Os caminhos para estarmos juntos
Encontro do Trip Transformadores 2018 reuniu palestras e debates com o tema "Conviver é possível?"
Os tempos estão difíceis, independentemente de qual seja a orientação política de cada um. O bombardeio de notícias falsas e reais, ambas de caráter preocupante e distópico, é constante. A capacidade de dialogar se restringe cada vez mais ao ato de conversar entre pessoas de pensamentos iguais, quase sempre propagando ideias prontas, seja em memes seja em textos que dificilmente conseguimos rastrear a origem. Dos dois lados há uma certeza falsa, como costumam ser as certezas, de que é impossível conversar e compreender quem está do outro lado. Os exemplos infelizmente são muitos mais além desses, e as questões a serem debatidas são diversas. Respostas diretas e objetivas não existem, mas o Trip Transformadores resolveu investigar um caminho sem o qual nenhuma solução é possível, resumido na pergunta-tema do evento realizado ontem na Biblioteca Parque Villa-Lobos, em São Paulo: “Conviver é possível?”.
A noite, que teve a jornalista e escritora Milly Lacombe como mestre de cerimônias, começou com o debate “Como cuidar dos que ninguém quer cuidar?”, mediado por ela. O encontro reuniu o militante dos direitos humanos padre Júlio Lancellotti, o ativista do esporte e fundador da Associação Miratus de Badminton Sebastião Oliveira e a cientista política especialista em segurança pública Ilona Szabó. “Vivemos um momento difícil em que estamos desaprendendo a escutar. Mas a escuta é o primeiro passo para o Brasil aprender a conviver. Passando as eleições, a gente precisa tranquilizar o país e construir as pontes que vão nos permitir conviver. Nunca imaginei viver um momento como esse em que as pessoas não se escutam. Mas dá pra virar”, disse Ilona. Padre Júlio terminou o papo com firmeza, arrancando aplausos da plateia: "É possível conviver sem ter medo do conflito, sem ter medo da luta pela vida dos fracos. Vou conviver e vou viver lutando até o fim".
Na sequência, Marcelo Rosenbaum mostrou como o artesanato pode, numa tacada só, resgatar a ancestralidade e gerar empoderamento, em um papo oferecido pelo Grupo O Boticário. O arquiteto dividiu sua experiência em Várzea Queimada, uma comunidade de 900 moradores no Piauí, com um dos menores índices de desenvolvimento humano do Brasil. Rosenbaum e sua equipe ajudaram a comunidade a recuperar a já quase esquecida produção de cestos bogoió, além de uma coleção de artefatos, no que chamou de “arqueologia afetiva”, o que gerou renda para os moradores. “O nosso saber ancestral é um valor sem fim e uma fonte de oportunidades”, contou. "Sustentabilidade não é só aumentar a renda, mas autonomia e liberdade, em que os saberes geram renda."
A arte, assim como o artesanato mostrado por Rosenbaum, está longe de ser apenas um trabalho estético, e Ai Weiwei dialoga com essa perspectiva de diferentes formas, sempre com bastante humor. Assim, foi de maneira bem-humorada que o curador de arte e documentarista Marcello Dantas conduziu o bate-papo com o artista chinês, na mesa “O homem mais resiliente do mundo” (título em referência à história do chinês, bastante perseguido pelo governo do seu país).
A conversa começou com uma sequência de perguntas divertidas sobre sexo e passou também por curiosidades sobre o processo artístico de Weiwei. “Já pintou sob o efeito de drogas?”, perguntou Marcello. “Todo meu trabalho foi feito de forma muito consciente, por isso é horrível. Talvez eu devesse tentar”, brincou.
A arte de Weiwei tem em si bastante convergência com o mote “Conviver é possível?”. Marcello puxou o tema lembrando que o artista contou a ele uma vez sobre a sensação de que a China, ao prendê-lo, tinha lhe dado um presente. “Me sentia triste, não conseguia ir às minhas exposições. Quando olho pra trás, foi um momento bonito. Eu era forçado a estar longe das pessoas, minha atividade era trabalhar duro. De certo modo, isso me fez famoso”, disse.
O chinês também respondeu perguntas feitas pela plateia e refletiu: "Se você quiser que eu te diga uma concepção geral da humanidade, eu diria que não é uma imagem muito bonita. A gente não trata as pessoas bem, não se importa. É estranho. As pessoas deveriam ter empatia, se preocupar com as outras que são muito jovens, velhas, doentes, mas, em geral, isso não acontece em nenhuma sociedade".
