Joanna Maranhão: uma história dolorida, sofrida e edificante

Aos 9, foi abusada sexualmente. Aos 12 estava em um Pan-Americano. Aos 17, em uma Olimpíada. Aos 19, tentou se matar. Aos 27, voltou a competir e encontrou a liberdade

por Milly Lacombe em

Leia esta entrevista sob sua conta e risco, e saiba que se decidir chegar até a última linha terá percorrido um caminho sem volta: estará apaixonada pela nadadora Joanna Maranhão. A história de Joanna é de autodescobrimento e, como todas as jornadas em busca da verdade, é dolorida, sofrida, surpreendente e edificante.

Pernambucana, filha de uma médica geriatra, Joanna começou a nadar com 3 anos, em Recife. Aos 12, fez índice para o Pan-Americano de Winnipeg, no Canadá, e aos 17, numa final olímpica (Atenas, 2004), se tornou a quinta mulher mais rápida do mundo nos 400 metros medley (modalidade que reveza os quatro estilos da natação). Parecia um conto de fadas, o da menina que segue seu sonho e conquista o mundo. Mas Joanna tinha um trauma e um segredo, e eles a arrastariam para águas escuras, sujas e turbulentas. 

Crédito: Helena Wolfenson

Depois de guardar por anos o fato de ter sido abusada sexualmente pelo ex-treinador, passou a ser atormentada pela memória. Traumatizada, não conseguia mais treinar ou competir e começou a beber. Suas marcas caíram, ela foi criticada e saiu em busca de ajuda.

Na terapia, reviveu o abuso. Foram anos duros, de resgate, e que quase a fizeram desistir. Mas a verdade é que todos temos dentro de nós mesmos as reservas de caráter necessárias para enfrentarmos nosso destino, e Joanna recorreu às suas.

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Quando se refez e já tinha escrito seu nome como uma das maiores nadadoras da história do Brasil, o novo baque: saber que sua família, ao tentar ajudá-la, fez uma dívida de quase meio milhão de reais. Decidiu parar de nadar, e de novo mergulhou na escuridão para mais uma vez sair mais forte. Renascida, voltou a competir e representou o Brasil no Pan-Americano de Toronto, no mês passado. Conquistou uma medalha de bronze nos 400 metros medley e, em outra prova, na qual ficou em quinto lugar, bateu o recorde sul-americano na mesma modalidade.

Atleta e ativista

Arretada e esquerdista, já se meteu em inúmeras encrencas por não conseguir deixar de dizer o que pensa. Com os dirigentes da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, a CBDA, ela não se relaciona. Em competições internacionais, diz que não representa políticos conservadores e retrógrados. Manifesta-se publicamente contra a diminuição da maioridade penal, a favor de direitos civis para gays e minorias e fundou uma ONG para conscientizar as pessoas a respeito de abusos sexuais e ajudar crianças vítimas de pedofilia.

Aos 28 anos, divorciada do primeiro marido, Rafael Franco de Sá, vai se casar no ano que vem com o judoca Luciano Corrêa, com quem namora há cinco anos e que já chama de marido. Pretende se aposentar em 2016, depois da Olimpíada do Rio.

Joanna nos deixa a certeza de que somos mais fortes e belos quando temos a coragem de nos mostrarmos vulneráveis. Ou, nas palavras da filósofa americana Martha Nussbaum: “A experiênca humana passa por saber confiar em incertezas que acabam levando você a ser esmagado por circunstâncias pelas quais não tem culpa. A vida ética é baseada na confiança em relação às incertezas e na disposição de permitir se expor; é sobre ser mais como uma planta do que como uma joia, um objeto frágil cuja beleza é inseparável da fragilidade”.

Crédito: Helena Wolfenson

Tpm. Quem foi a primeira pessoa para a qual você contou que foi sexualmente abusada quando tinha 9 anos?
Joanna Maranhão. Minha tia-avó, que faleceu este ano. Mas não consegui contar o que aconteceu. Foi o que eu disse para minha mãe: “Acho que ele tentou me dar um beijo”. Fui criando uma crise de pânico, não conseguia mais ficar sozinha no quarto. Todas as noites minha tia-avó ia para o quarto comigo, deitava e ficava fazendo carinho até eu dormir.

Ajudava? Sim, mas quando ela saía, eu acordava. Daí corria para o quarto dos meus pais. Fiquei durante cinco anos, ou até os 15, dormindo entre meu pai e minha mãe. Até meus pais se separarem eu dormia no meio dos dois. Eu pensava: “Será que eles se separaram por conta disso?”.

