Milly Lacombe: O orgasmo é revolucionário

Pela primeira vez na história, estamos vivendo num mundo onde pessoas com vagina e clitóris gozam fartamente. O que podemos conquistar a partir de agora?

por Milly Lacombe em

Pela primeira vez na história, estamos vivendo num mundo onde pessoas com vagina e clitóris gozam fartamente. Esse mundo nunca existiu antes e eu estou a cada dia mais convencida de que, a cada gozo clitoriano, mais perto chegamos da revolução.

Durante séculos, o prazer feminino não importou. A anatomia do clitóris só foi devidamente estudada há poucos anos. O gozo de uma mulher cis era assunto descartado e, na cama, território que não estava em disputa. Sexo era penetração, e gozo era peniano. 

O cinema tratava de nos convencer de que mulheres cis poderiam gozar ao serem penetradas. A estética do sexo reduzida a duas posições que, hoje sabemos, não fazem muito por nossos orgasmos. Apenas uma minoria de mulheres cis e de homens trans com vagina gozam ao serem penetradas e penetrados desses jeitos. O gozo vaginal é tão farto quanto a chuva na caatinga.

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Por isso mesmo, o cliché “mulher não gosta de sexo” carrega uma verdade parcial. Mulher não gosta de sexo ruim – e foi isso o que tivemos durante muito tempo. Está justamente aí a vantagem competitiva da sapatão. Mas já não aceitamos mais que sexo seja reduzido a essas cenas de cinema – e nossas exigências estão derrubando muros bastante altos.

A revolução que vem com o gozo clitoriano está deixando alguns homens perturbados. Não pode ser por acaso que recentemente ficamos sabendo do escândalo do Brocholão (nome maravilhoso dado pelo jornalista Fernando Barros e Silva): dinheiro público financiando a compra de 35 mil comprimidos de Viagra e de R$ 3,5 milhões em próteses penianas infláveis – cujos tamanhos variavam de 10 a 25 centímetros – para as Forças Armadas. 

Se pelo menos esse gasto de dinheiro público fosse fazer mais mulheres gozarem, poderíamos até tentar argumentar. Mas ele nada fará por nossos orgasmos. É apenas mais do mesmo: homens cis em sua sanha por poder que, para eles, se traduz em membros rígidos e inflados ao custo que for.

Só que o feminismo nos deu novas ferramentas e episódios como o do Brocholão servem apenas para aumentar o ridículo de algumas formas de masculinidades.  

Estamos nos apropriando de nossos gozos clitorianos e nunca antes o mundo passou por isso. Já não aceitamos mais associar sexo ao “não gozar”. Penso nisso e imagino a absurda quantidade de mulheres de gerações passadas que viveram e morreram sem saber o que era um orgasmo.

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Hoje, uma nova geração de vibradores nos aproxima do orgasmo diário e rápido sem que sequer haja a necessidade de alguém na cama ao nosso lado – ou sobre a gente, ou embaixo da gente. Todas as mulheres que eu conheço têm um vibrador perto da cama. O mercado erótico, percebendo o potencial de crescimento, investe no gozo clitoriano.

Dados do portal Mercado Erótico informam que, num período de três meses em 2020, aproximadamente um milhão de vibradores foram vendidos no Brasil. E o produto mais vendido em 2020 foi o Satisfyer Pro 2, um estimulador clitoriano recarregável, com 11 níveis de sucção.

Como será um mundo no qual mulheres cis e homens trans com vagina gozam fartamente? Nossas mães não tinham acesso a esse direito. Nossas avós menos ainda. Chegamos até aqui, nessa sociedade dominada por homens cis, sem direito ao gozo. O que podemos conquistar a partir de agora?

Quando a gente se apropria do orgasmo a gente se apropria de direitos básicos, e, ainda mais potentemente, se apropria dos nossos desejos. Eis aí a verdadeira liberdade: reconhecer nossos desejos. O caminho da emancipação passa pelo gozo. Um mundo assim desenhado tem enorme potencialidade de transformação.

“A classe dominante (masculina e heterossexual) não abandonará seus privilégios por que enviamos muitos tweets ou demos alguns gritos”, escreve em um de seus textos o filósofo e ativista Paul Preciado, um homem trans. Para ele, a batalha para destruir o sistema atual de sexo-gênero é a verdadeira Guerra dos Mil Anos. Uma guerra que “afeta políticas e processos reprodutivos através dos quais um corpo humano constitui-se como sujeito soberano. De fato, será a mais importante das guerras, porque o que está em jogo não é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida”.

O gozo clitoriano – farto, amplo e irrestrito – vai ajudar a gente a tecer um mundo mais justo e inclusivo.

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