Sobre gozar a vida
Maeve Jinkings é a presença feminina mais marcante do melhor do cinema nacional – além de ser uma mulher que goza sem culpa
Maeve Jinkings transforma seus desejos em prioridade. E faz o mais difícil: não sente culpa. E ainda goza. A energia poderosa da atriz invadiu o cinema nacional e a colocou no centro da cena mais fértil do país, a pernambucana. Em O som ao redor (2012), Maeve surgiu na pele de Bia, uma dona de casa solitária, que se masturbava na máquina de lavar roupa, fumava um baseado com o aspirador de pó e fazia pensar se eram necessários os maridos.
O filme arrebatou público e crítica e alavancou a carreira da extraordinariamente sexy, nas palavras de Caetano Veloso, Maeve. Depois disso, ela levou sete prêmios de melhor atriz com filmes como Amor, plástico e barulho (2013) e Boi Neon (2015) e vestiu roupa de gala para protestar contra o impeachment de Dilma Rousseff, em Cannes, ao lado de Sonia Braga e da equipe de Aquarius, o filme mais comentado de 2016. E segue ocupada com o cinema: neste ano, protagoniza o longa Açúcar, drama psicológico ambientado nos canaviais de um antigo engenho, ainda sem data de estreia.
Apesar da fama de pernambucana, Maeve nasceu em Brasília e cresceu em Belém do Pará. Perto dos 30, ela passou dois anos convivendo com a sensação de estar despencando de um abismo. No meio do caos, topou um convite do padrasto para ir a Recife; se perdeu de praia em praia até que uma estranha a convidou para uma cerveja. Acabou se misturando com Cláudio Assis, Lírio Ferreira e outros cineastas que não demoraram a sacar seu magnetismo. Ela demorou um pouco mais.
Em 2013, recebeu um convite para viver sua primeira protagonista no cinema. Jaqueline, líder de uma banda de tecnobrega e uma mulher absolutamente erótica. Maeve travou. “Em Amor, plástico e barulho percebi que eu tinha um preconceito com essa mulher que lança mão do seu capital erótico para exercer poder.” Desconfortável, ela enfiou o microbiquíni da personagem na mochila e foi tomar sol em Brasília Teimosa, uma praia popular perto de Recife. Ali, com a ajuda de Jaqueline, ela sacou que seu poder de sedução é legítimo. E começou a usá-lo.
Caminho sem volta
Nos últimos meses, Maeve está se revezando entre o sertão da Paraíba e o Rio de Janeiro para as gravações da supersérie Onde nascem os fortes, de José Luiz Villamarim, que estreia em abril, na Globo. Ela viverá Joana, uma personagem cheia de cenas de sexo. “Estou a fim de investigar a potência da intimidade com o corpo, com o próprio desejo. A Joana goza e isso é do caralho. Gozar, a gente sabe, é revolucionário.” Cada personagem que passa pelo corpo de Maeve expande um pouco as fronteiras do feminismo da atriz. Em Boi Neon, ela sentia que a caminhoneira Galega, vivida por ela, estava sendo sub-representada. Sofreu, se sentiu a feminista chata, achou que ia perder trabalho, mas resolveu falar. Trocou uma ideia com o diretor do filme, o pernambucano Gabriel Mascaro, e juntos criaram novas cenas para Galega. “A gente precisa disso nesse momento. Não quero só implodir as coisas”, diz.
Fazer valer as próprias vontades é, na prática, para uma mulher, bem difícil. Mas é libertador. Aos 41, Maeve se lançou em um caminho sem volta. “Tem uma coisa que é aprender a se colocar em primeiro lugar, sem culpa. Quando a mulher entende um valor que ela tem, não consegue mais desaprender. É como aprender a ler. É uma relação com certo alfabeto de como existir. Você não aceita mais ser analfabeto e vai querer aprender mais línguas.”
Tpm. Sua imagem é muito ligada a Recife, mas você não é pernambucana. Onde você cresceu? Maeve Jinkings. Eu nasci em Brasília, de uma mãe paraense e um pai que nasceu na divisa entre o Maranhão e o Piauí. Eu tinha uns 5 anos quando eles se divorciaram e minha mãe voltou para Belém comigo e com minha irmã. Minha mãe era uma jovem solteira, fotógrafa, ganhava pouco e, àquela altura, meus avós tinham uma livraria tradicional em Belém, viviam bem, então fomos morar com eles. Minha transgressão maior de criança era brincar de pula-pula no depósito da livraria Jinkings.