Depois você engavetou o abuso sexual em algum lugar dentro de você? Via na televisão alguns casos, via as pessoas sucumbindo e pensava: “Acho que sou muito forte porque isso não mexe comigo”. Mas eu não sabia o que era. E aí vem a adolescência, você se apaixona… Dei o primeiro beijo e fiquei um ano sem beijar ninguém porque achei que não gostava disso. Meu corpo começou a mudar, cresceram os seios, e não queria que ninguém tivesse interesse por mim. Cortei o cabelo supercurto, tirei brinco e só usava roupas folgadas. Era um alívio na rua quando uma pessoa falava: “Aquilo é um menino ou uma menina?”.

Com os pais, em Coral Springs, na Flórida - Crédito: Arquivo pessoal

Por quê? Porque eu pensava: “Bom, é assim que eu quero”. Minha mãe diz: “Você ficou tão masculinizada, tão retraída, que pensei que você não queria ficar com meninos, que era gay, e que na época não estava sabendo digerir isso”. Aí, de repente, me apaixonei por um menininho da escola e a gente foi namorando. Foi com ele que eu tive minha primeira relação, primeiro tudo. Mas ele foi superpaciente, era romântico. Sabe aquele amor de escola?

“Quando você revive o trauma, com conhecimento da gravidade, fica tudo à flor da pele. Lembro de me achar culpada”

Você conversou com ele sobre o que tinha acontecido? Toquei no assunto. Ele queria a primeira relação, queria ter toque, e eu falava: “Ó, não funciona muito bem comigo”. Ele quis saber por que e fui falando, mas não ia fundo. Só quando parei para fazer terapia que pensei: “Tem mais coisa nisso aí, tem muita sujeira e tem que ser limpo”.

Buscou ajuda? Sim. Essa terapia foi fundo, e tinha eventos que eu não lembrava mais. Lembrava de um ou dois e aconteceram muitas vezes. Quando comecei a lembrar de tudo, comecei a pensar: “Meu Deus, como consegui retrair isso por tanto tempo?”. E comecei a me punir.

Como? Ingeria bebida alcoólica, vodca com energético, ia a baladas, não terminava uma semana inteira de treino, comecei a detestar nadar. Continuava nadando só porque recebia e porque não conseguia dizer “parei”. Os resultados caíram, e a imprensa ficava: “O que está acontecendo com você?”, “A Joanna já era!”, “Ela não está aguentando mais a pressão”. Eu não estava bem comigo mesma. Nada encaixava, sabe? E aí só depois que comecei a fazer essa terapia e ir muito fundo que falei: “Bom, existe uma luz”.

Mas é um processo longo e dolorido essa busca pelo autoconhecimento. Quando você começa a fazer terapia e revive o trauma, com conhecimento da gravidade, fica tudo muito à flor da pele. Lembro de sentir muito nojo de mim, de não conseguir me olhar no espelho, de me achar culpada. Pensava: “O que eu fiz pra ele achar que tinha direito de fazer isso comigo? Será que dei algum sinal errado?”. É um turbilhão. Mas aos pouquinhos fui acalmando e comecei a ir encontrando minha paz.

Demorou? Demorou. Falar “eu fui abusada sexualmente” é muito difícil. Ou: “Ele colocou a mão dentro do meu maiô”, ou “ele ejaculou em mim”... Quando eu trouxe isso à tona, em 2008, foi porque estava começando a encontrar essa paz.

O assunto não aprisiona mais você? Falar disso é uma libertação; cada vez que falo, me liberto mais.

Mas buscar isso dentro de você requer muita coragem. Muita. E as sessões de terapia eram antes do treino, então eu me acabava de chorar, saía de lá exausta, ia pra piscina e pensava: “O que eu estou fazendo aqui? Eu não quero estar aqui”. Chegava em casa e ficava 24, 48 horas no meu quarto, na minha cama, com a luz apagada. Dizia: “Ninguém toca em mim. Ninguém traz comida. Não quero comer, não quero nada. Quero ficar aqui”.

