Pathy Dejesus: A mulher negra não pode errar
A atriz da série Coisa Mais Linda fala sobre a estreia da nova temporada, feminismo e luta: "Para uma mulher negra chegar no topo, pode ter certeza que ela batalhou muito mais"
Patricia Dejesus é uma mulher forte. Não aquela força que impõe às mulheres a obrigação de aguentar toda e qualquer coisa, mas a força que é capaz de questionar, curar e reinventar. Aos 43 anos, ela acaba de comemorar o primeiro aniversário do filho, Rakim, e brilha na segunda temporada da série Coisa Mais Linda, que estreia nesta sexta-feira (19) na Netflix. Antes de consolidar sua carreira como atriz em séries como Rua Augusta e Desnude, Pathy Dejesus foi modelo durante 14 anos, numa época em que falar de racismo no mercado da moda ainda era uma realidade distante. "Esse exemplo da moda é o que você passa no dia a dia. Você já sai lá atrás na luta. Para uma mulher negra chegar no topo, pode ter certeza que ela batalhou muito mais", diz.
Os desafios de uma mulher negra também são caros à sua personagem em Coisa Mais Linda, série que se passa no Rio de Janeiro do final da década de 50. Adélia é uma empregada doméstica que se junta à Malu, uma mulher privilegiada interpretada por Maria Casadevall, para abrir as portas de um clube de música. Enquanto a amiga luta pelo direito de trabalhar, Adélia trabalha desde os oito anos de idade para criar sua filha. E, assim como as lutas das mulheres, os desafios das mulheres negras transcenderam as últimas seis décadas. "Essa diferença entre os feminismos, entre feminismo negro e branco, não tem mais como passar pano. É diferente e ponto. O debate nem deveria ser mais esse", diz Pathy. "Uma mulher que despertou para isso assistindo uma série como Coisa Mais Linda é tão importante para a luta quanto uma mulher que acha que sabe tudo. Eu acredito que é a união que faz a engrenagem mover. Nós todas somos vítimas de um grande sistema".
No papo com a Tpm, ela conta sobre as gravações no meio de seu puerpério e fala sobre carreira, feminismo e as lutas das mulheres negras.
Tpm. A primeira temporada de Coisa Mais Linda fala muito sobre mulheres conquistando espaços na década de 50. Estamos em 2020 e ainda estamos conquistando e lutando por esses lugares. Como isso aconteceu?
Pathy Dejesus. Eu acho que a série mostra, mais que conquistas feministas, a luta para se conseguir algum tipo de conquista, especialmente na primeira temporada. O que a gente debate muito, principalmente sobre feminismo, não é tanto a conquista em si – não tirando mérito da conquista, claro –, mas a mecânica que precisa ser feita para monitorar essas conquistas, porque elas podem ser tiradas a qualquer momento. Até onde elas estão realmente consolidadas? É o que traz a segunda temporada. Estamos falando de 1960, então pode chegar alguém a qualquer momento e falar: "Escuta, não!". Se hoje a gente reivindica tantos direitos, imagina naquela época.
Um dos momentos mais marcantes da primeira temporada é quando você grita para a Malu, personagem de Maria Casadevall, que é uma mulher branca e de família rica: "A gente não é igual". Quer dizer, você não, a Adélia, sua personagem... Eu você te falar que tem um pouco da Patricia gritando aquilo também. Toda mulher preta gritou aquilo um pouquinho, né? Porque é exatamente isso. Eu não acredito que aquelas personagens tenham noção tanto dos feminismos quanto das diferenças entre o feminismo branco e o feminismo negro. Aquelas personagens não têm o aprofundamento que a gente tem hoje. Eu vejo elas como embriões desse movimento. Tirando a Thereza [personagem interpretada por Mel Lisboa], que é uma mulher que estudou sobre o assunto, morou fora. A Adélia nunca ouviu falar disso, mas ela sabe da sua vivência. E ela, mais que a Malu, que foi criada numa bolha, tem essa noção. E é a primeira oportunidade que ela tem de verbalizar isso. Porque a Adélia nunca teve condição, até aquele momento, de virar para uma mulher branca e falar tudo o que fere, que está engasgado. Dizer: "Vem cá, você está lutando pelo seu direito de trabalhar e eu tive que trabalhar desde criança. A gente não está falando da mesma coisa". Vou te falar que, na minha trajetória como atriz, foi uma das falas mais potentes que eu já pude verbalizar. É um marco, aquele tipo de cena que você guarda numa caixinha.
