Pedro Sirotsky: Doei todas as minhas gravatas
Depois de quarenta anos preso à vida de escritório, o ex-executivo do Grupo RBS persegue sonhos perdidos, se volta para música e lança o documentário Mr. Dreamer
Uma vida com grana, mas incompleta. Foi assim que Pedro Sirotsky passou seus dias desde que foi persuadido pelo pai a largar, aos 22 anos, o cargo de apresentador e a condição de popstar. Na época, ele tocava o programa Transasom, exibido no rádio e TV do Grupo RBS, afiliada da Globo no sul do país. Com Rolling Stones e Beatles na playlist, o então garoto estourou, chegando a receber três mil cartas por semana. Não faltaram festas da turma do “sexo, drogas e rock and roll”, como define.
Mas a cobrança de um vida mais regrada veio, Sirotsky trocou a farra pelas gravatas (chegou a colecionar 200 modelos) e mergulhou no mundo empresarial: “Levantava do quarto de hotel à noite e batia a cabeça na parede porque esquecia onde estava.” E assim passaram mais de quarenta até finalmente voltar às artes com Mr. Dreamer, um docudrama que leva Pedro até Dublin, onde divide experiências de vida com uma nova geração de músicos, em cartaz na Globoplay a partir de 14 de maio.
Pedro Sirotsky conversou com a Trip FM e explicou por que decidiu largar tudo aos 64 anos, falou sobre a relação com o pai, que o tirou da trajetória que havia escolhido, e lembrou histórias do mundo corporativo. Ouça o programa no Spotify, no play abaixo ou leia um trecho da entrevista a seguir.
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Trip. Quem não é da região sul não conhece tanto, mas qualquer pessoa com mais de 45 anos que seja de lá vai lembrar do programa Transassom. Na época era um grande privilégio ter acesso ao rádio e à televisão. Como é que foi participar disso numa idade tão jovem? Eu era um moleque de dezessete anos que tinha começado a trabalhar aos dezesseis na rádio. Foi quando veio a possibilidade de apresentar um programa, o Transassom, na Rádio Gaúcha. Pouco tempo depois fui convidado para fazer uma versão do Sábado Som, da TV Globo, apresentado por Nelson Motta. Aí eu peguei o acervo que já existia e resolvi dar a minha pitada. Eu era um roqueiro ascendente, digamos assim. Nunca fui músico, nunca toquei, nunca cantei, mas sempre amei a música. Comecei a fazer do meu jeito. E o patrocinador do programa Transassom sugeriu que unificássemos a marca. E aí então surgiu o Transassom na televisão, aos sábados, às duas da tarde. Imaginem isso na sociedade conservadora do Rio Grande do Sul, na década de 70. Chega lá um menino, com vínculos familiares, porque eu pertenço à família fundadora do Grupo RBS, e dá um choque anafilático em uma programação muito conservadora, com os Rolling Stones e Beatles. Comecei a sentir a repercussão através de cartas. Recebia três mil cartas por semana.
Como foi o momento em que seu pai falou para parar com a brincadeira? Você está em uma trajetória e de repente vem o chefe e dá uma trancada na história. Como é que foi esse momento? Quando você estava me perguntando isso, me veio uma imagem na cabeça que é mais ou menos assim: é como se estivesse ali, de copiloto, dentro de um grande avião com meu pai. Então ele desliga o motor e me passa o comando. Foi muito difícil. Eu não tinha maturidade. É meio paradoxal porque eu já estava há cinco anos no ar. Eu tenho filhos e a gente tem um vício natural, que não é mal-intencionado, de querer colocar os nossos sonhos na cabeça dos filhos. Cada um tem o direito de seguir o seu caminho. Foi uma interferência natural de um pai poderoso, de um pai forte. Eu tive que concordar com ele. E quero deixar bem claro que foi uma outra etapa da minha vida que não foi ruim, não foi difícil, não foi triste e não foi infeliz. Ela foi cheia de novas descobertas e de aprendizado.
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Existe um conceito da psicanálise de que não se pode comparar sofrimento. Na minha experiência, pelo menos alguns dos relatos mais dramáticos, são de herdeiros que se sentem aprisionados nas histórias de seus pais. O documentário Mr. Dreamer fala sobre como uma trajetória perdida pode doer. Queria que você falasse um pouco mais desse sentimento de não estar fazendo a sua história, mas continuando a de alguém. É um motivo de muito orgulho fazer parte da história da empresa. Foram anos de muito sucesso. Isso deu muito conforto em relação aquele sonho que estava interrompido. Por outro lado, de repente eu me senti no piloto automático – eu digo isso no filme. O mundo corporativo tem essa característica. Eu tinha uma rotina sem liberdade, de pegar avião todas as semanas. Minha agenda estava lotada com oito meses de antecedência de compromissos quase que políticos. Quantas vezes eu acordei em um hotel, levantando para ir ao banheiro, e bati a cabeça em uma parede porque não lembrava onde estava. E agora eu me pergunto: será que essa forma de viver não é uma das causadoras dessa lamentável pandemia? Não é só uma questão sanitária, é sociológica. Eu desejo que o novo mundo não tenha nenhuma característica do ambiente corporativo atual. As pessoas precisam mudar, precisam entender que aquilo ali tem um lado de resultados, mas também tem um lado tóxico invisível.
A impressão que dá é de que você estava de alguma maneira antecipando certas visões que estão acontecendo hoje. Você era uma espécie de ovelha negra, um bicho meio estranho tentando se adequar ao sistema e ao mesmo tempo usando isso para inovar e para criar. Imagino que deva ter também produzido algum grau de rejeição. Era isso mesmo? Era isso mesmo. Não que eu me considerasse uma ovelha negra, mas inconscientemente me sentia assim. Tenho essa clareza nos dias de hoje, por conta de quase cinquenta anos trabalhando. Várias vezes eu devo ter sido percebido como esse rebelde, embora eu não quisesse ser visto assim. Eu tinha uma coleção de duzentas gravatas. Uma diferente todos os dias – isso era parte daquele mundo. Mas tentei várias vezes não usar e era visto como alguém que queria ser diferente. Dei todas as minhas gravatas. Não tenho mais nenhuma. Onde está escrito que é preciso usar uma gravata? Eu não chegava a fazer provocações, precisava respeitar o sistema, mas passava as minhas posições com clareza.
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