A mulher do topo do mundo
Karina Oliani, multiatleta, médica de emergência e apresentadora, escala o Everest pela segunda vez e se torna a primeira sul-americana a subir tanto pela Face Norte como pela Face Sul
“Fisicamente, foi uma das coisas mais difíceis que fiz na vida. Escalar o Everest pelo Tibete requer muita técnica, você faz escalada em rocha o tempo todo. As pedras são super afiadas. Se elas cortam seu macacão e as penas de ganso voam, sob uma temperatura de -35° C, restam poucos minutos de vida antes de congelar. O vento também é mortal. Você tropeça, cai, tenta ir contra ele e não consegue. Pegamos ventos de 60 km/h. Tive uma queimadura no rosto e congelamento da face direita. Eu já tinha estado no Tibete em 2010, como médica de uma expedição, e minha barraca voou enquanto tomava banho. Foi assustador. Prometi que nunca mais voltaria, mas só lembrei dessa promessa quando já tinha chegado ao Campo Base – na Face Norte, há seis acampamentos: Base (5.200 metros), Intermediário (5.800), Avançado (6.400 metros), Campo 1 (7.100 metros), Campo 2 (7.800 metros), Campo 3 (8.300) e o cume (8.848 metros).
A expedição durou 20 dias. Diferentemente do Nepal, onde você faz um trekking de dez dias, passando por pontes, cachoeiras, árvores, para chegar ao acampamento base, no Tibete, você dirige dois dias a partir da capital, Lassa, e estaciona o carro em frente de sua barraca. Éramos em quatro: eu, Pemba (sherpa que me guiou em 2013), Marcelo (meu marido) e o sherpa dele. Só que o Marcelo pegou uma infecção intestinal e ficou muito doente. Depois que fizemos o primeiro ciclo de aclimatação – Campo Base até o Campo 1, ida e volta –, ele disse: “Não tenho condições de subir”. Foi muito difícil perder uma pessoa da equipe, ainda mais ele, que iria filmar tudo.
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Tive medo em vários momentos. Quando vi o primeiro corpo no chão… Passamos por uma caverna de gelo e ventava muito. Na hora que entrei, a luz da lanterna encontrou um morto, em posição fetal. Não dá para resgatar, o corpo fica lá. Me impressionou muito. Vi pelo menos dez corpos. No total, há mais de 300. Eles servem para lembrar onde você está, para te lembrar o perigo que é a montanha.
Quando chegamos ao Campo 3, chamado de “zona da morte”, encontramos um escalador holandês com princípio de edema pulmonar e edema cerebral. Ele era nosso conhecido, tentava chegar ao topo pela quarta vez. Sem perceber, foi perdendo a consciência e ficando muito agressivo. Ele estava sozinho, sem o sherpa dele, que disse ter ficado doente para evitar que continuasse, pois não tinha condições. Mas o holandês insistia que queria subir com a gente. Tentei convencê-lo dizendo que tínhamos equipamento de filmagem para carregar, que era inviável se juntar a nós. Ele ignorou nosso alerta e seguiu com um australiano. Na noite de ataque ao cume, eles saíram do Campo 3 às 21h; eu e o Pemba saímos às 23h. Depois de 40 minutos, encontramos com eles. O australiano estava desesperado porque seu oxigênio ia acabar, o holandês andava muito devagar. Falei para ele: “Você tem que descer”. Ele apontou o dedo na minha cara e começou a gritar: “Eu pedi ajuda, pedi para subir com vocês, mas você não deixou porque o seu programa é mais importante”. Olhei nos olhos dele e disse: “Sei que você está obstinado. Mas você tem família e essa montanha não é mais importante que a sua vida. Ele continuou subindo. Tinha certeza que ele morreria. Fiquei muito preocupada. Sabia que ele tinha uma filha.
Chegamos ao topo às 6h45. Você se sente muito pequenininha lá em cima. Olhei os corpos lá embaixo. Ficamos 15 minutos. Estava cansada. Tanta coisa aconteceu que só queria descer.
A verdade é que o holandês me atrapalhou bastante. Poderia ter sido mais fácil. Só que a gente parou, ficou brigando com ele no meio da montanha. Ficava pensando que encontraria o corpo dele pelo caminho.
Como montanhista, ter conquistado o Everest mais uma vez – e na primeira tentativa – é um sensação maravilhosa de conquista, proporcional ao esforço que eu fiz. Ser desafiada, sentir a força da natureza, é a coisa que mais gosto na vida. Faz parte de quem eu sou.”
Créditos
Imagem principal: Pitaya Filmes/Divulgação
Depoimento à Carol Sganzerla