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60 anos depois, a frase "a gente não é igual" continua valendo. Não é igual para uma mulher branca e uma mulher negra. Definitivamente, a gente não é igual. Nossas urgências são diferentes. Eu acho que o bacana de Coisa Mais Linda é essa "distância" de tempo, da data. Isso faz as pessoas estarem menos armadas para receber uma informação, elas se acham distantes daquilo. Porque é muito difícil o diálogo. Quando você vai reivindicar uma coisa desse tipo, tem muita gente que não aceita, se retrai, acha que é vitimismo, não ouve, não se aproxima da dor do outro. Se você tem uma data que é 1960, parece outro mundo, e acho que essa é a magia das coisas. Mas não é outro mundo, é logo ali na esquina e quando você pensa no que a gente está vivendo hoje você vê que está perto mesmo. Fora que a gente está falando de um produto que é um entretenimento. Eu não acho que a série é militante, mas acho que ela planta sementes para que as pessoas desenvolvam sua autocrítica, seus questionamentos. Eu vi muita gente falando: "Caramba, nunca tinha parado para pensar sob esse ponto de vista". E isso é o legal. Porque você traz a pessoa para o drama daquela personagem, cria empatia, então fica mais simples de absorver certas informações, certos debates. Mas, voltando, é tudo muito o que é hoje. Eu acredito que algumas coisas foram conquistadas, sim, mas conforme o tempo vai passando, as batalhas só mudam de faceta, sabe? Mas que é tão difícil quanto.
Ainda é difícil falar sobre feminismo negro? É delicado o diálogo sobre isso com uma mulher feminista branca? É super complexo esse lugar, pode ser até mais complexo do que conversar com uma pessoa ignorante, na raiz da palavra. Porque a arrogância desse lugar às vezes atrapalha um pouco. Eu acredito que a gente não pode cobrar do outro o nosso nível de evolução – ou o que a gente acha que é nosso nível de evolução, porque acredito que ninguém sabe tudo. O que a gente pode, sim, é sempre tentar o diálogo, a escuta. Estamos vivendo um momento em que todo mundo quer verbalizar tudo, todo mundo sabe, mas e a escuta? Uma mulher que despertou para isso assistindo uma série como Coisa Mais Linda tem que ser acolhida, sabe? É tão importante para a luta quanto uma mulher que acha que sabe tudo. Eu acredito que é a união que faz a engrenagem mover. Nós todas somos vítimas de um grande sistema. Você saber disso te deixa menos alvo da situação, mas tem coisas da estrutura que não tem para onde correr, a não ser lutar junto para que isso mude. Acho que tem diferentes níveis de evolução, e a gente precisa se ouvir. Essa diferença entre os feminismos, entre feminismo negro e branco, não tem mais como passar pano. É diferente e ponto. O debate nem deveria ser mais esse.
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Você trabalhou em novelas e programas na televisão no SBT, na Globo, na MTV, mas teve um reconhecimento maior por sua atuação na série Coisa Mais Linda, da Netflix, o que era impensável algum tempo atrás. Como você enxerga esse sucesso? Se você puxar minha trajetória mais recente, vai ver que eu foquei mesmo em fazer séries. Desencanar um pouco desse lance da TV foi algo pensado. Eu entrei numas de que talvez o mercado estivesse saturado para o meu perfil, para a minha faixa etária. Eu amo o que eu faço e não sei fazer outra coisa, então para onde eu vou? Como a série é um formato muito próximo do cinema – falando sobre como você produz, o cuidado que você tem, o timing do ator e tal –, eu comecei a focar nesses lugares, a fazer teste pra caramba. Teste, teste, teste. Eu gosto de falar isso porque as pessoas às vezes acham que eu fui convidada. Não, os convites não apareceram, é muito teste mesmo. E peguei uma sequência de 4 ou 5 séries que vieram numa escalada. Acho que sim, a Netflix é o maior nome nesse segmento. Mas eu acredito que Rua Augusta, série que fiz da TNT, foi o divisor de águas. Eu pude pegar um personagem grande, as pessoas ainda não tinham me visto nesse lugar e me abriu muitas portas.