“Falar [sobre o abuso que sofreu na infância] é uma libertação; cada vez que falo, me liberto mais”

E como saía da cama? No outro dia eu acordava e dizia: “Tá, vou viver”. Mas era um ciclo, ficava indo e vindo. Eu queria viver, mas doía e eu voltava pro meu quarto. Até que falei: “Não. Se você quer viver não vai poder voltar para esse casulo. Isso não pode mais acontecer”. É um mecanismo que tenho até hoje porque algumas coisas ainda me trazem essa vontade de ficar no meu canto, mas não me permito mais.

Você fez uma coisa muito difícil que é encarar um trauma e resolver isso dentro de você. Mas tem uma outra ainda mais difícil: perdoar. Você chegou nisso? Não. Posso dizer que não tenho mais ódio, hoje sinto pena. Já tive muita raiva dele. Do tipo: “Olha o que você fez comigo”. Não só pelo abuso, mas pelas consequências. Mexeu com minha profissão, com meus relacionamentos, com a minha mãe... Um monte de gente falando que eu estava mentindo. Hoje compreendo que ele é incapaz de entender o mal que fez a mim e a outras pessoas. Ele tem um instinto doentio, patológico, e não consegue controlar. Só posso ter pena de um ser humano assim. Ele não teve capacidade de contar para a própria família: “Eu fiz isso”. Pelo menos o perdão da família ele poderia ter.

É isto: é uma patologia, uma doença, e um crime. Esses são os problemas dele, o seu você resolveu. Resolvi. Mas quando falei para a imprensa [sobre os abusos] e ele me colocou na Justiça, eu falei: “Vou lá [na audiência], vou olhar na cara dele e falar: ‘Agora diz que você não fez nada daquilo!’” [O ex-treinador, cujo nome não podemos revelar por risco de processo, acionou Joanna por difamação. O processo foi suspenso por tempo indeterminado pela Justiça pernambucana. Em 2012, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei Joanna Maranhão, que altera o prazo de prescrição para crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes].

No clima da Copa do Mundo de 1994 com o irmão, Luíz Neto e Silvio Júnior, o caçula - Crédito: Arquivo pessoal

Foi assim? Na hora que ele cruzou comigo voltei a ser a menininha de 9 anos; desmoronei. Segurava na mão do meu ex-marido e na da minha mãe, e não conseguia olhar no olho dele, só me acabava de chorar. Não fazia sentido, eu pensava, porque já tinham se passado muitos anos, ele não ia mais fazer aquilo comigo, mas não tinha forças. Minha mãe falou: “Você não vem mais para nenhuma audiência com ele. Vai assinar uma procuração e não vai mais cruzar com esse homem”. E foi a melhor coisa. Para chegar ao ponto de ter pena dele foi necessário não cruzar mais com ele.

“As pessoas acham que sou um bonequinho: dá corda e ele nada. Não é assim, não vou ser assim” 

E hoje, sexualmente, você é uma mulher completa? Não sou tão ativa quanto as meninas da minha idade. Acho que as pessoas têm um apetite sexual que não tenho. Com meu parceiro sou superbem resolvida, a gente tem uma vida sexual ótima. Mas na questão de quantidade as pessoas às vezes falam: “Transo seis vezes por semana”. E eu fico: “Nãaao!” [risos].

Mas quem transa seis vezes por semana? Não sei se são as pessoas que falam demais [risos]. Prezo muito mais pela qualidade. Tem vezes que você faz amor, tem vezes que faz sexo, e eu consigo fazer os dois com meu marido. Mas em questão de quantidade não é igual ao que dizem por aí.

Todo mundo mente sobre frequência sexual. É. Eu não minto, até porque ele mora em Belo Horizonte, e eu, em São Paulo. Então a gente chega a ficar dois meses longe. Não me incomoda a ponto de eu ficar: “Meu Deus, faz dois meses”. Acho que minha sexualidade hoje é natural, ela é o que é bom pra mim.

O que ter passado por isso fez pela sua carreira? Me tornei um ser humano melhor, não só uma atleta melhor. Quando você é somente atleta vira um robozinho: acorda, come, treina, faz performance, volta e descansa. Quando você é arrastada lá para baixo, aprende a valorizar as pequenas coisas porque você já esteve na merda.

Me parece que você entrou em um processo de autoconhecimento que pessoas de 50 anos não têm coragem de encarar. Acho que todo mundo tem que fazer terapia. Tendo sofrido abuso ou não. Para quem sofreu abuso, a terapia é um medicamento. Não sei qual linha você vai querer, se é holística ou freudiana. Eu fiz todas. Fiz até hipnose, que foi muito bom. Terapia é uma libertação, é lá que você vai encontrar o seu caminho, porque não existe um caminho, existe o seu caminho.

