Monastério para mulheres

por Elka Andrello
Tpm #97

Depois de questionar a doença e a morte como único futuro possível, a inglesa Diane Perry morou 12 anos em uma caverna e fundou primeiro monastério feminino

No budismo, e em tantas outras religiões, as mulheres sempre foram tratadas como cidadãs espirituais de segunda classe. Mas Diane Perry nunca se conformou com essa diferença. Fã de Elvis Presley, clubes de jazz e salto agulha, a inglesa foi a terceira mulher ocidental a se tornar monja do budismo tibetano. Virou Tenzin Palmo e ficou mundialmente conhecida depois de passar 12 anos em retiro solitário em uma caverna no Himalaia – feito comum entre meditadores orientais, mas bem raro entre mulheres, sobretudo ocidentais. Hoje, aos 66 anos, com o aval do dalai-lama, faz um trabalho pioneiro na formação de monjas e carrega o respeitável título de Jetsunma, que quer dizer venerável mestre.

A venerável nem sempre foi monja e muito menos careca. Filha de pai peixeiro e mãe dona de casa, Diane nasceu em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, em Hertfordshire, Inglaterra. Cresceu em Londres, namorou bastante, adorava moda e música. “Eu amava o Elvis Presley. Ele era extraordinário. Me tornar uma monja e abrir mão do Elvis foi a minha grande renúncia”, brinca.

Diane começou a questionar os porquês da vida na adolescência, procurou respostas em várias religiões e filosofias até chegar ao budismo. Ela nunca se esquece do dia em que, aos 13 anos, ao olhar para um ônibus lotado, perguntou-se: “Todas essas pessoas vão morrer. Antes disso, vão envelhecer e ficar doentes. Não há escapatória. A vida é sofrimento, é como estar num trem e saber que ele vai bater no fim. Como você pode se divertir nessa viagem sabendo que em algum momento o trem vai bater?”.

Era o início dos anos 60 e o budismo ainda não era popular no Ocidente. Em busca de respostas, a jovem inglesa foi parar na The Buddhist Society, uma das mais antigas organizações da Europa. Lá, entrou em contato com as diferentes vertentes da religião. “Quando li os ensinamentos do Buda, vi que ele foi a pessoa que mais precisamente explicou o sofrimento e o caminho para além dele.” Em busca da iluminação, embarcou num navio para a Índia em 1964.

O mestre

O coração romântico de Diane não ficou na Europa junto com os discos de Elvis. No navio, ela se apaixonou por um rapaz que, para seu espanto, a pediu em casamento. Ficou balançada, mas perguntou-se o que realmente queria da vida. “Sabia que não era casar e ter filhos, mas me dedicar à vida espiritual.” E foi assim, aos 20 anos, que ela abriu mão do romance e, sem olhar para trás, desembarcou no Oriente. “A vida era muito simples nesse tempo, não tinha TV, telefones e carros eram raros. Os tibetanos tinham acabado de chegar, estavam traumatizados, tentando andar com as próprias pernas.”

Logo que chegou à Índia, Diane foi trabalhar como secretária e professora de inglês na escola para jovens lamas, a Young Lama’s Home School, em Dalhousie, no norte do país. No dia do seu aniversário de 21 anos, ela encontrou o homem que mudou a sua vida. Era o oitavo Khamtrul Rinpoche, um respeitado lama que fazia uma visita à escola. “Foi como se a parte mais profunda de mim se materializasse na minha frente”, explica. Ele se tornou seu mestre, a ordenou monja, raspou seus cachos, a fez trocar as roupas comuns por vestes monásticas e lhe deu o nome de Drubgyu Tenzin Palmo.

“Os monges naturalmente temem as mulheres por causa do desejo deles. Mas não admitem isso, dizem que a mulher que é sedutora”

Mas a vida no monastério do Khamtrul Rinpoche não foi fácil. A inglesa era a única entre cem monges, todos homens. “A palavra ‘mulher’, em tibetano, tem um significado próximo de ‘nascimento inferior’”, explica. “Os monges naturalmente temem as mulheres por causa do desejo deles. Mas não admitem isso, dizem que a mulher que é sedutora”, completa, e faz questão de observar que todas as escrituras budistas saíram das mãos de homens.“Sendo assim, não é uma surpresa que essa atitude misógina ainda prevaleça”, desabafa.

