Letícia Colin, que interpreta uma médica viciada em crack em nova série, fala sobre drogas, religião, política e amor
Para Letícia Colin, atuar em papéis que provoquem algum tipo de reflexão é uma forma de se posicionar. “Gosto de fazer personagens que sejam desafiadores e incentivem diálogos na sociedade”, diz à Tpm. A atriz de 29 anos interpreta Amanda, uma médica bem-sucedida que se torna dependente de crack em Onde está meu Coração, série da Globo ainda sem data de estreia.
O duro caminho para se livrar do vício é retratado ao longo de dez episódios na produção escrita por George Moura e Sergio Goldenberg, com direção artística de Luísa Lima. Letícia, que acompanhou um caso de dependência química com uma pessoa próxima, quer desmistificar a ideia de que o crack é uma droga limitada a uma camada da sociedade. “A droga não tem fronteiras. Aparece nas festas, nas ruas, nos bares, a qualquer hora do dia”, diz.
Além de dar vida a personagens que estimulem novas formas de pensar, como Amanda, a atriz leva esse engajamento para a vida real: durante as eleições para presidente, participou do Vira Voto e do Ele Não, movimentos contra a eleição do presidente Jair Bolsonaro. “Essa experiência de dialogar com a diferença precisa acontecer mais. É muito fácil a conversa entre aqueles que falam a mesma língua. O desafio é trocar com pessoas que pensam diferente.”
A atriz finaliza a série até meados de agosto, enquanto ainda está no início de sua primeira gestação. Ela contracena com o marido, o ator e diretor Michel Melamed, 43, que interpreta um dos médicos da personagem dela.
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Letícia conheceu Michel durante a gravação do Bipolar Show, programa dele no Canal Brasil. Ela era a convidada do dia e a interação dos dois no palco se mostrou promissora — e se confirmou em uma relação que já dura três anos. “Foi uma boa sorte esse encontro.”
“É muito fácil a a conversa entre aqueles que falam a mesma língua. O desafio é trocar com pessoas que pensam diferente”
Letícia Colins, atriz
A seguir, a atriz fala à Tpm sobre a série, seu contato mais próximo com dependentes químicos, o que pensa sobre drogas, política e amor.
Tpm. Como foi a preparação para a série? Você teve contato com pessoas com dependência química?
Letícia Colin. Ativei uma rede de amigos e consegui o contato de algumas pessoas que se interessaram em me contar sobre seus processos. Fui chegando em pessoas que usaram crack durante cinco, dez anos, histórias de vida muito emocionantes e profundas. Conheci também a Márcia Francine, assessora do gabinete da vereadora Soninha Francine, em São Paulo, que cuida de políticas públicas relacionadas às drogas. Fiquei fascinada pelo trabalho delas e viramos amigas. Elas me deram um panorama que me ajudou muito. É um assunto complexo, cada um tem um ponto de vista sobre como tratar, como entender.
Você acha que o crack é uma droga mais distante da classe média, como a sociedade pensa? Não. Acho que a gente vai criando crenças que, quando investiga, descobre que não são verdadeiras. Hoje em dia qualquer pessoa consegue qualquer substância. Se uma pessoa viaja em um avião público com 39 quilos de cocaína [O Sargento da Força Aérea Brasileira foi detido em junho por transportar a droga em avião da da comitiva presidencial], como é que a gente vai dizer que não acontece, que as drogas não estão no meio das pessoas? Existe um preconceito de que o crack é uma substância marginal, de uma fatia da sociedade pobre e de moradores de rua. Mas conversei com uma pessoa de classe média alta, dependente, que usou inicialmente para se divertir. Ela me disse: “Experimentei porque tinha certeza que comigo não iria acontecer, que era droga de mendigo”. O crack é uma substância muito forte, altamente viciante. Por ser uma coisa tão intensa e destruidora, te consome de maneira rápida.
Qual a importância de retratar uma médica viciada em crack? Esse recorte da Amanda ser médica, uma pessoa que tem tudo, aponta o dedo bem na cara dessa situação. Ao mesmo tempo que o ser humano é poderoso, é também frágil.
Você ficou surpresa com o relato das pessoas viciadas em crack com quem conversou? Não me surpreendi porque tenho uma história próxima, uma pessoa íntima que passou por isso. Então, fiquei muito interessada nesse papel porque era uma coisa que eu já tinha vivido, sentido na carne. Vi de perto alguém superar essa dependência, que é terrível.
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Qual sua relação com drogas? É a favor da legalização? Vi amigos usando, já me ofereceram, teria acesso a qualquer droga, mas o álcool já me deixa alterada muito rapidamente. Em pouco tempo, passo muito mal. Então, fui me conhecendo e consigo me equilibrar. Mas gosto de tomar um vinho, uma cerveja. Moro no Rio de Janeiro e nós vivemos dentro de tráfico, violência, morte e insegurança. Acho que a maneira como foi conduzida e legislada a proibição e criminalização do porte de drogas não nos levou a lugar nenhum. Isso tem que ser revisto urgentemente. O cenário atual, com esse moralismo religioso defendendo ilusões, e não a realidade, é muito ruim para o nosso país e para a nossa sociedade.
Você já disse publicamente que teve depressão. O que você tirou dessa experiência para a personagem? Quando eu conversava com os dependentes e lia as cenas, percebia que conhecia aquele lugar. Sentir-se desencaixado com sua própria vida é algo muito parecido com o que passa um dependente químico. Você vai perdendo a autonomia, o elo consigo mesmo. O vício e o desejo por consumir mais droga passa a te reger. A depressão também tem isso, você é roubado por uma coisa pessimista, desconfiada e sem energia, vai sendo consumido por uma faceta sombria. Em ambos os casos, você precisa de acolhimento, tratamento, escuta, presença. E só consegue realmente fazer uma mudança cíclica e energética se quiser verdadeiramente.
