Mara Gabrilli: A cultura do assédio

Até quando as mulheres serão culpadas pelas violências que sofrem? Mara Gabrilli relembra o abuso que viveu há 26 anos e questiona quão pouco avançamos desde então

por Mara Gabrilli em

Aos 26 anos, quando sofri um acidente de carro e quebrei o pescoço, fui transferida de um hospital que ficava em São Paulo para uma clínica de reabilitação nos Estados Unidos. Ao chegar ao aeroporto, fui recebida por uma ambulância, na qual permaneci deitada, já que ainda não conseguia me sentar. Dentro dela, estavam eu, o motorista, um paramédico americano e uma amiga fisioterapeuta. Inesperadamente, o paramédico se levantou e perguntou se podia me examinar. Ele não me deu nenhuma explicação plausível para tal necessidade. Apenas puxou meu cobertor, deixando minhas pernas à mostra. Ali, começou a me tocar, subindo a mão até chegar em minha calcinha. Quando me dei conta do que estava acontecendo, comecei a gritar. O motorista parou o carro e tirou ele do espaço.

Sem movimentos e sem poder me comunicar direito, na mente doentia daquele homem, era como se minha condição dissesse: venha me abusar! À época, para aquela figura covarde, eu era um alvo fácil, à pronta entrega para seu desfrute. Em condições normais isso jamais teria ocorrido comigo. E é nessas horas que penso quantas mulheres, com e sem deficiência, não passam por isso. Quantas não se veem fragilizadas em determinadas situações no dia a dia? No transporte público, nas ruas, na faculdade, nos happy hours... e mais triste ainda, às vezes, dentro da própria casa.

Quando falamos em ambiente de trabalho, essa realidade não é diferente. No início deste ano, em pesquisa realizada pela rede social LinkedIn, em parceria com a consultoria Think Eva, foram ouvidas 381 mulheres em todo o país e metade deste número relata já ter vivido algum caso de assédio em ambiente de trabalho, mas apenas 5% denunciaram os casos. A mulher se cala porque, simplesmente, ela não encontra apoio.

A verdade é que quem assedia se enxerga maior que o outro. O assediador vê na vítima uma posse, um objeto a ser usado. O mais lamentável de tudo é que esse delírio social é tratado por inúmeras pessoas como algo orgânico, corriqueiro e, consequentemente, impune. O caso de Mariana Ferrer é um retrato disso. O que tiraram dessa jovem, que eu choro só de olhar em seu rosto, além da virgindade e de anos de saúde mental, foi a dignidade, a autoestima, a confiança, a esperança na Justiça.

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Mariana foi vítima de um crime, mas os perversos que a cercaram, travestidos como homens do Direito, foram muito além. Alcançaram o suprassumo da humilhação, expondo-a no ambiente no qual não cabia mais nada além de justiça e acolhimento.

No Senado, assinei, em coautoria com a Procuradora da Mulher do Senado, a senadora Rose de Freitas, e o senador Fabiano Contarato, um voto de repúdio e outras iniciativas parlamentares contra as atitudes dos envolvidos nesse caso, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, o Juiz Rudson Marcos e o Promotor de Justiça Thiago Carriço de Oliveira, por distorcerem fatos de um crime de estupro e exporem a vítima a sofrimento e humilhação em plena audiência.

Envergonha-me ver que passados 26 anos do que ocorreu comigo, a sociedade continue assistindo a cultura do assédio se proliferar pelo Brasil. Entristece-me ver que além dos crimes cometidos, ainda presenciamos as falas de ódio, inclusive de outras mulheres, que expõem a pura falta de empatia pelo próximo. Nessas horas sinto uma vergonha retumbante por viver em um dos países que mais matam mulher no mundo e que nada de verdade é feito para mudar de fato valores e mentalidades distorcidas.

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Quem não se lembra da paisagista Elaine Caparroz que foi espancada durante quatro horas pelo estudante de Direito Vinicius Batista Serra. Ela teve várias fraturas no rosto, perdeu dentes, levou 40 pontos na boca. Para muita gente, no entanto, o ocorrido não passou de uma tragédia anunciada – facilmente evitada pela vítima se fosse ela uma “mulher correta”.

Afinal, quem mandou querer sair com um homem mais novo? Quem mandou sair com gente de aplicativo? Quem mandou ir para a casa no primeiro encontro? Quem mandou, em algum momento desejar, assim como um homem, fazer sexo?

Todas essas perguntas disfarçadas, porque na verdade já são julgamentos, retratam a teoria do “estupro culposo”. Elas são feitas para justificar o injustificável. Elas expõem o quanto a vítima ainda é culpabilizada. Quando achamos que a violência contra a mulher no Brasil já tomou escalas insonháveis, com mulheres sendo espancadas e arremessadas pela janela, vimos que o buraco é ainda mais embaixo, quando – por razões completamente distorcidas e carregadas de machismos – parte da sociedade acaba chancelando tais crimes.

Por que ainda parece tão distante para algumas pessoas se colocarem no lugar de outras? Muito além da sororidade há palavras bem mais simples e que muitos de nós brasileiros ainda desconhecemos. Empatia é uma delas.

Espero que em um futuro próximo a sociedade brasileira aprenda não só o significado desse verbete, mas também a exercê-lo em sua plenitude. Porque é impossível fazer justiça onde não há humanidade.

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