Foram os seis anos mais infelizes da sua vida. Discriminada, vivia isolada e, por ser mulher, não podia ouvir os ensinamentos mais profundos. “Foi aí que fiz o voto de alcançar a iluminação na forma de uma mulher, e não importa quantas vidas isso demore”, declara.

Frustrada, a monja se mudou para o Tayul Gonpa, um monastério de 300 anos em Lahoul, cidade no norte da Índia aos pés do Himalaia, fronteira com o Tibete. Foi uma fase feliz. Finalmente, ela teve tranquilidade para meditar e interagir com os moradores da comunidade. Sobrevivia com 5 libras por mês, mandadas pela sua mãe. Em 1976, em busca de silêncio absoluto para meditar, resolveu ir morar em uma caverna. “Naquela época me pareceu a coisa certa a fazer. Estava procurando um lugar quieto e barato”, diz, em tom de brincadeira.

Foi uma amiga monja quem lhe deu a dica sobre uma caverna com água por perto. Tenzin Palmo então juntou um grupo de amigos e foi escalar a montanha, que ficava bem atrás do monastério. Duas horas de subida depois, a 4 mil metros de altura e sob o efeito do ar rarefeito, ela encontrou o local que seria sua casa nos 12 anos seguintes – os mais felizes da sua vida. Durante esse período, teve contato com pouquíssimas pessoas e saiu de lá raras vezes. Nos três últimos anos, viveu absolutamente isolada. E garante que nunca se sentiu sozinha, nem por 1 minuto.

Para se proteger do frio de até -35 ºC, fechou a entrada com tijolo e cimento. E também instalou porta e janela. A caverna, de 3 metros de largura por 1,80 metro de comprimento, era mobiliada com um pequeno fogão a lenha, uma caixa de madeira que servia como mesa e uma prateleira onde ficavam os textos sagrados. Nas paredes, fotos de deidades budistas. Além disso, a monja contava com um pequeno altar e uma tradicional caixa de meditação – móvel de madeira de 80 centímetros quadrados que foi a sua “cama” enquanto ali viveu. Durante todo esse tempo, Tenzin não se deitou. Nem por uma noite.

E assim, na busca da iluminação, mantendo uma disciplina rigorosa na caverna, Tenzin Palmo viveu dos 33 aos 45 anos. Eram 12 horas de meditação por dia, com pausas para as refeições, banho de baldinho e lavagem de roupas. A alimentação era pouca e simples: armazenava grãos e vegetais desidratados, que eram entregues no verão por um amigo, e plantava batata e flores no pequeno jardim em frente à caverna. Fome, mal-estar, algumas doenças e uma grande avalanche – chegou a ficar soterrada, ela achou que ia morrer e fez as práticas budistas para o momento final – não a fizeram desistir de seu retiro. Saiu da caverna forte, pronta para mudar a história.

Tá com medo?

Tenzin nunca comprou a história de que o corpo da mulher é inferior e incapaz de alcançar a iluminação. Para ter certeza do que sempre soube, foi pesquisar na fonte. “O Buda não discriminava os sexos, ele tinha monjas e alunas. Com o passar do tempo, a vida monástica ficou centrada em grandes escolas, e o medo do feminino se pronunciou.” A inglesa, então, questionou o que ninguém antes teve coragem de pensar. “As monjas acreditam que os homens são mais inteligentes. Mas acham isso porque as únicas pessoas que conhecem com educação, ou seja, que sabem ler e têm algum grau de instrução, são homens. Se elas tivessem as mesmas oportunidades que eles, fariam melhor ou igual”, dispara, e conta que, na história do budismo, as mulheres não receberam a mesma educação, não tiveram acesso aos mesmos ensinamentos e, em alguns casos, trabalhavam como empregadas nos monastérios.

Livre, você?