Você sempre sonhou em ser mãe e adiou esse plano para se dedicar à carreira. No fim das contas, tudo se misturou e as filmagens da segunda temporada de Coisa Mais Linda aconteceram quando seu filho, Rakim, tinha poucos meses. Como foi conciliar essas experiências? Fácil não foi. Não vamos romantizar porque qualquer mãe sabe. Comecei a trabalhar quando o Rakim estava com dois meses e meio, nem isso. No ápice do meu puerpério, que foi extremamente difícil. A mulher fica toda mexida, é hormônio, é a sensibilidade, é o físico. E o ser que acabou de chegar e que você não tem ideia de como é, porque 2 meses é nada. Você não sabe muito porque ele está chorando e as noites de sono já eram, perdeu. Então foi um misto de sensações muito difícil de equilibrar. Não foi equilibrado até hoje, se você quer saber. Eu penso que eu estava num momento que eu poderia estar entendendo meu novo corpo, minha nova cabeça, a produção de leite, é muita coisa. Você conhecer o seu nenê, se entender com ele, eu estava nesse primeiro processo. E eu tive cesárea então, fora isso, tinham os pontos. É muita coisa envolvida. E tinha o peso de voltar para uma personagem que já existia, de entregar uma Adélia que na primeira temporada era daquele jeito. Tinha um peso desses aspectos todos, de eu não saber nem quem eu era e ter que pegar um texto e dar vida para uma personagem. Se você perguntar: como você fez? Honestamente, não sei como eu fiz. Sei que é um lugar que eu não visitaria novamente.
Fala-se muito da força da mulher, mas isso acaba se tornando um fardo. Você acha que a força da mulher negra é um fardo ainda mais pesado? Não é que eu acho, isso já foi estudado. Essa discussão chegou inclusive à Hollywood, sobre se reforçar esse estereótipo. Isso vem do tempo da escravidão, de como a mulher negra era tratada e pra que ela servia. Isso pelo olhar branco, obviamente, sempre pelo olhar branco. Então essa estrutura criada, da força infinita da mulher negra, reflete em muitos problemas que ela tem até hoje. De afetividade, de violência obstétrica, de várias coisas. Isso está tudo amarrado, tem tudo a ver com isso que eu estou falando. Voltando para Coisa Mais Linda, na segunda temporada o roteiro se aprofunda nas questões da Adélia e, agora que ela não está mais orbitando em torno da Malu, tem suas histórias, seus dramas, acertos, erros, escolhas. E você vê uma Adélia bastante sensível. O que, na minha opinião, não tira a força dela, muito pelo contrário. Me deu um alívio quando esse roteiro chegou em mim porque eu tinha justamente um pouco de medo desse lugar, da Adélia que é a caricatura disso que eu acabei de te falar. Que ser humano real é daquele jeito? É bonito a gente ver porque inspira, mas tem que entender que essa mulher tem dramas, traumas, escolhas para fazer. E abrir mão de uma coisa significa escolher outra. Você nunca está 100% feliz, 100% forte. Eu acho importante mesmo desmistificar esse lugar. Eu sou de uma geração que durante algum tempo reproduziu isso, ser forte pra caramba, usar isso como ferramenta. Não estou dizendo que tem que ser frágil, até porque esse lugar nem cabe para a mulher negra, mas cuidar das nossas feridas, não passar por cima do que a gente sente. Isso também é força.