“É isso que tento passar para as pessoas. Se eu for feliz, fizer um tempo bom e for a melhor que eu puder ser, estarei em êxtase”

Você advoga pela busca do autoconhecimento. Isso. Vale muito, mas precisei ir ao fundo do poço. Se eu não tivesse ido lá e encontrado a Joanna mais dark, não estaria aqui hoje.

Comemorando os 7 anos ao lado da tia-avó Nair - Crédito: Arquivo pessoal

Algum dia você achou que não ia dar conta? Tentei me matar duas vezes. Me entupi de remédios. Só que na primeira vez pensei: “Fiz merda”. Aí liguei para o meu técnico, que é um pai pra mim, e contei. Eu morava sozinha na época, era 2006. Foi um ano da terapia mais pesada, e foi quando eu tentei. A segunda vez foi em 2013. Eu já estava bem em relação ao abuso, mas meu posicionamento político tinha causado muitos problemas financeiros para minha família. E é um gatilho, uma coisa chama a outra. Então, quando vi que a minha família estava com uma dívida de R$ 412 mil, eu pirei.

Você se culpou? Sim. Minha família queria bancar tudo o que meu clube e a Confederação não me dava. Quando soube da dívida, pensei: “Ferrou”. E me enchi de remédios de novo. Não acho que teria coragem de ir até o fim, acho que era mais um pedido de socorro.

O que me comove é que você, mesmo diante de tantos obstáculos, se recusa a deixar de ser quem é. Às vezes as pessoas têm alguma meta porque pensam: “Vou até o fim porque quero aquele emprego”, ou: “Vou até o fim porque quero aquela medalha”. Eu vou até o fim porque quero saber quanto melhor posso ser. Qual é a melhor Joanna que eu posso ser? Em tudo: a atleta, a cidadã, a filha, a mulher.

Recentemente você fez um vídeo que dizia que você não iria para o Pan de Toronto representar figuras como Cunha, Feliciano e Bolsonaro e o COB te deu um “cala-boca”. Como vê isso? Entendo o lado do COB. Sabe aquela história de que o universo procura equilíbrio? O COB tem que ter controle sobre os atletas. Vários deles vieram me falar que tinha sido legal, mas em off. Um fotógrafo falou: “Não fala para ninguém, mas achei seu vídeo muito bacana”.

Joanna ao lado do namorado, o judoca Luciano Corrêa, no Pan de Toronto - Crédito: Arquivo pessoal
“Com a natação consegui comprar apartamento e um carro, e hoje não tenho mais nada, vendi tudo por causa de dívida”

E as críticas? Numa delas alguém escreveu: “Joanna tem que ficar calada porque é atleta e ela tem que treinar”. As pessoas acham que sou um bonequinho: dá corda e ele nada. Aí acabou a corda e ele descansa. Não é assim, não vou ser assim. Lógico que tenho meu momento robô, sou superdisciplinada. Mas não vou me calar porque é o meu país, é o país onde eu vou parir meu filho, é onde meus sobrinhos vão crescer, então tenho direito de falar. E quem fala precisa saber escutar.

No fundo, você sabia que iam acabar colocando um limite? Qual é o limite? Até onde pode ir? Tem gente que quer repetir um padrão: casar, ter filho. Tem gente que quer ir para a praia. O que é ser feliz? Qual é a fórmula? Todo mundo fala que para ser atleta você tem que ficar calado, robozinho. Mas será que é? Eu não sei. Talvez isso seja bom pra maioria, mas e se eu não for a maioria? O meu técnico perguntou se eu fiz o vídeo porque tava nervosa com o Pan. Falei: “Não, fiquei nervosa porque eu fiquei puta! Porque tô cansada de manobra”. Eu vi as pessoas maníacas por política durante o segundo turno [das eleições presidenciais em 2014], e na Câmara e no Senado estão acontecendo coisas tão mais absurdas e ninguém está prestando atenção. Eu pensei: “Preciso falar o que penso, senão eu explodo por dentro”.

O que incomoda? Não é pela pessoa que é a favor ou contra a redução da maioridade penal. Ela tem direito de discordar de mim. O que me deixa maluca são pessoas que são autoritárias e acham que a gente não está vendo. Não consigo entender um Eduardo Cunha no posto em que ele está. Em Recife, lá na câmara dos vereadores, tem um vídeo de uma vereadora querendo falar e tiram o áudio dela. Aquilo me doeu. Deixa a mulher falar! Eu não consigo, é muito mais forte que eu.