Como era, nessa época, ser filha de mãe solteira em Belém? Na minha infância, eu invejava os amigos que tinham uma família tradicional, o pai e a mãe dentro de casa, de preferência bem conservadores. Me lembro dessa memória. Eu queria o padrão, e minha mãe não era. Isso me incomodava. Meu processo de me tornar adulta teve muito a ver com compreender a minha mãe como mulher. Hoje eu agradeço tanto. Foi importante ter entendido que ela optou por ela, por ser feliz, pelo que achava que ia ser bom para ela. Isso foi muito decisivo para o que eu sou hoje.
E quando você começou a pensar sobre o que significa ser mulher? Quando me divorciei. Teve uma coisa forte de falar: “Puxa, eu gosto tanto de cuidar do outro, sou tão maternal, mas em que momento eu me coloco em primeiro lugar?”. Eu tinha uma ideia torta desse egoísmo, que hoje acho muito saudável. Somos animais imitadores e eu tinha aprendido que mulheres cuidam de pessoas. Foi um processo de rompimento e fui percebendo que me priorizar não era tão feio assim. Entendi que isso me faz uma mulher mais inteira.
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O que rolou na época desse divórcio? Eu estava perto dos 30, morava em São Paulo e estava casada havia oito anos. Estava terminando a Escola de Arte Dramática da USP, trabalhando com teatro e como produtora cultural. Não conseguia mais conciliar o ofício de atriz e o emprego CLT. Comecei a entender que estava chegando a hora de fazer uma escolha. Saí do emprego, que eu adorava. Desde sempre eu tive minha própria grana e, naquele momento, ser atriz não pagava as minhas contas. Nessa época, entendi que meu casamento não fazia mais sentido. Há algum tempo, Jiddu [o ex] confessou de maneira bonita que, na época, foi difícil para ele lidar comigo crescendo para além da gente. Hoje, somos parceiros da vida. Foram os dois anos mais difíceis para mim, entre 2008 e 2009. Era uma sensação de abismo, eu estava sentindo a queda. Foi um período muito importante de reconstrução.
Você se casou de novo? Meu relacionamento mais longo foi com ele, mas tive outros. Morei com outras pessoas, mas sempre muito rapidamente. Agora estou solteiríssima.
É mais difícil se relacionar com alguém sendo famosa? Imagino que essa coisa de ser uma mulher pública seja uma questão. Mas uma coisa que conquistei, que é a intimidade com o próprio desejo, é que intimida. Isso não é uma exclusividade minha, acho que é uma coisa geracional. Muitas amigas fazem essa reflexão, de que existe um gap entre homens e mulheres. A gente tem refletido tanto... As mulheres estão tão absurdamente interessantes e interessadas em se apoiar.
A possibilidade de ficar com mulheres existe? Sim, já fiquei com mulher, mas nunca me apaixonei. Infelizmente, porque as mulheres estão em um momento incrível da história.
A Tpm se propôs a pensar como será a realidade feminina daqui a 20 anos. O que passa pela sua cabeça? Eu penso em gerações. A minha mãe foi da geração que aprendeu a se divorciar. Abriram muitos caminhos, começaram a demandar direitos iguais, mas tinham dificuldade de entender a vida sem a obrigatoriedade de um casamento. Minha mãe teve filhas muito cedo, com 18 anos, e isso significou uma porção de privações em vários âmbitos, muito por conta da maneira como a sociedade entende o que é ser mãe. Na minha geração, as mulheres estão casando muito menos e a taxa de natalidade caiu drasticamente.
Você não quer ter filhos? Tenho vontade de ter filhos, mas não tive. Acho isso muito significativo. Já desejei muito, sofri muito, e talvez muitas mulheres compartilhem desse sofrimento, dessa falta, dessa ideia de que não se está inteira. Faz pouco tempo que entendi que, mesmo se eu não tiver filhos, vou ser feliz pra caralho também. Minha ficha caiu quando passei férias com uma amiga na Europa. Ela é uma mulher de 60 e tantos anos, que nunca teve filhos e é feliz. Tem a vida dela, fez mil coisas, é artista. Perguntei se ela nunca sofreu por isso. Eu estava cheia de dedos para perguntar, porque aquilo para mim era enorme, e ela respondeu que não. Ouvir isso foi uma tranquilidade.