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Você se preocupa em não reproduzir esses estereótipos para o Rakim? Ele é afeto, afeto, afeto. Me preocupo em verbalizar para ele as coisas desde um aninho. Ele me viu, é um menino muito observador, extremamente proativo. Nossa comunicação é muito potente. Ele me viu varrendo, ele pegou a vassoura e, sem sacanagem, ele quis varrer. Sério isso. Só assim pra ele respeitar, entender que não é só a mulher, todo mundo pode fazer aquilo, não tem problema nenhum. Ele assiste ao jornal e quando ele vê a Maju Coutinho o olho dele brilha. Outro dia eu estava vendo a live da Djamila Ribeiro e ele ficou beijando a tela. Ele entende a referência. "Nossa, parece minha mãe". Deve ser no mínimo isso que passa na cabecinha dele.
Muito tem se falado sobre o racismo no mercado da moda. Você trabalhou muitos anos como modelo, viveu isso de perto, e já disse que anos atrás os profissionais não tinham nem material para maquiar uma mulher negra. Como foi para você viver esse mercado? A culpa não era nem dos profissionais. Eu sempre deixo isso muito claro. É importante pontuar que a gente está falando do final dos anos 90, começo dos anos 2000, quando as pessoas precisavam viajar para comprar os materiais, não era barato. E eu vivia cinza. Porque o profissional raramente pegava uma menina negra para maquiar, então ele tinha uma única base para pele negra. O que servia para meu tom de pele servia para todas e era isso. Não tinha o que questionar. Eu sempre fui muito questionadora e foi muito difícil o começo na moda porque era uma fase em que a gente não tinha voz, a modelo era mesmo um cabide e acabou. Era entrar muda e sair calada, então não tinha muito como questionar, verbalizar. Eu, como mulher negra, me via muito solitária nesse lugar. Eu cheguei num status da moda que eu era considerada uma top, mas eu sofria com coisas que eu falava: gente, nenhuma amiga minha top sai de casa com esse tipo de preocupação. Se a pessoa vai ter sua base, por exemplo. Então você já sai perdendo na luta. E esse exemplo da moda é o que você passa no dia a dia. Você já sai lá atrás na luta. Para uma mulher negra chegar no topo, você pode ter certeza que ela batalhou muito mais. A mulher negra não tem lugar para erro, não pode errar. As oportunidade já são mais escassas, então você já tem menos oportunidade para acertar e errar. E tem que estar sempre pronta.
Você se achava bonita? Quando você entendeu sua beleza? Acho que foi com a maturidade, com a evolução mesmo, com a vivência. Durante muito tempo você precisava muito da afirmação do outro. Principalmente no começo, a carreira de modelo depende exclusivamente de alguém olhar pra você e falar: "é ela". Isso me deixava muito em dúvida porque eu trabalhava pra caramba, mas nunca era assim. E beleza também é muito relativo. Era sempre vi uma beleza diante de um padrão pré-estabelecido, então isso causava esse desconforto. Eu falava: mano, esse lugar nunca vai ser meu. Porque o que eles querem de mim é impossível. A gente precisava ter quadril com 89, 90 centímetros. Que mulher negra tem essa estrutura, esse corpo? Eu tenho estrutura fina, sempre fui magra, mas eu ainda tinha aquela paranóia de ter esse quadril. Em relação ao meu cabelo também, durante muitos anos ele foi alisado – e não tenho nada contra isso, desde que seja uma opção sua. Durante muito tempo eu tive que ter o cabelo alisado porque as pessoas não sabiam lidar com meu cabelo natural. E a gente está falando do começo dos anos 2000, então era sempre esse lugar de "vamos fazer um penteado exótico". Nunca era bonito o que eu estava fazendo, era sempre o diferente, o experimental. E é muito louco porque as pessoas acham que exótico é um elogio. Vai ver no dicionário ao que está ligada essa palavra. É sempre a objetos, coisas: uma planta exótica, um vaso exótico. Não é um elogio. É dizer que você não pertence.
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