Todo amor que houver nessa vida

Lucinha Araújo converteu a maior dor que uma mãe pode sentir em energia transformadora, atitude que foi fundamental para uma abordagem menos preconceituosa em relação ao HIV

por Anita Pompeu em

No início de agosto, Lucinha Araújo foi a protagonista de uma série de stories nos perfis do Instagram de Gilberto Gil, Flora Gil, Paula Lavigne e Maria Ribeiro. Eram registros das comemorações de seus 82 anos entre amigos, festas e muita boemia. “Sou uma velha muito saideira e o João [Araújo, 1935-2013, o empresário e produtor musical com quem ela foi casada durante toda a vida] me acostumou assim”, conta, sentada em sua sala na Sociedade Viva Cazuza, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. “Assim vou curtindo o tempo que me resta e viajando muito também. Só com o Gil já fiz umas dez viagens de turnê, daquelas de dormir no ônibus, ficar tocando violão e cantando a noite inteira, tomando vinho... Amo essa vida boêmia.”

Aos 82 anos, a vida de Lucinha segue movimentada e preenchida. “De manhã, fico com o Fred, meu companheiro canino, e sou prenda do lar, faço coisas que mulher faz. Depois do almoço, venho pra Viva Cazuza e fico até a noite. Antigamente, esticava até muito tarde, porque as crianças ficavam muito doentes e precisavam de mim, mas agora está tudo mais tranquilo”, diz, se referindo à diminuição da incidência de HIV entre elas nos últimos anos.

A rotina preenchida de Lucinha é reflexo de um vazio que foi aberto em sua vida há 28 anos, com a morte precoce do seu único filho, o cantor Cazuza, vítima da Aids aos 32 anos. “Da morte do filho uma mãe nunca se refaz. Mas não quero me refazer. Não quero esquecer ele nunca. Quando fico com muita saudade, tomo um banho gelado, choro, choro, choro e pronto. Daí vou viver de novo, vou cuidar das crianças, porque nada vai trazer o meu filho de volta”, fala, com olhos vivos, sem lágrimas.

Desde que foi inaugurada, em 1990, três meses após a morte do cantor, a Sociedade Viva Cazuza já atendeu e acolheu 213 crianças. “Tivemos pouquíssimos óbitos, apenas quatro. É uma grande vitória, se é que esta doença pode proporcionar alguma vitória”, diz Lucinha, cuja voz foi fundamental para diminuir o preconceito nos debates sobre o HIV.

Ali, naquele casarão em Laranjeiras, vivem hoje 18 crianças, nem todas soropositivas – o espaço é um abrigo misto para crianças abandonadas, onde também vivem jovens. Às vésperas da nossa visita, haviam chegado três novos moradores: dois recém-nascidos, um com 7 e outro com 8 dias de vida, e um bebê de 6 meses, abandonado no hospital, depois de passar meses internado.

No dormitório silencioso, arrumado e iluminado pela luz do sol, os bebês dormiam tranquilamente, sob o olhar de uma cuidadora, que integra a equipe que se reveza 24 horas, sete dias na semana, dando colo, leite artificial e afeto. Nos outros cômodos – refeitório, salas de TV e de brincar, quartos dos meninos e das meninas –, mais do mesmo: organização, limpeza, conforto e fotografias do Cazuza. Em todos os lugares, ele está presente. “No fundo, procuro neles um pouquinho do sorriso do meu filho.”

A Viva Cazuza também oferece um programa de adesão ao tratamento para adultos soropositivos, em que os participantes vão à sociedade toda quarta-feira provar que estão se tratando e tomando os medicamentos adequadamente e, em troca, ganham cesta básica. Além disso, o casarão abriga também o Projeto Cazuza, um memorial em homenagem ao músico, com livros, letras, notícias, vídeos, roupas, pertences pessoais e até a escrivaninha intacta do artista, exatamente como estava na época de sua morte. “A sociedade é mantida basicamente pelos direitos autorais das obras do Cazuza. É o trabalho dele que continua alimentando as crianças.”

Créditos

Imagem principal: Mario Ladeira

Fotos: Mario Ladeira

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