Você é assim desde pequena? Eu comentei com mainha que, depois da repercussão do vídeo, eu lembrei que na minha primeira Olimpíada, em 2004 [em Atenas], a gente foi dar uma volta de bicicleta na vila e as meninas queriam ver a sala de jogos e eu queria ver o prédio de Cuba. Tinha uma foto do Che Guevara gigante, e quis tirar uma foto da foto. Mainha disse: “É verdade, você sempre foi meio revoltadinha”.

Na hora que você tirar isso de você, morre também como atleta. É exatamente isso. Hoje falo menos, por incrível que pareça. Por exemplo: política desportiva foi uma coisa que afetou quando bati de frente. Bati de frente com cartolas e com gente muito poderosa do esporte. E isso foi um fardo financeiro para minha família. Com a natação consegui comprar apartamento e um carro, e hoje não tenho mais nada, vendi tudo por causa de dívida. Hoje sei que é uma causa perdida, então o que faço? Ignoro os dirigentes. Quem media meu relacionamento com a Confederação é meu técnico. Para representar o Brasil eu tenho que representar a CBDA, mas não concordo com a política deles e não posso me naturalizar por outro país. Então tenho que engolir.

E eles têm que engolir você também. Têm que me engolir. Acabou o Pan [de Toronto] e recebi muitos parabéns. No momento em que não for bem em alguma competição, vão virar as costas de novo. Para eles nós somos aqueles bonequinhos de dar corda: você nada, depois volta para a prateleira.

Quando bateu de frente, a represália veio com a falta de patrocínio? Veio muito forte.

Você chegou a parar de nadar? Parei por seis meses, quando não estava aguentando mais. Quando soube dessa dívida de R$ 412 mil, joguei tudo para o alto. Comecei a estagiar, fui adiantando a faculdade. Fazia educação física. Reduzi meu padrão de vida lá para baixo. Às vezes não tinha R$ 0,50 em casa.

E o que fez você decidir voltar? Eu me formei, e foi um alívio. Aí falei: “Vou começar a dar umas caídas na água só pra sentir”. Voltei a treinar e fui competir no Jubs (Jogos Universitários) de 2014. Fiz o melhor tempo da América do Sul. Aí todo mundo: “Xi, a menina voltou” [risos]. Pensei: “Quero me mudar para São Paulo e em dezembro vou fazer índice para o Pan”. Chegou dezembro, fiz índice para o Mundial e para o Pan.

Mudou sua relação com a natação? Hoje em dia eu só nado porque amo nadar. Eu estava no call room [no Pan de Toronto], que é aquele balizamento antes da prova que o pessoal fala que é o balizamento do terror, e eu estava rindo, querendo puxar papo com as meninas. Só uma queria falar comigo, e eu ficava: “Vamos conversar”. Eu entrava dando tchau pra todo mundo. É essa essência que você encontra depois da busca.

O resgate da inocência que a gente perde quando a vida endurece? Com 17 anos fui quinto lugar nos Jogos Olímpicos e não tinha a menor noção do que era aquilo. Entrei para nadar a final olímpica dando tchauzinho, com sorriso no rosto. Depois me peguei pensando: “Nunca mais vou fazer esse tempo porque nunca mais vou ser feliz como fui aos 17 anos”. E nesse Pan agora, quando fui para o balizamento, eu tava tão feliz… Pensei: “A menina de 17 anos está aqui. Ela ainda existe, eu consegui”.

E você baixou a marca dela. Com 28 anos, em uma prova superdura como é a de 400 metros medley, e eu cheguei em quarto, por 4 centésimos [Joanna acabou ficando com o bronze porque a nadadora que pegou o terceiro lugar foi desclassificada]. Ninguém entendeu porque eu estava mais feliz do que a menina que ganhou. Não tem como explicar. Acho medalha muito legal, mas é um objeto.

Porque vivemos um sistema econômico que nos estimula a competir uns contra os outros. Mas, no fundo, não é a medalha, é como você se sentiu, é você conseguir ir balizar rindo e dançando. É justamente isso que tento passar para as pessoas. Às vezes o público leigo não consegue entender. Fica: “Por que essa menina está comemorando? Ela ficou em quarto lugar no Pan, vai ficar em 15o na Olimpíada”. Não tem problema. Se eu for feliz, fizer um tempo bom e for a melhor que eu puder ser, estarei em êxtase.

