Milly Lacombe: Viver em corpo de mulher
O corpo de uma mulher pertence ao estado e aos homens. O estado regula, os homens abusam. O estado oprime, os homens ocupam
Entendi que tinha um corpo de mulher no dia em que fique menstruada. Não pela menstruação em si, mas porque meu pai e minha mãe me presentearam com um sutiã. Ainda não tinha peitos desenvolvidos, amava ficar sem camisa por variados motivos, mas especialmente por dois: jogar bola e ir à praia. E agora eu tinha em mãos uma peça chamada sutiã.
É pra eu usar, perguntei aos dois que me olhavam com expressões estranhas. Sim, disse minha mãe. É obrigatório, insisti na pergunta. Sim, disseram ambos. E foi assim que, mesmo sem seios, eu passei a usar um sutiã e, logo depois, a parte de cima do biquini.
E então tudo desmoronou.
Entendi que meu corpo não era tão livre quanto o dos meus amigos. Agora eu fazia sempre parte do “time com camisa” nas partidas de futebol. Houve vezes em que meus colegas, percebendo meu desconforto, optavam por camisas claras contra camisas escuras.
A princípio, detestei meus seios, que pareciam ter decidido crescer com a chegada do sutiã. Em pouco tempo, eles preencheram todo o volume do tecido. As coisas começaram a melhorar quando aprendi a matar uma bola no peito sem sentir dor (basta matá-la entre o pescoço e os seios, tomando cuidado para não machucar nem um, nem outro. É um campo limitado para absorver o impacto da bola sem se ferir, mas, com treino, tudo se encaixa e passa a ser automático acolher a esfera no lugar certo).
Meus seios e eu aprendemos a conviver e eu, um dia, esqueci deles.
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Voltei a percebê-los quando fui visitar uma amiga e o pai dela me levou para o quarto da televisão, me colocou em seu colo e começou a apalpá-los. Aquilo não me pareceu certo, mas eu não tinha para onde ir. Ele me segurava com força e era um homem bastante grande. O pai de minha amiga fez isso algumas vezes, até eu decidir que não iria mais à casa dela. A casa de minhas amigas passou a ser local perigoso.
Foi assim que eu fiquei outra vez ultraconsciente a respeito de meus seios e passei a notar como, na rua, eles eram motivo de olhares de homens mais velhos. Eu não tinha ainda 13 anos e já havia entendido que meu corpo era alvo de coisas que não me deixavam feliz, muito menos livre.
Comecei a cruzar os braços para esconder meus peitos e a usar sutiãs cada vez mais apertados para tentar achatá-los numa tentativa de ser tão livre quanto meus colegas do futebol. Não funcionou.
Viver em corpo de mulher é ser lembrada a todo o instante de que esse corpo não é exatamente seu. Ele pode ser tocado na rua, pode ser abusado no trabalho, pode ser violentado na festa, pode ser avalizado em obituários.
O corpo de uma mulher pertence ao estado e aos homens. O estado regula, os homens abusam. O estado oprime, os homens ocupam. O estado diz quando podemos abrir nossas pernas, os homens dizem quando somos obrigadas a abri-las. O estado e a masculinidade são os fiéis proprietários dos corpos femininos.
A hierarquia dos corpos é então assimilada por todas nós seja para sobreviver, seja para pertencer. A ideia de que um feto tem mais direitos do que uma mulher é absorvida cedo na vida.
Dentro de um corpo de mulher, a gente entende rapidamente que não pode andar na rua sozinha à noite, que entrar em transporte público lotado é encarar uma mão ou uma coxa te invadindo, que entrar em vagão vazio de metrô é arriscado, que entrar em elevador onde só haja homens não é recomendável, que, em ambientes de trabalho, ficar sozinha numa sala com outro homem, especialmente se ele for mais poderoso do que você, vai exigir que você passe o tempo inteiro atenta a movimentos suspeitos e pensando em rotas de fuga.