“Faz pouco tempo que entendi que, mesmo se eu não tiver filhos, vou ser feliz pra caralho também”
Ser mãe está tão ligado ao que a gente entende por ser mulher que parece impossível realmente saber se queremos ou não ter filhos. Isso foi perturbador para você? Que lindo isso, que doido. Me perguntei muito: “Será que eu quero mesmo?”. Às vezes, penso: “Nossa, que bom que eu não tive”. E, ao mesmo tempo, penso que seria uma ótima mãe. Eu pensava assim: quero que meu filho conheça meu pai. Dizia para ele: “Ainda não tive um filho, mas vou ter e preciso que ele te conheça”. Eu sei que, para o meu pai, isso é um valor. Sei que ele espera isso. Antes, eu me ofendia quando ele falava: “Ah, você não vai ter né, filha?”. Eu dizia: “Vou, sim”. E hoje falo: “Talvez eu não tenha”. Tem uma coisa de uma experiência animal que me fascina, deve ser lindo, mas a conclusão a que cheguei é a de que não quero ser refém desse desejo. Já tive a chance. Ouvi: “A hora que você quiser, vamos ter um filho”. E preferi não ter. Isso é uma superliberdade, uma conquista da minha geração.
Você acha que isso está ligado àquela ideia de uma mulher do futuro? Sim. Estamos conquistando isso. Foi importante viver minha juventude solteira, sem filho, me entendendo e colocando meus desejos em primeiro lugar, como os homens foram acostumados a fazer. E tudo bem, sem julgá-los. Mas espera aí que agora eu vou cuidar da minha vida. Quando eu penso no que eu quero conquistar como mulher, profissionalmente, por exemplo, a ideia de ter um filho é muito mais pesada para mim do que acho que vai ser para uma mulher daqui a 20 anos. Os homens daqui a 20 anos vão entender que o filho é nosso, eu acho.
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Você é otimista! Eu sou otimista com o futuro nesse sentido, mas percebo que, para todo movimento progressista, há uma reação conservadora em igual tamanho. Existe hoje uma força que tenta conter nosso avanço desesperadamente. Está aí o Congresso pra provar isso, o risco que a gente está correndo nas próximas eleições, de termos um governo ainda mais conservador. É muito cíclico também, mas eu acho que não tem volta.
Então, que passo dar? Para além de leis mais ou menos avançadas, e que temos que conquistar ainda – descriminalização do aborto, igualdade salarial e uma porção de coisas para as quais a gente depende de lei – tem uma que se chama autoestima. Essa coisa de a mulher aprender a se colocar em primeiro lugar, sem culpa. E isso eu acho que não tem volta. Quando a mulher entende um valor que ela tem, não consegue mais desaprender. É como aprender a ler. É uma relação com certo alfabeto de como existir. Você não aceita mais ser analfabeto e vai querer aprender mais línguas.
Algum filme te fez sacar outros aspectos do que é ser mulher? Em Amor, plástico e barulho, caíram várias fichas. Quando fui gravar, percebi que eu tinha um preconceito com essa mulher que lança mão do seu capital erótico para exercer poder. E aí tem uma coisa importante, que é consciência de classe. Para mim, bom mesmo era lançar mão do seu capital intelectual, legal é ser inteligente e culta. Isso era uma posição classista e burguesa minha e me dei conta disso nesse filme.
De onde vinha essa resistência? Eu, como nós todas, cresci sendo assediada na rua. Com 11 anos, comecei a ir para a escola sozinha e escutar os caras gemendo, me chamando de “bucetuda”. Ninguém me disse, muito menos minha mãe, mas, de alguma maneira subliminar, entendi que eu não podia exercer meu erotismo plenamente. Aquilo poderia chamar a atenção demais. Pensava que ser sensual poderia ser um problema, ser doloroso. Você quer evitar a dor, então evita a sensualidade.
