Podem matar uma mulher, mas jamais suas ideias

Milly Lacombe reflete sobre a execução de Marielle Franco e pede que ela não seja vista apenas como mais um caso da violência carioca

por Milly Lacombe em

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social, onde se encontram as mulheres negras [e assim] muda-se a base do capitalismo", disse a escritora e ativista americana Angela Davis.

As mulheres negras têm se movimentado, e, como disse Davis, estão mexendo com todas as estruturas que nos acomodam há séculos. Mas o que acontece quando uma mulher negra e defensora dos direitos humanos é executada? Diante do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco a resposta poderá ser dada por cada um e cada uma de nós a partir de hoje. 

O Rio é um estado violento, e o Brasil um país violento. Não há nada de novo se a morte de Marielle for vista com essas lentes – e há quem queira que o assassinato dela seja visto apenas assim e entre para a conta da “enorme violência que assola o Brasil, um país que não tem mais jeito”.

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Que pensemos dessa forma é uma grande conveniência para quem hoje tem o poder porque, amedrontados e amedrontadas, gritaremos por proteção e aceitaremos as mais grotescas e autoritárias ações de controle, de opressão e de censura. Mas a morte de Marielle não está nessa conta e precisa ser vista em outro contexto.

A ação que executa um defensor dos direitos humanos com nove tiros é um recado. É a desesperada tentativa de calar vozes que não compactuem com a força e as regras do poder econômico, com a concentração de renda, com a autoridade permanecer nas mãos de quem sempre a teve.

Marielle nasceu e cresceu na comunidade, se formou em sociologia pela PUC-RJ e tinha mestrado em administração pública. Foi eleita vereadora no Rio com mais de 46 mil votos, tinha 38 anos e uma filha de 19. Pobre, mulher, negra, lésbica. Marielle via o Rio e o Brasil de um lugar que não pertence a pessoas brancas que não conhecem esse país a partir das favelas. Sua voz carregava significado e mostrava para quem estivesse disposto a escutar uma realidade que muitas vezes escapa e que não interessa ao poder político e econômico – composto pelos mesmos homens há séculos.

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O barulho que Marielle fazia começava a incomodar, e – como a história mostra tão eloquentemente – há barulhos que precisam ser silenciados antes que seja tarde demais.

A escritora feminista Rebecca Solnit escreve em seu A Mãe de Todas as Perguntas: “A grande experiência feminista de refazer o mundo refazendo nossas ideias de gênero e instigando quem tem o direito de romper o silêncio tem tido imenso sucesso e ainda continua extremamente incompleta. Desfazer as estruturas sociais de milênios não é obra de uma geração ou de algumas décadas, mas um processo de criação e destruição de escala épica e execução muitas vezes encarniçada. É um trabalho que envolve os mais ínfimos gestos e contatos cotidianos, a transformação das leis, das convicções, da política e da cultura em escala nacional e internacional; muitas vezes tal transformação surge do impacto cumulativo de gestos mínimos”.

É a nossa vez de fazer esses gestos mínimos. No dia a dia, a todo o instante e sempre que for preciso confrontar uma situação que envolva opressão, porque ela mora nas frestas do cotidiano e, lentamente e sem que percebamos, vai apequenando e chafurdando a todos e todas nós, deixando o poder nas mãos de quem sempre o teve. Um poder que no dia 14 de março de 2018 calou Marielle.

Listamos abaixo as propostas de Marielle para o Rio. Podem executar uma mulher, mas jamais suas ideias. Marielle, tua luta não foi em vão; passa aqui para a gente esse bastão.

 

Projeto de lei nº 72/2017

Inclui o Dia da Luta Contra a Homofobia, Lesbofobia, Bifobia e Transfobia no calendário oficial da cidade consolidado pela lei nº 5.146/2010.

Autora: vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 82/2017

Inclui o Dia da Visibilidade Lésbica no calendário oficial da cidade do Rio de Janeiro consolidado pela lei nº 5.146/2010.

Autora: vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 103/2017

Inclui o Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra no calendário oficial da cidade do Rio de Janeiro consolidado pela lei nº 5.146/2010.

Autora: vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 288/2017

Inclui o Dia Municipal de Luta Contra o Encarceramento da Juventude Negra no calendário oficial da cidade consolidado pela lei nº 5.146/2010.