Não à toa, o dalai-lama, maior autoridade budista e líder espiritual do Tibete, chorou ao ouvir um discurso de Tenzin Palmo sobre as dificuldades das mulheres na religião. Ele é, atualmente, um dos grandes simpatizantes de seu trabalho. “Você é muito corajosa”, declarou publicamente, no Primeiro Encontro de Budistas Ocidentais, na Índia, em 1993. “Podemos usar tudo que nos faz sofrer como aprendizado. O sofrimento só existe se você o tratar assim”, ensina a monja.

Em 2000, ela encarou mais um grande desafio, começou a construir o Dongyu Gatsal Ling, em Himachal Pradesh, no norte da Índia, um monastério pioneiro para mulheres no país, onde atualmente vivem 70 monjas com idades entre 15 e 25 anos. Diferente dos demais monastérios para mulheres existentes até então, lá as alunas têm acesso a uma boa educação formal e aulas com grandes mestres do budismo. Provam uma rotina intensa, parecida com a que Tenzin tinha em sua caverna. O dia começa ainda à noite, com uma sessão de práticas espirituais, estudos com grandes mestres e termina com ioga e meditação. As moças, que têm pouca educação ou são analfabetas, passam por um ciclo de estudos formais no qual entram tibetano, inglês, filosofia. Aprendem também a tocar instrumentos e a fazer as esculturas tradicionais usadas nos rituais. Além disso, ficam três meses em retiro todos os anos, tempo em que permanecem em absoluto silêncio.

Diante dessa mulher cheia de histórias, conquistas e vivências, me ocorre perguntar o que as reles mortais – como eu, você e todas as outras que não são monjas nem se dedicam a práticas de auto- conhecimento – podem fazer para conquistar a tão sonhada liberdade. E ela manda: “A mulher de hoje acha que é livre, mas não é. Se identifica com a aparência externa, passa a vida tentando se transformar numa Barbie”. Não, Tenzin Palmo não acha errado se cuidar, se arrumar, se gostar. O equívoco, segundo ela, é achar que você é o que vê no espelho, o que está fora. “Além disso, tentar parecer eternamente jovem é patético. Envelhecer é natural, a idade traz compreensão. As rugas são a sua expressão, sua história de vida, por que se desfazer disso?” Olhando no fundo dos meus olhos, a monja dá o conselho mais simples: “Aceite-se do jeito que é e aproveite isso. Se você ler os ensinamentos do Buda, ele ensina que você deve aprender a ter amor e compaixão por você mesmo e, assim, estender isso aos outros. Se você não se trata bem, como vai conseguir tratar os outros bem? Isso não é ser egoísta, é ser prático”.

Do alto de sua careca, essa mulher que pouco se preocupa com as aparências transcende belo e feio, bom e ruim. E mostra que, por trás de suas rugas e marcas, encontram-se a beleza e a verdade de uma vida marcada pela coragem e pelo altruísmo.

Detalhes do templo de Tenzin Palmo

Por Bruna Bopp

O templo Dongyu Gatsal Ling, da monja Tenzin Palmo, existe há 10 anos e localiza-se em Himachal Pradesh, no norte da Índia. Ele abriga mais de 70 monjas e este número cresce a cada ano. É considerado um monastério pioneiro para mulheres no país. As alunas têm aulas com grandes mestres do budismo, além de realizarem práticas espirituais, ioga e meditação. Para quem tem interesse em visitar o templo, o encontro tem que ser agendado com antecedência, pelo e-mail dgloffice@gatsal.org ou pelo telefone (91)98163-12062.

Não há acomodações no próprio templo, mas os turistas podem se hospedar em hotéis e comunidades próximas, indicados no próprio site do templo. Um dos grandes eventos esperados para este ano é a peregrinação até a caverna onde a monja Tenzin Palmo realizou o seu retiro de 12 anos. As inscrições ainda estão abertas. Corra, porque só tem 20 vagas.

Vai lá: Dongyu Gatsal Ling Nunnery, Village Lower Mutt, P.O. Padhiarkar, Via Taragarh, Distt. Kangra H.P.176081, India, (91) 98163-12062

 

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