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E isso causou que tipo de dificuldade durante as filmagens? [Dificuldade] de acessar minha sensualidade e ceder isso para a personagem. Tudo me incomodava, até o tamanho do biquíni, que era uma coisa minúscula. Eu dizia: “Ninguém usa um biquíni desse tamanho!”. Um dia, botei ele na mochila, peguei um ônibus e desci em Brasília Teimosa, uma praia popularzona perto de Recife. Fui olhando as mulheres e ficando chocada. Elas não só usavam o biquíni, como pegavam a cadeira e enfiavam a perna ao contrário, empinavam a bunda e ficavam pegando sol. Fui fazendo amizade, tomando banho de mar, batendo papo e foi caindo minha ficha. Foi forte me dar conta do meu lugar de burguesa que não conseguia compreender a importância política que tem o capital erótico para essa outra mulher. Elas tinham se dado conta de um poder que estava ao alcance delas e estavam usando aquele poder.
E agora você usa esse poder? Sim, em outro contexto, mas sim. Capital erótico é uma coisa que existe, não sejamos hipócritas. O que é o Cauã Reymond? A Bruna Linzmeyer? Atores lindíssimos que você vê e fica “uau!”. Aquilo é capital erótico, só que usado com outros códigos. Passa por um filtro mais sofisticado e outra classe social consome. Capital erótico existe por quê? Porque sexo é importante, simples assim. Sexo move a humanidade desde que a gente existe. Vamos estimular essa nossa energia. Vamos nos masturbar, pelo amor de deus. O melhor jeito de você permitir que alguém te dê prazer é, em primeiro lugar, saber o que te dá prazer.
Nesse filme, você vive novamente uma mulher pernambucana. Em que momento Recife surgiu na sua vida? Naquele momento em que o chão se abriu debaixo de mim, na época do divórcio, eu meio catatônica. Encaixotei minhas coisas em São Paulo e decidi passar seis meses sabáticos em Brasília, com minha mãe e meu padrasto, que é pernambucano. Era dezembro de 2008. Meu padrasto todo ano me chamava para ir a Recife, mas eu era o coelhinho da Alice, sempre sem tempo. Foi quando tudo implodiu, e eu fui. Lembro da sensação de chegar e ver as cores quentes pipocando na minha frente, quanta cor, quanta luz. Percebi os artistas com uma identidade muito própria, comecei a me apaixonar. Resultado: meu padrasto voltou para Brasília e eu decidi ficar. Adiei cinco vezes a passagem e fiquei por três meses muito intensos. Voltei de lá arrebatada. Me lembro de uma amiga de um grupo de teatro paulistano dizendo: “Eu não sei o que aconteceu lá, mas você não está aqui”. Na mesma época, minha mãe decidiu ir morar em Recife e aí eu estava começando a ter relações profissionais e amigos lá. Pensei: “E se eu morasse em Recife?”.
Nessa época você já tinha encontrado a galera do cinema da cidade? Conheci primeiro Claudião [Cláudio Assis] e Lírio [Ferreira], no bar Central. Sempre fui muito certinha e controladora e ali foi um momento em que decidi que queria não controlar nada, queria só estar viva nos lugares. Então, era assim: “Vamos não sei onde?”. Eu respondia: “Vamos”. Para muita gente talvez não seja nada demais, para mim, era uma pequena revolução. Fui para Porto de Galinhas com umas amigas e não gostei, estava cheio, decidi não dormir lá. Peguei um ônibus e voltei sozinha. No ônibus, uma menina me convidou para ir ao bar Central, onde conheci os dois. Um ano depois, em 2010, decidi morar em Recife.
Foi quando fez O som ao redor? Comecei um curso de fotografia e fiquei sabendo do teste para o filme do Kleber [Mendonça Filho]. Eu não o conhecia pessoalmente, mas conhecia o trabalho dele como crítico de cinema. Fui fazer o teste e foi muito legal, a gente dialogou muito bem. Depois de um mês, ele me ligou e rolou O som ao redor.
Esse filme mudou tudo na sua carreira? Sim, sem dúvida. Me colocou em contato com muita gente. Foi engraçado porque me projetou para o sudeste como uma atriz pernambucana e mal sabiam que eu tinha acabado de chegar lá. Até hoje acham isso. Eu deixo, acho cool. [Risos.]
A Bia, sua personagem, teve cenas muito representativas, como aquela em que ela se masturba na máquina de lavar roupa. Como foi o processo com essa personagem? Existe um olhar muito generoso e humanizado do Kleber para essa mulher que vive enfiada dentro de um espaço privado, que vive para a família. É um olhar sobre as relações que, na solidão dessa mulher, ela estabelece com aqueles objetos, com aquela casa, com o cachorro, com a máquina de lavar, que é um amante, com o aspirador de pó, que é um cúmplice que fuma um beck com ela. É uma ode à solidão, à socialização possível para essa mulher. Aquela cena dela descabelada, escutando Queen, numa viagem de maconha, depois de uma briga com a vizinha... O filme para nessa paisagem, que é um pensamento dentro de um rosto de muita solidão. Eu achei isso de uma sensibilidade incrível.
