Poder e assédio
Mara Gabrilli fala sobre a natureza do assédio e a violência que não escolhe necessariamente um gênero, mas quase sempre envolve poder
Advogado, casado, funcionário público e vítima de assédio sexual. Esse é o perfil de um munícipe que dia desses visitou meu escritório em busca de apoio para levar adiante uma denúncia que fez sobre os abusos recorrentes que acontecem em seu local de trabalho. Lá, o chefe entra na sala, abaixa a calça e sugere aos seus funcionários que o toquem nas partes íntimas. Frustrado por não encontrar apoio entre os próprios colegas de trabalho, que preferem praticar o “deixe isso para lá”, ele contou que chegou a ser advertido por não ter se calado diante dos abusos de seu superior.
Diferentemente do movimento que vem ocorrendo pelo mundo afora, com cada vez mais mulheres denunciando práticas abusivas, ali, no universo masculino, o silêncio é soberano. O homem, quando sofre assédio no ambiente do trabalho, se cala. Na maioria das vezes, ele se sente envergonhado em denunciar o próprio abuso — diga-se de passagem, cometido algumas vezes por mulheres em posição de chefia. Falar de assédio sexual o faz sentir-se pequeno, menos viril, menos poderoso. Vulnerável tão quanto uma mulher. Afinal, fomos treinados para um mundo onde homens e mulheres não foram educados para compartilhar das mesmas fragilidades.
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Uma pesquisa realizada por um grupo da Universidade de Lisboa apontou que as mulheres são muito mais reativas quando sofrem assédio: 52% delas denunciam o delito, enquanto 31% dos homens tomam a mesma atitude. A verdade é que não há uma conduta no mundo onde o assédio seja discutido em sua origem, que transcende as questões sexistas. O assédio nasce nas relações humanas onde há presunção de poder sobre o outro. Condutas autoritárias, que humilham, cobram indevidamente e degradam o dito “fraco” estão presentes em vários locais: acontece dentro de famílias, empresas, no universo acadêmico.
“Quem assedia se enxerga maior, inclusive intelectualmente. E é sobre poder, sobretudo, que precisamos falar”
Quem nunca ouviu queixas assombrosas de mestrandos e doutorandos que são rebaixados por seus orientadores acadêmicos por anos e anos dentro da universidade? Eles são levados ao esgotamento físico e mental com cobranças indevidas e recorrentes humilhações. Muitos desenvolvem sérios problemas psicológicos, desistem de suas teses, flertam com o suicido. São abusos que acontecem em laboratórios por todo o país e na maioria das vezes o que impera novamente é o silêncio.
Quem assedia se enxerga maior, inclusive intelectualmente. E é sobre poder, sobretudo, que precisamos falar agora para combater o assédio, que, graças a Deus, virou o tema do momento.
Já falei aqui em outras ocasiões que a mulher com deficiência sofre de muitas formas de assédios. No mundo todo, 40% das mulheres com deficiência são vítimas de abusos frequentes e 12%, de estupro. A violência cometida se manifesta sob várias facetas: agressão física, compulsão legal, coerção econômica, intimidação, manipulação psicológica, fraude, negligência e muita discriminação no ambiente de trabalho. Uma realidade que deflagra muito além de uma sociedade sexista, um mundo que não foi educado para conviver e respeitar o outro como igual.
Educamos nossos meninos e inconscientemente o influenciamos para que se sintam maiores que as meninas desde sempre. Por que, ainda hoje, presenteamos nossos garotos com carrinhos e as meninas, com vassouras? Por que o contrário parece tão surreal?
Quando nos tornamos mulheres somos vítimas de homens que por toda a vida foram mimados por outras mulheres. E no caso das pessoas com deficiência, o ciclo de assédios se repete à margem da invisibilidade, pois essas pessoas desde muito crianças são colocadas à margem de tudo. As escolas se veem no poder de vetar a matrícula de alunos com deficiência porque não enxergam na diversidade o potencial de convivência e aprendizado. Uma discriminação velada e perversa cuja as consequências se arrastam para uma vida marcada por várias formas de assédio.
Ser cadeirante me fez ver muita coisa diferente. A começar pelo meu próprio ângulo de visão, que algumas vezes, por conta da altura da cadeira, me condiciona a ver as coisas sob outra perspectiva em vários sentidos. E foi dessa ótica, entre pessoas com e sem deficiência, onde mais consigo enxergar o outro se apoderando de quem julga ser mais fraco. E só quando de fato combatermos esse delírio social, onde se enaltece e isenta o poder, é que as relações humanas deixarão de ser abusivas, criminosas e desiguais.
Créditos
Imagem principal: Arquivo pessoal