A que você associa os altos números de casos de depressão e de dependência química atualmente? Acho que a depressão, assim como a adicção, são fenômenos que têm a ver com essa velocidade toda, essa pressa, essa cobrança. O planeta está desesperado. Hoje, tenho que lutar muito mais para conseguir imprimir minha singularidade, minha diferença, para não ser engolida pelas demandas do mundo. Acho que isso tem a ver com tanta gente estar doente, sofrendo.
Houve um cuidado na série para não glamorizar o consumo de crack? A personagem fica tão destrutiva que não tem como glamorizar, não era um risco que o projeto corria. Como atriz, é algo que eu nunca glamorizaria. Pela minha vivência, foi algo que aprendi desde pequena. Tenho um gosto muito grande pela vida. Talvez por ter sofrido muito com esses episódios de depressão, para mim é muito valioso manter essa dignidade de viver, de querer viver.
E o que você acha de drogas cujo uso também pode ser medicinal? Fui conhecer os tratamentos que estudiosos fazem com ayahuasca e o canabidiol [composto químico encontrado na planta da maconha] para redução de danos, em ambiente controlado. É muito bonito, vi pessoas falando que isso transformou a vida delas. Então, como dizer que não acredito nisso? Eu acredito. É que o crack, especificamente, não tem nada de criativo, de espiritual, ele cria um abismo, um buraco contra esses usuários que não conseguem mais voltar para casa, eles moram na rua, se prostituem. Tira a sua dignidade e seu valor humano, você vai vivendo em função daquilo.
Como o budismo te ajuda e quais outras ferramentas você usa para se manter bem depois desse período de depressão? Sou convertida ao budismo há quatro anos, então estou sempre pesquisando, lendo, o que me dá um suporte muito acolhedor. Claro que meus problemas não acabaram, mas a maneira como enfrento as coisas ficou muito mais produtiva. Para o budismo, você só consegue se desenvolver, evoluir e melhorar por meio de um problema, de algo que você tenha que se movimentar criativamente para resolver. No budismo, isso é adubo para a vida. É uma coisa muito especial, potente e que, para mim, faz muito sentido. Tenho também um círculo de amigos, família muito forte que sei que posso contar.
Você saiu nas redes e na rua pelo movimento Vira Voto, que pretendia convencer eleitores de Jair Bolsonaro a mudar sua escolha. Como foi essa experiência? Foi lindo e difícil. A gente encontrou pessoas com opiniões diversas e que estavam muito raivosas. Acho que é por isso que sou atriz. A arte, o trabalho do ator, fala uma língua que chega pela sensibilidade, pela emoção, pelo coração.
Acha que artistas deveriam se posicionar politicamente? Mesmo que a pessoa não se posicione ela já está se posicionando, é inevitável. Como pessoa pública, seu silêncio já é um pronunciamento. Então, é uma ilusão você achar que, ao não comentar alguma coisa, vai estar se protegendo. Somos muito vistos, a gente trabalha em um veículo grande, uma mídia de massa, então isso já é uma existência política e popular. Mas não critico quem não quer falar, acho que estamos todos tentando, acredito que as pessoas têm a intenção de melhorar nosso país. Mas tenho que tomar cuidado para não ser egoísta e tentar melhorar o Brasil só para mim, para minha família ou para onde eu moro.
“Mesmo que a pessoa não se posicione ela já está se posicionando, é inevitável. Como pessoa pública, seu silêncio já é um pronunciamento”
Letícia Colins, atriz
Falando de feminismo, qual você acha que deve ser o foco do movimento hoje? Incluir as mulheres trans e fazer com que elas se sintam cada vez melhor. A gente cobra muito dos homens essa mudança de postura e de pensamento, mas acho que as mulheres também precisam acolher, potencializar e reverenciar essas outras manas que são tão mulheres quanto nós. Um feminismo de inclusão total do gênero feminino, seja como for.
Há uma discussão atual de como devem ser tratadas as pessoas viciadas em crack, se por internação compulsória (sem a vontade do dependente) ou voluntária. Qual sua opinião? Conversei com pessoas do CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] e do CRATOD [Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas], que são centros que recebem, tratam e encaminham os usuários de São Paulo para tratamento. E percebo que essas internações compulsórias não resolvem. São soluções muito mais para quem deseja sentir que essas pessoas estão sendo retiradas das ruas. Sumir com elas, resolver esse assunto. Mas é uma solução paliativa. Conversei com pessoas que tiveram 40, 50 internações. É um processo que tenho a impressão que não funciona, é enxugar o gelo.
Você está com mais algum projeto para depois de Onde está meu coração? A gente termina de gravar em breve. Aí, vou descansar para poder me preparar para ter o bebê. Eu e Michel temos vontade de fazer alguma coisa juntos no teatro, escrever um texto, desenvolver uma coisa mais autoral. Talvez agora, neste processo em que eu vou ficar mais tranquila, a gente pense nisso.
A sua relação com Michel Melamed é muito diferente dos seus relacionamentos anteriores? Sou muito apaixonada pelo Michel, é o melhor relacionamento que já tive, muito completo, muito profundo. É uma relação de confiança, conversa, acolhimento, de muito investimento. A gente gosta de estar juntos, se admira. Sou feliz e me sinto potente ao lado dele porque posso me mostrar frágil. Foi uma boa sorte esse encontro.
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