Como foi gravar essa cena fumando “um” com o aspirador de pó? Foi difícil porque sou uma maconheira fuleira. Eu estava fumando um baseado cenográfico e o Kleber falou: “Maeve, não sinto que está tendo prazer”. Respondi: “Não estou, esse cenográfico é horrível”. E aí o contrarregra disse que tinha o de verdade, se eu quisesse. “Sou fraca para maconha, mas não temos escolha.” Fizemos três takes longos, fumei um beck e meio sozinha, em 40 minutos. Fiquei quase em coma. Depois, fomos fazer a cena dela na frente do espelho e lembro do Kleber falar “ação”, e eu nada. Eu pensava: “Nossa, acho que estou demorando muito aqui”. E ele: “Corta! Maeve, você tem que acender, fumar, se olhar no espelho e levantar”. “Ai, Kleber, espera aí, não entendi.” [Risos.]
Dessa parceria com o Kleber veio Aquarius. O filme foi amado e odiado loucamente. Virou símbolo de um momento. Como você lidou com tudo isso na época? A magia de um filme tem a ver com o momento em que ele nasce e também na forma como ele dialoga com o mundo. No caso de Aquarius, tem a ver com uma antena muito sensível do Kleber de captar o espírito de um tempo. Causou rejeição, mas acho que, sinceramente, ajudou muito o filme. Assim como uma parcela rejeitou, uma outra se sentiu profundamente representada. Quando assisti ao corte final, foi difícil não fazer uma associação com a figura da Dilma, uma mulher resistindo, e a coisa do câncer. Me deu uma crise de choro muito forte, o Kleber veio atrás de mim, chorando também. Eu nunca tinha visto ele daquele jeito. O que me comoveu foi o momento histórico, mas foi também o filme que ele fez, e que foi criado dois anos antes. Em 2014, ninguém ia imaginar o que estaria acontecendo em 2016.
O protesto que vocês fizeram em Cannes denunciando o impeachment da Dilma repercutiu muito também. Como nasceu a ideia de fazer aquilo? Fiz a minha mala para Cannes assistindo à votação no Senado. Enquanto estávamos lá, soubemos que tinham extinguido o Ministério da Cultura. Não dava para colocar um vestido de gala e fingir que não estava acontecendo nada. Fui uma das que falaram que a gente tinha que fazer algo. Era uma vontade coletiva. Estávamos em dúvida se o Kleber ia topar, porque ele é muito discreto, mas ele tinha a mesma ideia. Decidimos respeitar o ritual da passagem pelos fotógrafos e, em seguida, levantar os cartazes quando sentíssemos que fosse o momento. Na hora, eu me senti em um momento dilatado, pensei: “Isso aqui é histórico”. Entramos para assistir um filme e, quando saímos do cinema, o Facebook só tinha isso, o Twitter, na mídia internacional estavam falando, foi capa do The Guardian, da Folha. Me senti conectada com alguma coisa, religada.
Há pouco tempo, rolou aquela polêmica sobre machismo entre a Anna Muylaert, o Cláudio Assis e o Lírio Ferreira. Você participou dessa discussão? Eu estava nesta sessão. Eles erraram e sabem disso. Era um momento especial, uma mulher estava alcançando um lugar inédito. É foda, né? Foi como uma represa contida por muito tempo e que veio com muita força. Eles sofreram, ficaram meio atordoados. Os homens são, de uma maneira geral, superprotegidos. De repente, alguma coisa fura essa bolha e cai uma bomba de realidade. “Olha, gato, na verdade o que a gente acha é isso aqui ó.” Eles ficam atordoados. Não falar sobre as coisas é péssimo para todas as relações. Temos que deixar o outro saber que está incomodando.
