Para lá de Cabul
A jornalista Adriana Carranca fala sobre como foi a experiência de conhecer o país afegão
"Tinha a impressão de que ia descer num aeroporto com barricadas", conta a jornalista Adriana Carranca, sobre o que pensava antes de aterrisar em Cabul, no Afeganistão. Como repórter do jornal Estado de S.Paulo, ela viajou ao país, em guerra há mais de 30 anos, enfretando o medo que ela e de quem sabia sobre seu destino sentiam. Mas, mesmo com o país em nível de alerta máximo de perigo, Adriana resolveu que conheceria a vida das pessoas daquela região. Com uma câmera digital emprestada de seu tradutor, retratou um país vivo, ainda que isolado pela pobreza. Batemos um papo com a repórter sobre como foi visitar um país em que a mulheres são reprimidas, os medos e as supresas da viagem.
Como surgiu a possibilidade de viajar para o Afeganistão?
Eu já vinha planejando ir para lá. Sabíamos que haveriam mudanças com as eleições americanas. Tanto se o candidato conservador ganhasse ou o Obama vencesse, de qualquer forma o Afeganistão era um dos focos da política externa norte-americana. No ano que antecedeu a eleição eu já estava pesquisando com a Cruz Vermelha a situação lá, se havia a possibilidade de fazer essa viagem. Quando eu estava de férias em Londres, veio a confirmação da Cruz Vermelha que poderiam me levar em campos de refugiado, na prisão de Bagram, em uma série de pautas que eu queria fazer, onde só eles têm acesso. Lugares aos quais, a princípio, eles não estavam levando jornalistas. Então eu embarquei de lá.
Como foi a primeira impressão, quando você chegou em Cabul?
Eu estava morrendo de medo, ainda que quisesse muito ir. Eu conhecia outros jornalistas que foram e eles pediam para que eu não fosse, e, se fosse, que eu nem saísse do hotel, porque estava muito perigoso. Haviam 70 pessoas sequestradas na época, entre estrangeiros e jornalistas, além de ataques suicidas. Então eu estava muito assustada, mas quando você chega num lugar desses, você percebe que as pessoas vivem ali. Existe uma vida acontecendo, em paralelo a guerra. Você não chega em um campo de batalha, como a gente imagina. Eu tinha essa impressão, de que ia descer num aeroporto com barricadas. Mas você vê uma cidade viva, que funciona. E era essa vida que eu queria ver. Sabe, tem padaria? As pessoas vão em restaurante? Além da questão humanitária, da Cruz Vermelha, é claro.
E existe essa vida?
Existem duas vidas paralelas. A dos estrangeiros que moram lá, que não se integram com a comunidade afegã, por medo. Funcionários de empresas como a Cruz Vermelha, a ONU, que têm áreas determinadas em que podem circular, não podem sair sozinhos, têm horário para chegar em casa. Isso cria uma vida paralela para os estrangeiros. E a vida afegã segue como sempre seguiu, quer dizer, eles estão em guerra há 30 anos. Eles, de certa forma, se adaptam. A sociedade é muito pobre, 80% da população ainda é analfabeta. Então é difícil até mesmo conversar com essas pessoas. Imagina, como elas vão se informar sobre a guerra? Eles não tem essa informação, nem sabem o que está acontecendo, nem sabem quem é Bush ou quem é Obama. Bush para eles é um mercado das pulgas que vende produtos roubados ou jogados no lixo pelas tropas americanas, o Bush Market. Então eles só sabem da vida deles mesmo.
Como você percebeu a questão de ser mulher, nessa sociedade?
O Afeganistão é uma região tribal. Antes mesmo da chegada do Islã, eles já tinham, muita enraizado, códigos de conduta tribal mantidos há milênios, transmitidos entre gerações, que determinam o que nós consideramos fatores de opressão contra a mulher. Por exemplo, elas não podem ter herança, propriedades em nome delas... agora, isso é muito antigo. E por ser uma sociedade pobre, que sempre viveu em guerra, ela privou o país do desenvolvimento. Os códigos de conduta não se modernizaram. Você tem uma série de tribos, que vivem em montanhas, enfrentam uma série de guerras, cada um vive no seu pedacinho de terra, na sua sociedade, sem muito contato com outras pessoas do mundo. A questão da mulher é uma consequencia disso, da pobreza e da privação do desenvolvimento. Você tem outros países islâmicos onde a situação da mulher não é como você vê lá, porque eles tiveram acesso a outras culturas, com outros povos, mas o Afeganistão é um país isolado pela pobreza.
Como foi visitar o campo de refugiados?
Quando houve a invasão russa, e começou a guerra, há trinta anos atrás, muitos afegãos migraram para países vizinhos, em campos de refugiados, barracas. Depois veio a guerra civil, depois o Taleban, eles não quiseram voltar. Quando os americanos chegaram, com todo o armamento e tecnologia, e pensaram que iam acabar com a guerra em um ano, cerca de 5 milhões de refugiados voltaram. Mas quando retornaram, não tinham mais nada. Eles deixaram suas casa em 1979, então as casas já tinham sido invadidas, por exemplo. Então eles vivem como refugiados dentro do próprio país. Vivem em barracas em áreas perto de Cabul, com a ajuda da ONU, e não têm nada. Absolutamente nada.
Teve alguma coisa que te surpreendeu no país?
Me surpreendeu essa não-integração entre os americanos que estão lá e os afegãos. Acho que seria um ganho para ambos. Os americanos conheceriam melhor a sociedade e poderiam ajudar, dessa forma, melhor, e o do outro lado também, porque os afegãos, quando começassem a ter contato com os americanos, também teriam uma certa movimentação para uma outra realidade que eles desconhecem.
Mas quando você tem essas duas sociedades paralelas... isso me chocou. Há lugares em Cabul onde os afegãos não entram, você precisa mostrar o passaporte estrangeiro para entrar em alguns restaurantes e bares.
Como surgiu a exposição?
Viajei pelo Estadão como repórter, eu não sou fotógrafa. E minha câmera quebrou. Fiz as fotos que foram para a exposição com uma câmera digital básica, nada profissional, que era do tradutor que contratei. Quando voltei, fizemos um caderno especial sobre o Afeganistão no jornal, no começo de fevereiro, quando o Obama anunciou que ia mandar novas tropas para lá. Aí, para fazer o caderno, peguei meu CD de fotos e mostrei para meu editor de fotografia [Juca Varella, curador da exposição]. Ele adorou, começou a me botar pilha, "Você tem que expôr!", mas eu nem tinha pensado em fazer nada. Como o SESC organizou a mostra Imagens do Oriente, e não tinha filmes afegãos para representar o país, eles me convidaram para fazer a exposição com fotografias.
E você pretende continuar fotografando?
Não sei! Vou pensar! [risos] Mas pretendo continuar viajando, só que isso depende do jornal. Tenho vontade de ir para outros lugares, como a Palestina. Acho muito interessantes esses países do Oriente Médio, sudeste asiático, pelo choque cultural muito grande que causam nas pessoas. Conhecer a diferença é legal, derruba seus próprios tabus.