Porque não.
Era uma vez uma mulher que não queria ter filhos nem se explicar sobre isso
Mayara Fortin nunca quis ser mãe. Ano passado, a arquiteta paulista decidiu fazer um “experimento social”: foi conferir como é o processo para conseguir a laqueadura, a cirurgia que liga as tubas uterinas, impedindo a gravidez. No Brasil, o procedimento pode ser feito pelo SUS: segundo a Lei 9.263, mulheres a partir de 25 anos (ou já mães de dois filhos) podem pedir pela cirurgia – mas não sem dar uma série de explicações, como descobriu Mayara.
Primeiro, ela preencheu uma ficha; depois, assistiu a uma palestra sobre métodos contraceptivos; na sequência, escreveu uma carta e, por fim, passou por um tipo de entrevista com a enfermeira do posto de saúde. “É quase um interrogatório. O atendimento foi simpático, mas um tanto absurdo”, lembra à Tpm. A documentação foi passada a uma comissão, que demora até seis meses para responder. No fim, ela recebeu uma negativa. “Tentei argumentar: tenho 30 anos, casa própria, carro e viajo pelo mundo. E esta é a única decisão que não tenho ‘maturidade’ para tomar?”
Além dos entraves, de quebra vigora uma cláusula pra lá de controversa: independentemente da idade, mulheres casadas precisam de autorização do cônjuge para realizar a cirurgia. Mayara descobriu que, na prática, a lei não é seguida à risca.
Sem justificativas
A discussão é necessária: um número crescente de brasileiras vêm optando pela não maternidade. Segundo o IBGE, em 2004, elas representavam 10% da população feminina do país; em 2014, eram 14%, apesar da série de pressões e expectativas da família, dos amigos ou dos padrões, do inabalável tique-taque do relógio biológico e pela ideia de feminilidade “plena” umbilicalmente ligada à maternidade.
“A simples afirmação ‘não quero ter filhos’ é frequentemente seguida pela pergunta: ‘Mas por que não?!’ É como se a mulher fosse obrigada a se justificar, a jogar a prioridade para uma pós-graduação, um projeto, um trabalho”, diz a psicóloga gaúcha Daiana Quadros Fidelis, que estudou não maternidade e maternidade tardia – segundo o estudo Estatísticas do Registro Civil de 2015, realizado pelo IBGE, o número de mulheres que se tornaram mães entre 30 e 39 anos aumentou de 22,5% (2005) para 30,8% (2015), enquanto na faixa entre 15 e 19 anos caiu de 20,3% para 17%, no mesmo período.
Daiana recebe em seu consultório relatos de mulheres que se sentem culpadas por não palpitar o tal instinto materno no ventre. “Elas cresceram ouvindo que mulher ‘nasce’ com esse desejo. Por não se verem nesse papel ou não se sentirem sensibilizadas, muitas delas alimentam sentimentos de culpa, como se lhes faltasse algo. Mas o que falta não é necessariamente um filho, e sim a ideia de que ela deveria desejar um filho”, analisa. Para Daiana, discussões recentes têm contribuído para quebrar esse estigma e “para mostrar que as mulheres que não querem ter filhos não estão sozinhas e não há motivo para culpa”.
Esse estigma tem raízes milenares. “Ao longo da história, a figura da mulher mãe foi muito forte. Nos últimos 5 mil anos, a mulher foi considerada responsável pela futura mão de obra – eram necessários braços para a lavoura, então, elas tinham 15 filhos”, analisa Regina Navarro Lins, psicanalista e autora de Novas formas de amar (2017). “Mas, na década de 60, depois do advento da pílula anticoncepcional e do movimento feminista, as mulheres passaram a poder decidir se queriam ter filhos ou não, quando, onde e com quem. Foi uma grande ruptura na história.” Na década de 80, lembra a psicanalista, a filósofa francesa Élisabeth Badinter escreveu um livro sobre o mito do amor materno, Um amor conquistado, mostrando que o desejo de ser mãe não é inerente à mulher. “Ela foi duramente criticada, pois muitos queriam continuar acreditando que toda mulher é uma mãe potencial.”