Talvez por isso a gente dê a impressão de que é capaz de fazer muitas coisas de uma vez: porque fomos construídas com a consciência de que nossos corpos são alvos e é preciso ficar o tempo inteiro em estado de alerta. Não existe mulher no mundo para quem esses conceitos sejam alheios. Pobres, ricas, gordas, magras, pretas, brancas, cis, trans: vivemos em constante modo de atenção sabendo que, mais cedo do que tarde, estaremos numa situação de correr ou lutar – e que, provavelmente, perderemos de qualquer jeito.
A noção de que não estamos a salvo nem nas ruas e nem dentro de nossas casas instala em todas nós um sentimento de urgência, e os efeitos nocivos são os mesmos impostos a corpos que vivem em guerra.
Os números, aliás, são os de uma guerra: O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo, uma mulher é estuprada a cada dez minutos (levando em conta os casos relatados e a consciência de que a vasta maioria das mulheres não relata o abuso), três são assassinadas por dia.
Existimos conscientes de que há uma guerra contra nossos corpos, contra tudo o que seja associado ao feminino – sempre diminuído, ridicularizado, violável, matável. Nem todas nós somos feministas, verdade, mas todas somos vítimas do machismo e da misoginia.
Para uma mulher cis, essa realidade começa a se transformar com a chegada da menopausa. Nessa hora, você vai do alvo à invisibilidade. Seu corpo já não interessa mais como objeto a ser invadido no campo da guerra. Quem sobreviveu até ali ganha o direito de ser invisível.
Pelo menos era assim até pouco tempo.
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Hoje, muito por conta do desejo universalizado pelas mulheres lésbicas, nosso poder erótico já não está exclusivamente associado à percepção de que temos a capacidade de reproduzir ou à juventude que vem com ela. O desejo lésbico não está reduzido ao corpo e, por isso entre tantas outras coisas, todos os dias ao acordar agradeço aos céus por ser uma mulher lésbica.
Menopausa, na raiz, é a pausa dos ciclos. Na prática, é o começo do processo de virar bruxa.
É o momento em que você finalmente apreende e realiza toda a potência que existe em viver dentro de um corpo de mulher – uma potência que, talvez, nossas amigas trans sejam capazes de absorver ainda mais rapidamente porque a viagem de transição parte de um ponto de urgência, de desejo, de potência realizadora: não existe vida se não for em um corpo de mulher.
Foi com algumas mulheres trans que entendi que aquilo que eu tentava esconder – meu corpo – elas se orgulhavam de exibir; um aprendizado que vem com riscos, mas também com potências.
Para a mulher cis, é na menopausa que, livre da opressão do olhar e da invasão masculina, a a gente se sente mais livre. Com a desobrigação de viver em permanente estado de alerta, vem o descanso da alma, do espírito e da mente.
Como seria existir assim desde sempre? Que tipo de força as mulheres desse mundo poderiam mobilizar sem estar a todo o instante do dia e da noite oprimidas pelo poder dos homens ao redor – sejam eles desconhecidos, conhecidos, chefes, maridos, namorados, cunhados, pais, tios, irmãos, lideranças espirituais etc?
Termino com um trecho de uma carta que o filósofo Paul Preciado, um homem trans, escreveu a respeito das polêmicas que envolveram o movimento #MeToo:
“Deixe-me dizer-lhes, do outro lado do muro, que o quadro é muito pior do que a minha experiência como lésbica me permitiu imaginar. Desde que vivo como-se-eu-fosse-homem no mundo dos homens (consciente de encarnar uma ficção política) consegui verificar que a classe dominante (masculina e heterossexual) não abandonará seus privilégios porque enviamos muitos tweets ou demos alguns gritos. Desde os tumultos da revolução sexual e anti-colonial do século passado, os patriarcas héteros embarcaram em um projeto de contra-reforma – ao qual agora se juntaram vozes ‘femininas’ que desejam continuar a ser ‘importunadas /perturbadas’. Esta será a Guerra dos Mil Anos – a mais longa, sabendo-se que afeta políticas e processos reprodutivos através dos quais um corpo humano constitui-se como sujeito soberano. De fato, será a mais importante das guerras, porque o que está em jogo não é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida.”
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