Autor(es): vereadora Marielle Franco, vereador Tarcísio Motta, vereador Renato Cinco, vereador David Miranda, vereador Paulo Pinheiro

 

Projeto de lei nº 555/2017

Cria o Dossiê Mulher Carioca na forma que especifica e dá providências (o dossiê consistirá na elaboração de estatísticas periódicas sobre as mulheres atendidas pelas políticas públicas sob ingerência do município do Rio de Janeiro).

Autora: vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 442/2017

Dispõe sobre fixação de cartaz informativo nos serviços públicos do município do Rio de Janeiro (o Poder Executivo fixará cartazes em lugares visíveis nos serviços públicos de atendimento às mulheres, informando dos direitos das mulheres vítimas de violência sexual).

Autora: vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 642/2017

Institui a assistência técnica pública e gratuita para projeto e construção de habitação de interesse social para as famílias de baixa renda e dá outras providências.

Autora: vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 265/2017

Estabelece diretrizes para a criação do Programa Centro de Parto Normal e Casa de Parto, para o atendimento à mulher no período gravídico-puerperal, e dá outras providências.

Autor(es): Comissão de Defesa da Mulher (Marielle é presidente), vereadora Tânia Bastos, vereadora Luciana Novaes, vereadora Vera Lins, vereador Paulo Pinheiro, vereador Cesar Maia, vereador David Miranda

 

Projeto de lei nº 17/2017

Institui o Programa Espaço Infantil Noturno - atendimento à primeira infância - no âmbito do município do Rio de Janeiro.

Autor(es): vereadora Marielle Franco, vereador Tarcisio Motta

 

Projeto de lei nº 711/2018

Cria o Programa de Desenvolvimento Cultural do Funk Tradicioinal Carioca e dá outras providências.

Autor(es): vereador Marcello Siciliano, vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 437/2017

Restringe o objeto de contratos de gestão celebrados entre o município do Rio de Janeiro e organizações sociais da área de saúde, e dá outras providências.

Autor(es): vereador dr. Carlos Eduardo, vereador Jorge Felippe, vereador Rafael Aloisio Freitas, vereador Eliseu Kessler, vereador Willian Coelho, vereador Carlos Bolsonaro, vereador Luiz Carlos Ramos Filho, vereador Val Ceasa, vereador Italo Ciba, vereador Zico Bacana, vereador Inaldo Silva, vereador João Mendes de Jesus, vereador Reimont, vereadora Luciana Novaes, vereadora Tânia Bastos, vereador dr. Jorge Manaia, vereador Fernando William, vereadora Veronica Costa, vereadora Teresa Bergher, vereador Carlo Caiado, vereador Felipe Michel, vereador dr. João Ricardo, vereadora Vera Lins, vereadora Rosa Fernandes, vereador Renato Moura, vereador Otoni de Paula, vereador Jones Moura, vereador dr. Jairinho, vereador Chiquinho Brazão, vereador Jair da Mendes Gomes, vereador professor Rogério Rocal, vereador prof. Célio Lupparelli, vereador Marcelino d'Almeida, vereador Renato Cinco, vereador professor Adalmir, vereador Thiago K. Ribeiro, vereador Cesar Maia, vereador David Miranda, vereador Leonel Brizola, vereador Paulo Pinheiro, vereador Junior da Lucinha, vereador Tarcísio Motta, vereadora Marielle Franco, vereador Alexandre Isquierdo, vereador Zico, vereador Marcello Siciliano, vereador Marcelo Arar, vereador Cláudio Castro, vereador Paulo Messina.

 

Projeto de lei nº 16/2017

Institui o Programa de Atenção Humanizada ao Aborto legal e juridicamente autorizado no âmbito do município do Rio de Janeiro.

Autor(es): vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 417/2017

Cria a campanha permanente de conscientização e enfrentamento ao assédio e violência sexual no município do Rio de Janeiro.

Autor(es): vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 169/2017

Define ações de combate ao jogo, brincadeira ou evento denominado Baleia Azul (blue whale), #f57 ou similar no âmbito do município.

Autor(es): vereador Otoni de Paula, vereador Cláudio Castro, vereador professor Rogério Rocal, vereador Tarcísio Motta, vereador Fernando William, vereador David Miranda, vereador dr. Sergio Alves, vereador Paulo Pinheiro, vereadora Marielle Franco

 

Projeto de lei nº 515/2017

Institui o Programa de Efetivação das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto no âmbito do município do Rio de Janeiro.

Autor(es): vereadora Marielle Franco, vereador Tarcísio Motta, vereador Leonel Brizola, vereador prof. Célio Lupparelli

 

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Créditos

Imagem principal: Carol Ito

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