A designer paulista Tania Aquino, 37 anos, já foi chamada de “antibarriga” por defender a escolha. Ela discorda do rótulo: “Sou childfree. Respeito a decisão de quem tem filhos, assim como espero que respeitam a minha de não tê-los”. Para Tania, ser mãe implica condições com as quais ela não está disposta a lidar. “Outro dia, disse a uma amiga que meu marido e eu não queremos filhos. Ela comentou: ‘Ah, que pena... Um bebezinho muda a vida da gente!’.” Respondi: “Exatamente! Gosto da minha vida como ela é.”
Mulheres como Tania se cansaram de ouvir frases como “você ainda vai mudar de ideia”, perguntas invasivas como “seu marido sabe que você não quer ter filhos?” ou “então você não quer deixar nenhum legado para o mundo?”. E o chavão quando se toca no tema: “Isso é egoísmo”, relatou a ensaísta americana Christen Reighter em sua apresentação Eu não quero ter filhos e parem de me dizer que vou mudar de ideia, no TEDxMileHighWomen, em 2016. Christen ouviu essas e outras interrogações durante sua saga para conseguir a esterilização cirúrgica – e conseguiu. Para ela, tratava-se de uma questão de direito ao próprio corpo.
NoMo
Na Inglaterra, a escritora Jody Day, autora dos best-sellers Living the life unexpected, 2016 (“Vivendo a vida inesperada”, em tradução livre) e Rocking the life unexpected, 2017 (“Balançando a vida inesperada”, em tradução livre), fundou há sete anos a Gateway Women, organização dedicada a oferecer apoio a mulheres sem filhos – por meio de fóruns on-line, encontros e até workshops para discutir como a não maternidade não é o fim do mundo – e que cunhou a expressão NoMo (sigla para no mothers). Entre as conterrâneas de Jody, o número de não mães de 45 anos (idade fértil feminina máxima nos parâmetros do Instituto de Estatísticas Britânico) saltou de 9% para 18% entre 1991 e 2016.
Nos EUA, a tendência se repete: entre 1976 e 2006, o número de americanas não mães de 40 a 44 anos subiu de 10% para 20%. “Se as mulheres realmente nascessem com instinto maternal, veríamos taxas constantes de natalidade ao longo dos anos. E o movimento feminista das décadas de 60 e 70 não teria influenciado decisões. Mas a tendência childfree só aumentou desde então”, escreveu a socióloga Amy Blackstone na sua coluna no Huffington Post. A americana, professora da Universidade do Maine (EUA), iniciou em 2013 o blog We're {not} having a baby! (nós não vamos ter um bebê), ao lado de seu marido, Lance. Ela participa do conselho do NotMom Summit, um tipo de convenção de não mães realizado desde 2016 em Cleveland, Ohio (EUA). Fundada pela americana Karen Malone Wright, apoiada por seu marido Andrew, a liga busca dar suporte a quem não quis ou não pôde ter seus rebentos. De acordo com o censo de 2014, 47,6% das americanas entre 15 e 44 anos não tinham filhos.
Nos últimos tempos, NoMos hollywoodianas engrossaram a discussão: nomes como Ashley Judd, Cameron Diaz, Jennifer Aniston, Renée Zellweger e Oprah Winfrey, por exemplo, já se manifestaram. No Brasil, o tema também chegou às livrarias: foram lançados por aqui títulos como Contra os filhos, da escritora chilena Lina Meruane, e Sem filhos: 40 razões para não ter, da psicanalista suíça Corinne Maier.
“Como em toda mudança de mentalidade, estamos no meio de um processo – e não é tão tranquilo assim, há muita cobrança ainda”, diz a psicanalista Maria Lucia Homem, pesquisadora do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos, da Universidade de São Paulo (USP). “Afinal, a mulher nunca pôde decidir nada, presa num ideal feminino de submissão, de ser meiga e cordata e, certamente, mãe. A partir do momento em que as mulheres estão podendo dizer ‘não quero, porque não quero’, aos poucos que seja, já é um passo além. Poder decidir é libertador.” Mayara, que não conseguiu fazer sua laqueadura, completa: “Antes sentia um silêncio constrangedor ao dizer que não queria casar e ter filhos. Mas vivemos uma época mais livre para romper isso”.
