As lições da água
O papo com o encanador leva a colunista Milly Lacombe a refletir sobre um problema mundial
“A água sempre encontra um caminho”. O encanador me disse essa frase há alguns anos para explicar as razões de um vazamento que tinha praticamente destruído boa parte da parede do banheiro. “Quando se depara com um obstáculo”, continuou o homem à minha frente, “a água desvia sem fazer alarde, sem grandes dramas, e tenta alternativas até finalmente encontrar um caminho. E ela sempre acha um caminho”, encerrou ele triunfalmente, como se estivesse falando de um desses amores pelos quais nunca deixamos de sentir admiração. Naquele dia, diante de uma parede mofada e recebendo a informação de quanto me custaria a obra, eu não vi poesia no que ele dizia. Mas hoje, livre do vazamento, entendo que existe uma enorme sabedoria na maneira como a água se movimenta. E a água precisa se movimentar porque desse movimento depende a vida. Onde não há água, a vida padece.
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A vida tem padecido mais do que seria justo. Há no mundo hoje quase 800 milhões pessoas vivendo sem acesso a fornecimento de água. São pessoas que não sabem o que é levantar da cama, abrir uma torneira e ver sair dali a água necessária para lavar o rosto e escovar os dentes. Pessoas que não sabem o que é usar o banheiro e dar a descarga, ou tomar um banho que não seja de balde. Falta água para higiene e água para irrigar a terra e tirar dela alimento. Para ter acesso a água essas famílias precisam andar, muitas vezes quilômetros e quilômetros, e voltar trazendo baldes de água nos ombros e na cabeça, chegando a gastar até seis horas por dia na busca por água. Onde falta água falta vida minimamente decente.
No semi-árido brasileiro essa situação é bastante real. Famílias obrigadas a sobreviver em condições insalubres, crianças com déficit de aprendizagem porque não estão hidratadas - e, portanto, alimentadas -, gente morrendo de doenças facilmente tratáveis. Mas, como escreveu Euclides da Cunha em Os Sertões, “o sertanejo é antes de tudo um forte”. Tão forte e resistente que inspirou outras tantas obras e outros tantos autores. “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados”, escreveu João Guimarães Rosa, que também disse que o sertão é quando menos se espera, que o sertão é sozinho, que o sertão é dentro da gente.
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O que seria da força dessa gente do sertão, uma força já descomunal mesmo sem estar irrigada, se estivesse devidamente umedecida? Que tipo de país teríamos se tratássemos cada cidadão e cidadã com o respeito e a dignidade que ele e ela merecem, fornecendo o básico do básico para que, saudáveis e nutridos, pudessem se erguer em pernas de moral e de amor-próprio, buscar seu caminho e então, de cabeça levantada, deixar que a criatividade que existe em todos nós brotasse, crescesse e os levasse longe — tão longe quanto possível, tão longe quanto a água?
São atualmente 35 milhões de brasileiros sem acesso a água potável, um número indecente, inaceitável e imoral. É preciso transformar essa realidade porque ao mudar o curso de uma vida, mudamos o curso de uma comunidade, o curso de uma da cidade, o curso de um estado e, finalmente, o curso de um país.
Juntos somos como a água: sempre encontramos um caminho. Somos, é verdade, todos sertão.
Novos caminhos no semiárido
Assim como a água, que se transforma de acordo com a temperatura, a realidade pode também se transformar de acordo com interesses políticos e investimentos solidários. E isso tem acontecido bem aqui diante de nossos olhos, mudando a realidade a vida das populações do semiárido. Graças aos recursos provenientes das vendas das garrafas d’água AMA, que somam um lucro de R$ 3,5 milhões, foi possível levar água para 43,2 mil pessoas desde 2017, com 49 projetos nos estados de Paraíba, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas, Ceará, Bahia, Pernambuco e Piauí, na região do semiárido brasileiro, historicamente atingida por longos períodos de seca e escassez hídrica.
Desenvolvida pela Cervejaria Ambev, AMA, o primeiro negócio 100% social, está transformando a vida de muitos brasileiros e brasileiras. Wildes de Araújo, gestor da escola Maria Epifânia de Melo, em Poção, Pernambuco, município de 13 mil habitantes, conta como viu a comunidade mudar desde a chegada da água levada pelo projeto: “A água chegou aqui em 2018 e desde então nada mais foi como antes, quando tínhamos que esperar o caminhão pipa, e ele nem sempre vinha São 135 alunos que passaram a entender como é viver com oferta regular de água. Crianças que veem o que acontece com a terra quando ela é irrigada, que não desperdiçam nada, que plantam e colhem e que até levam para a casa parte do que plantam na nossa horta. Absolutamente tudo em Poção mudou para melhor desde que alguém olhou para a gente com carinho e decidiu investir na captação de água”.
Roberto Saraiva, coordenador do Serviço Pastoral do Migrante, uma iniciativa social da Igreja Católica, acompanhou de perto a chegada da água a uma parte do semiárido paraibano e diz que o projeto teve a sabedoria de se associar a quem entende da vida naquela região e assim perceber que você não combate a seca, mas você cria mecanismos para conviver com ela. “É um projeto altamente sustentável e que confere segurança hídrica à população. Ele começou agora e já chegou a cinco grandes escolas, algumas com mais de mil alunos, mudando a vida do estudante e da comunidade na medida em que permite que as escolas funcionem sem precisar fechar suas portas por falta de água por dias e dias, em que confere saúde física e emocional aos alunos e alunas, e também possibilitando que famílias inteiras não precisem abandonar suas casas e o lugar onde nasceram para tentar a vida em outro lugar."