Ainda sobre machismo no cinema, como é o lance da grana? Você acha que ganha menos que um cara que tem papéis parecidos com os seus? Nunca tive provas, mas desconfio seriamente que sim. Uma coisa de que não tenho dúvida é de que, até esse momento da história, se é difícil ser ator, ser atriz é muito mais. Quando olho meus parceiros homens com perfis parecidos com o meu, com trajetórias próximas à minha, a chance que eles tiveram de ter personagens protagonistas ou relevantes foi muito maior que a minha. Não tenho dúvida de que tenho que suar mais para ter uma personagem com essas características.
Você pensa sobre a forma como as mulheres são representadas no cinema? Boi Neon foi um filme decisivo para mim, porque me fez falar a frase “eu sou feminista”. O filme tematizava isso e, durante o processo, me deparei com algumas questões de representatividade de gênero. Quando fui colocar para o Gabriel [Mascaro, diretor do filme], ele ficou muito surpreso de estar sub-representando uma mulher. Ele é um cara supersensível, tem um lado feminino, estava se propondo a falar disso no filme. Foi supertenso, sofri muito. “Eu vou falar e ele vai me achar uma chata, vai ser um problema e ele nunca mais vai querer trabalhar comigo.” Algumas coisas na narrativa me incomodavam e eu tenho muito orgulho de ter colocado para ele. E o Gabriel teve uma inteligência enorme.
“Uma coisa de que não tenho dúvida é de que, até esse momento da história, se é difícil ser ator, ser atriz é muito mais”
Como ele reagiu? A reação dele foi de fazer perguntas, querer me escutar mais e trazer cenas novas. Começamos a criar cenas lindas. No último dia de filmagem, ele me agradeceu. Aquilo foi de uma importância enorme, me ajudou a entender de que maneira eu posso ser colaborativa como feminista. Entendi a importância de deixar que o outro entenda a minha perspectiva. A minha primeira reação foi sentir raiva; depois, entendi que precisava falar de um jeito que ele me escutasse. A gente precisa disso nesse momento. Não quero só implodir as coisas.
Com esse filme, e com outros também, você ganhou vários prêmios. O que eles significam para você? O primeiro prêmio que recebi na vida, por Amor, plástico e barulho, no festival de Brasília, teve um significado pura e simplesmente para a minha família. Depois, fui percebendo que tinham outros significados, mas primeiro foi para o meu pai. Ele lidava ainda com essa coisa de “ah, mas quando você vai trabalhar para valer?”. Quando veio o prêmio, pensei que talvez ele entendesse que ser atriz tem algum sentido. A resistência dele vinha do medo de eu nunca conseguir viver do meu trabalho. A primeira vez que eu falei para ele que ia fazer televisão, ele teve uma crise de choro. Eu já tinha feito O som ao redor e Amor, plástico e barulho, mas na cabeça dele foi um “agora sim!”. Para uma parcela grande da minha família, que não vai muito ao cinema, meu trabalho começou a existir a partir da televisão.
Seu primeiro trabalho na Globo foi a Domingas, da novela A regra do jogo (2015). Era uma mulher apática, que não conseguia reagir a uma situação de violência doméstica. O que sentiu com a experiência? Foi incrível. Já desisti de achar que não sou preconceituosa. Um dos preconceitos que eu tive foi a dificuldade de conceber a ideia de fazer um bom trabalho na TV. Quando topei o papel de A regra do jogo, fui superdesconfiada, mas descobri que é possível ser colaborativo na televisão, existem brechas para criar. Eu já tinha negado algumas coisas, já tinham pintado convites que não achei interessantes. Mas eu tinha escutado falar muito bem do [autor] João Emanuel Carneiro, da [diretora] Amora Mautner. Eles falaram dessa personagem e o tema me interessou muito, falar de violência doméstica. Era uma personagem pequena, mas falaram que poderia crescer, e cresceu.
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Esse tema mexeu com você na época? Quando comecei a ler o texto da Domingas, eu achava que mulher nenhuma fazia aquilo. Aí fui entrevistar vítimas de violência doméstica e vi que o texto estava inclusive pegando leve. Nunca vou conseguir entender todas as perspectivas de mundo, mas a maior bênção que o ofício do ator traz é a chance de pegar emprestada a possibilidade de ter nascido em outro lugar, outra família, outra classe social. Isso é pessoalmente revolucionário. Percebi que estava desprezando essa mulher que é submissa, que aceita. Entendi, ali, como você leva uma mulher a esse estado de fragilidade. Tecnicamente, fazer a Domingas foi das coisas mais difíceis da minha vida. A televisão tem esse tempo industrial, um ambiente muito dispersivo. Quando acabou a novela, tive a sensação de que, depois dessa personagem, eu faço qualquer coisa.