“Toda pessoa é capaz de deixar um legado”
Leona Cavalli, 49, atriz
Ao longo dos anos, Leona ouviu muitas perguntas sobre filhos – talvez, imagina ela, por ter interpretado muitas mães na ficção. “Amo fazer esse tipo de papel”, diz a atriz. Mas ela conta que, nas vezes em que surgiu a possibilidade de ser mãe, não achou que fosse o momento certo.
“Ter ou não ter filhos é uma decisão muito pessoal, que implica na escolha de uma forma de vida. Não sinto essa necessidade como parte da condição feminina. Pra mim, até agora, tem sido uma questão circunstancial.” Ela deixa a porta aberta: “Ser mãe sempre é uma possibilidade”.
A atriz vem priorizando sua carreira. “Toda pessoa é capaz de deixar um legado para o mundo; e deixa, quer queira, quer não. Pode ser um legado de amor ou de dor. No meu caso, espero deixar amor na arte, nos amigos, na vida.”
“Não me arrependo do aborto”
Caroline Barrueco, 32, artista plástica
Caroline esteve grávida por 20 dias. “Em nenhum momento antes de descobrir a gravidez tive vontade de ser mãe, nem depois. Acho estranho até ter que justificar isso, pelo simples fato de que não faço ideia de como seria sentir o contrário disso”, escreveu a artista no seu blog Pulgas mil na geral.
“É como ter que explicar que nunca senti vontade de construir um criadouro de tamanduás-mirins no Nepal. Sim, tamanduás-mirins são fofíssimos! Mas, entre todas as coisas que quero fazer na vida, essa não é uma delas. Nem ser mãe”.
Caroline fez um aborto legal na Alemanha, onde mora. “Não titubeei e não me arrependi”, acrescenta. Seus dias são animados por pequenos: duas amigas próximas se tornaram mães recentemente. “Convivo diariamente com bebês. Está sendo incrível e maravilhoso, aprendo a cada segundo. Mas ver [a maternidade] de perto só confirma minha decisão: apesar de adorá-los, não me desperta nenhuma vontade de ter os meus.”
“Não precisa procurar uma justificativa”
Luciana Butzke, 43, socióloga
Para Luciana, a não maternidade foi uma combinação de circunstâncias da vida e uma decisão da vida toda. A socióloga conta que pesou uma série de fatores: o famoso relógio biológico, a existência ou não de um companheiro, a estabilidade econômica e a carreira. Mas, no fim, o fiel da balança é o desejo (ou não) de ser mãe.
“Questionavam-me muito, inclusive dentro da universidade. Durante o mestrado e o doutorado, eu dizia: ‘Por enquanto, não; não quero neste momento’. Depois, vi que era uma decisão definitiva: não quero em momento nenhum”, diz ela, que atualmente pesquisa relações de gênero.
A discussão, para Luciana, está avançando, principalmente entre as jovens mais atentas às discussões sobre gênero. “A gente não precisa procurar uma justificativa ‘fora’ de nós: um projeto profissional, a questão do tempo ou do dinheiro, a presença de um companheiro fixo ou qualquer outra coisa. Podemos simplesmente dizer: ‘Não quero, ponto. Tenho o direito de não querer. É meu corpo. Isso é libertador’.”
“Vou ser feliz pra caralho”
Maeve Jinkings, 42, atriz
Maeve viveu a maternidade de perto muito cedo, ao lado de sua irmã, que teve filho aos 15 anos. A atriz preferiu então adiar a ideia, desejou filhos “ardentemente”, mas o prolongamento chegou até aqui. “Sofri muito, e talvez muitas mulheres compartilhem desse sofrimento, dessa ideia de que não se está inteira. Faz pouco tempo que entendi que, mesmo se não tiver filhos, vou ser feliz pra caralho também”, contou nas nossas Páginas Vermelhas, em abril passado.
A atriz acrescenta agora: “Modéstia à parte, eu seria uma mãe incrível. E é possível ser maternal sem ser mãe. Você não dá amor só a um filho biológico ou adotivo, você exerce esse sentimento maternal com quem você ama: amigos, filhos de amigos e companheiros, sobrinhos”, acrescenta. “Maternidade é uma experiência complexa, muitas vezes romantizada. O mais importante é descobrir se esse desejo é seu. Às vezes, a gente deseja porque sim, e deve ser uma experiência transformadora. E, às vezes, a gente não deseja porque não, e tudo bem.”
Créditos
Ilustrações de Catarina Bessell