daquela conversa em que você pediu perdão pelo pai que foi, e eu perdoei, ambos fingindo ser sinceros, aconteceria, quem sabe, um milagre? Você seria capaz de deixar o egoísmo de lado e olharia para os filhos, para os netos, para as pessoas em volta? Você conseguiria, além de exigir tudo para si, doar-se um pouco, apesar da doença? Você e eu, no fundo, sempre soubemos que não. Você tinha uma alma muito, muito atormentada. E, se antes havia pelo menos a casca de um homem alto, culto, desajeitado e com algum charme, agora a doença apodrecera a casca. Nos últimos dias havia apenas o céu muito azul com a maritaca na janela, a Ana Maria Braga, o cheiro de urina, doença e morte. É assim que termina.

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