“Gozar, a gente sabe, é revolucionário. Então assim: não finja orgasmo. Deixa o cara saber que ele não chegou lá. Vai ser importante para ele”
Você está agora em outro projeto da Globo. É hora de investir na TV? Quer queira, quer não, o cinema tem um público muito elitizado. Especialmente o tipo de cinema que eu faço. É bonitinho ficar aqui falando sobre como me debruço sobre personagens populares para fazer Boi Neon ou Amor, plástico e barulho, mas não são essas pessoas que assistem ao filme. Quando eu estava fazendo A regra do jogo, fui estrear Boi Neon no Festival do Rio. Passei em um corredor onde estavam as equipes de segurança e limpeza e, pela primeira vez na minha vida, eles vieram falar comigo. Eles não vieram falar de cinema, mas da personagem na televisão. Aquilo foi forte, me dei conta desse meu lugar classista e burguês e de como essa suposta sofisticação que tem o cinema de autor – que gosto de fazer e não estou renegando – tem, sim, um ranço elitista. Eu não quero falar só sobre eles, quero falar também com eles. Com todo mundo. Por que vou escolher ficar só falando com os mesmos?
Você está agora gravando a supersérie Onde nascem os fortes, que está sendo rodada no Rio e no sertão da Paraíba. O que pode falar de sua personagem? Joana é uma mulher com uma sexualidade muito forte e é levada a usar esse capital erótico, a arma que ela tem. Me interessa muito discutir em que medida ela lança mão disso e em que medida ela se torna vítima. Não tenho resposta, é um processo de pesquisa.
Tem muitas cenas de sexo? Muitas. Se a Joana tivesse vindo em outro momento, talvez eu tivesse mais pudor. Estou a fim de investigar a potência da intimidade com o corpo, com o próprio desejo.
E o que você tem pensado sobre o desejo? Vejo algumas posições que, apesar de estarem objetivamente tentando defender movimentos identitários, flertam com ideias conservadoras. No que diz respeito ao nu, ao sexo e a como você representa uma mulher em uma cena erótica, as pessoas estão entendendo que é para esconder. Não acredito nesse caminho. Muito pelo contrário. O nó para mim está quando existe um desequilíbrio entre mostrar essa mulher plasticamente, usar o corpo dela, e não ter interesse correspondente na subjetividade dela. Estamos vivendo um momento de moralismo que me preocupa muito. Não quero ter medo de sexo. Minha personagem goza e isso é do caralho. Gozar, a gente sabe, é revolucionário. Então assim: não finja orgasmo. Deixa o cara saber que ele não chegou lá. Vai ser importante para ele.
Paquera antiga
Diretor da supersérie Onde nascem os fortes, José Luiz Villamarim conta como é trabalhar com Maeve Jinkings
“Paquero a Maeve desde O som ao redor. Quando vi o filme, me chamou muito a atenção sua interpretação, fiquei a fim de trabalhar com ela. Vinha acompanhando a carreira dela no cinema com ótimas escolhas – a parceria com o Kleber [Mendonça] e com a Renata [Pinheiro]. O ator hoje tem que fazer cinema, TV e teatro, que é de onde saem os grandes intérpretes. E ela tem essa formação, cursou a EAD [Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo]. Apesar de ter estudado para ser atriz, Maeve tem uma não técnica. Você não percebe que ela está atuando e isso é sua maior qualidade. É super-racional, tem uma abordagem inteligente com a personagem, mas você não sente isso na interpretação. Ela surpreende com o tempo, com a pausa, com o jeito de falar. Não tem vício nem truque. Eu acredito em tudo o que ela fala. A Maeve é dona de uma beleza brasileira – a cor do olho, da pele, a sensualidade. Tem tudo a ver com a Joana, personagem que o George Moura escreveu para a série. Toda vez que vou dirigi-la, penso como vou fazer a cena, mas ela sempre me dá um presente, traz uma coisa nova, seja no tempo, no gesto, no olhar. Ela tem uma predisposição para ouvir e tudo o que a gente quer como diretor é trabalhar com uma atriz como essa. Maeve não tem essa ansiedade de ‘estar acontecendo’. É uma figura muito especial.”
Créditos
Imagem principal: Gil Inoue