Você já se sentiu aprisionada com a rotina da natação? Esse período dos 17 até os 24 anos era amor e ódio. “Eu amo fazer isso, sou boa nisso, mas é muito chato. Será que vale a pena?” Você vai para o treino e parece que está carregando bola de ferro no pé. Hoje vou treinar sorrindo. Minha vitória é chegar ao final do dia e pensar que cumpri tudo que tinha que fazer naquele dia. Isso faz com que me sinta vitoriosa. Quando chego em casa, não tem imprensa, não tem ninguém batendo palma pra mim, não tem medalha, sou só eu e essa satisfação interna.

E você acha que fica nas águas por mais quanto tempo? Se eu quisesse ficava mais quatro anos. Mas paro no ano que vem porque realmente quero viver outras coisas.Quero casar, constituir família, fazer mestrado. A Olimpíada do Rio vai ser minha quarta Olimpíada, terei vivido plenamente a vida de atleta.

Política está na sua vida? Fiz um curso de ciência política este ano, mas acho que o sistema vai me expelir, porque eu não tenho a resiliência de um Jean Wyllys, de uma Maria do Rosário. Gostaria de fazer alguma coisa pra mudar o país, mas não pela via política. Será que existe esse caminho?

Você já está fazendo. Fazer mais! Tenho uma ONG que se chama Infância Livre. A gente tem palestras prontas para ensinar às crianças qual é o carinho que elas podem permitir, ensinar a verbalizar. Mas a aceitação disso não é boa porque pensam: “Estarei aflorando a sexualidade da criança”. E não é. A outra linha é mais emergencial: quando a criança aparece para a gente e já aconteceu o abuso. Então damos suporte jurídico, psicológico, financeiro, e o que mais ela precisar.

“Gosto de ver mulheres quebrando paradigmas. Por isso admiro tanto mainha. Lá do nordeste, ela casou seis vezes”

E você se acertou financeiramente? Sim. Consigo sobreviver com o que ganho, sem gastar demais. E a minha família também está estabilizada, então respiro melhor.

Quantos irmãos você tem? Tenho três: José Henrique, Luíz Neto e o caçula, Silvio Junior. O mais novo é homossexual. Eu gosto de dizer pra todo mundo, tenho muito orgulho: meu irmão é gaaay! [Risos]. Eu até falo: “Mainha, ele tem 21 anos, mas é mais maduro que todos os três irmãos juntos”. Meu irmão é meu herói.

Um núcleo familiar sólido como esse ajuda a superar dificuldades? Muito. E a gente não é aquela família tradicional, a gente é totalmente diferente. Minha mãe tá no sexto casamento, eu vou para o segundo, meu irmão é gay… É uma família maravilhosa.

Com o bronze pelos 400 metros medley no Pan-Americano de 2015 - Crédito: Arquivo pessoal

Sua mãe é fortona? Sabe aquela mulher de fibra? “Eu vou ser a mãe, o pai, o esteio da minha família e quem precisar de mim, tô aqui”. É ela. Minha mãe realmente é fodida, desculpa a palavra, mas ela é.
Também é uma causa nobre pra você a das mulheres? Gosto de ver mulheres quebrando paradigmas. Por isso acho que admiro tanto mainha. Lá do Nordeste, ela casou seis vezes. E ela fala: “Se tiver que casar a sétima, caso. Porque eu quero é ser feliz e o caráter é o que vale pra mim”. É renomada dentro da profissão. E é motivo de orgulho imenso saber que todo mundo cresceu na vida e conquistou seu lugar sem passar por cima de ninguém.

Você se dá bem com seu pai? Muito bem. No momento que ele saiu de casa fiquei com aquela raivinha. Mas hoje compreendo o lado dele. Como mainha sempre trabalhou e foi meio a chefe da família, painho era mais presente em competições. Então, quando ele saiu de casa, deixou de ser presente. Fiquei um pouco chateada com isso, gostava de ver ele ali na borda. Quando voltei a nadar, ele foi comigo na primeira competição. Pegou o carro e dirigiu até Aracaju, dividiu quarto comigo. Ter painho ali foi muito significativo para mim. A nossa relação amadureceu.

Hoje você acha que finalmente se apropriou de sua história? Sim. Meu trauma não vai guiar minha vida, sou eu que vou.

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