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Pensar sobre o outro foi o caminho da palestra de Amyr Klink, “Cem dias e uma caixa d’água”, oferecida pela Ambev. “Acho engraçado falar sobre convivência aqui porque sou conhecido entre meus amigos como um cara que gosta de ficar sozinho e que fez uma travessia transatlântica assim”, disse. O mais conhecido navegador brasileiro conta que, quando chegou à praia, depois de cem dias enfrentando o Atlântico em 1984, um pescador lhe perguntou como havia sido a pescaria. “Não peguei nada”, respondeu Amyr. “Tem dias que é assim”, devolveu o pescador, antes de lhe dar duas sardinhas e se desculpar por só ter aquilo. “Percebi que a experiência de se afastar das pessoas valoriza a convivência”, reflete. “A convivência é uma via para a sobrevivência. O nosso tamanho diminuiu e a gente tem um senso de provisoriedade. Tudo pode sumir em alguns segundos e aí você dá valor para coisas mais essenciais, a importância do outro, a visão do outro.”
É justamente buscar uma visão do outro, de uma realidade muito distante da nossa, que movimenta o trabalho do fotógrafo brasileiro Bruno Feder. Ele, que vem registrando tribos e comunidades do Sudão do Sul e de outros países africanos, dividiu histórias sobre suas imagens mais marcantes. Seu trabalho o fez ser expulso do Sudão do Sul, onde morava e a imprensa sofre forte censura, depois de ser detido e ter seu passaporte retido por conta de uma imagem publicada no jornal britânico The Guardian. As acusações eram surreais e envolviam inclusive menções sobre espionagem. "As notícias sobre o país são muito negativas, mas a resiliência do povo é muito grande. Eu me tornei um ativista da causa do Sudão do Sul porque é um conflito não reportado. As pessoas não falam sobre isso, então comecei a levantar essa bandeira.”
O Trip Transformadores 2018 também abriu espaço para a utopia tecnológica em contraponto à distopia política. E quem puxou o tema foi Igor Oliveira, engenheiro e sócio do laboratório Aerolito, na palestra “Impactos da tecnologia no futuro da mobilidade”, oferecida pela Gol Linhas Aéreas Inteligentes.
Na maior parte do tempo em que estamos convivendo estamos nos locomovendo pelas cidades, em transportes públicos ou privados. Seja do ponto de vista da convivência, seja a partir da evolução das matrizes energéticas, Igor acredita que as transformações nos meios de transporte são urgentes e devem acontecer mais rapidamente do que imaginamos. Ele atribui parte desse movimento a uma mudança na forma de pensar. “A gente está vivendo uma época em que acesso é maior que posse”, disse, pensando sobre as opções de transporte autônomo já existentes e em desenvolvimento. “Será que, no futuro, um governo responsável vai deixar as pessoas dirigirem?”, provocou. “Um dos maiores desafios envolvendo tecnologia é democratizá-la. Acredito que ela pode melhorar muito a vida das pessoas. Elas não são tecnicamente ótimas, nunca é perfeito. A utopia está no horizonte, mas é pra isso que ela serve, para nos fazer caminhar.”
A noite do #TripTransformadores terminou com uma história muito inspiradora para os momentos bicudos que temos vivenciado recentemente, da dificuldade de conviver em harmonia na sociedade. Na mesa intitulada "Fogo cruzado", oferecida pelo Banco do Brasil, o rapper Thaíde entrevistou o professor nigeriano Zannah Mustapha, que, em meio aos violentos ataques do grupo extremista Boko Haram iniciados em 2009, decidiu tentar transformar a difícil realidade política do país criando uma escola. Educar para o conhecimento puro e simples seria muito pouco ali. Era preciso reeducar para a convivência. Pensando nisso, Zannah teve uma ideia: juntar na mesma escola as crianças órfãs das vítimas e dos algozes, e também suas mães, as viúvas do conflito.
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É possível que alguém, ao saber da ideia de Zannah, achasse que ele era um sonhador. Mas a ideia de que qualquer transformação só é possível a partir da educação se torna real na experiência que ele vem tendo. Sua atitude poderia ser vista como utópica, mas os resultados já são bem reais. “A gente não fazia diferença entre as crianças que vinham de dentro ou fora do Boko Haram. Todos os segmentos da sociedade precisam estar juntos, assim conseguimos ser inclusivos e ter diversidade. Sem isso, a gente não tem nada”, explicou.
No papo com Thaíde, Zannah também alertou para uma situação que poderia ter servido de alerta e, se notada, talvez pudesse ter evitado o acirramento que viria a seguir. "Discursos de ódio e extremismo religioso mostram que algo está para acontecer. É preciso ver os sinais precoces e tomar medidas de prevenção. Mas a gente não estava preparado [para a insurgência]."
Terminados os debates e palestras, Mariana Aydar chegou no palco em um trio que tinha como missão colocar fogo na pista e fazer todo mundo conviver bem coladinho. Com Cosme Vieira na sanfona e Feeh Silva na zabumba, ela mandou um repertório que misturou canções contemporâneas, como “Triste, louca ou má”, da banda Francisco, el hombre, com clássicos como “Qui nem jiló”, de Luiz Gonzaga, e “Pedras que cantam”, de Fagner, que traz uma frase perfeita pra suar e pensar: “Vamos pra frente que pra trás não dá mais...”
Créditos
Imagem principal: Mariana Pekin