Duda Salabert, Erika Hilton e Linda Brasil: política e luta
Três vereadoras transexuais eleitas com votação recorde falam sobre os primeiros meses de trabalho nas câmaras municipais, a recepção dos outros parlamentares, preconceito e representatividade
O que pode esperar uma vereadora dias antes de tomar posse para iniciar um mandato? No caso de Duda Salabert (PDT-MG), eleita em Belo Horizonte, aconteceu exatamente o que ela esperava. “Fui questionada sobre qual banheiro eu usaria”, conta. “A estrutura da Câmara tinha a preocupação sobre onde eu faria xixi e coco.”
Explica-se: Duda é uma das 30 vereadoras transexuais que tomaram posse no Brasil em janeiro deste ano – o maior número da história, segundo a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Professora de Literatura e idealizadora da Transvest, ONG que oferece suporte social às travestis e transexuais de Belo Horizonte, Duda foi a primeira transexual eleita em BH e a parlamentar mais votada da história da cidade.
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Seu recorde não foi isolado. Em São Paulo, Erika Hilton (PSOL-SP), também transexual, elegeu-se com o maior número de votos entre todas as mulheres do país. Sua companheira de partido, Linda Brasil (PSOL-SE), também entrou para a história por ser a primeira trans na Câmara de Aracaju, em Sergipe, além de ter sido a parlamentar mais votada da cidade.
O fato é que elas estão cada vez mais ocupando os espaços de poder – e com números expressivos. E isso tem incomodado os grupos mais conservadores. “Logo depois da minha eleição, fui atacada com várias mensagens e áudios deslegitimando a minha identidade”, conta Linda. “Teve até uns pastores, candidatos que perderam, dizendo que não sou mulher, que sou uma mentira, inflamando o povo contra mim, dizendo que a minha eleição era inaceitável.”
Linda tem usado a gramática para responder. “Dizemos que fazemos uma mandata. Não é o mandato, é a mandata da Linda Brasil. E o nosso escritório de trabalho se chama Gabineta Popular Diversidade e Cidadania. A gente sempre usa a linguagem para poder marcar território”, conta orgulhosa.
A Tpm conversou com as três parlamentares para saber como foram os primeiros meses de trabalho nas câmaras municipais. Em seus depoimentos, elas contam os medos, os receios, as emoções e as violências que experimentaram durante a atividade pública até agora.
Duda Salabert
"Nas horas que antecederam a posse, eu tentei me blindar psicologicamente dos ataques transfóbicos que eu sabia que viriam por dois motivos: primeiro por eu ser a primeira pessoa transexual eleita na história da Câmara Municipal de Belo Horizonte. E depois por eu ter sido a vereadora mais votada da história da cidade. Eu sabia que os adversários iriam projetar para mim um discurso bastante transfóbico, até porque esses discursos estão presentes nos espaços de poder que nós, pessoas transexuais, tentamos acessar.
Na posse, materializou-se o que eu esperava. Um vereador, que não vou citar o nome, desconsiderou o fato de eu ter sido a mulher mais votada da história. Em seu discurso, ele parabenizou a mulher mais votada, mas citou o nome de outra, desconsiderando a minha votação e a minha vitória. Um ato extremamente transfóbico.
A violência no espaço legislativo se manifesta com discursos violentos vindos sobretudo de candidatos declarados abertamente bolsonaristas, que de fato tentam fazer ataques contra a nossa moral e a nossa honra. Esses ataques, no entanto, são uma exceção. A regra é que a violência se materialize de forma silenciosa, por meio de olhares estranhos, alguns risos, gestos, que sugerem um desconforto em relação à presença de um corpo trans na Câmara Municipal ou no espaço de poder.
“Ocupar os espaços de poder é urgente para manter os nossos corpos vivos”
Duda Salabert, vereadora em Belo Horizonte
Eu esperava – e de fato aconteceu – que me questionassem sobre qual banheiro eu usaria. A estrutura da Câmara tinha a preocupação sobre onde eu faria xixi e coco. Não foi uma abordagem violenta, foi de fato preocupada, pensando em uma estratégia para não me expor, uma vez que eles entendem que alguns parlamentares poderiam usar esse fato como uma forma de me violentar mais ainda. Eu falei que usaria o banheiro feminino, claro.
Ocupar os espaços de poder é urgente para manter os nossos corpos vivos. Quando fui eleita, recebi dois e-mails dizendo que me matariam e transformariam a escola em que eu trabalhava em um mar de sangue. Os e-mails foram encaminhados para os donos da escola, inclusive, para forçar minha demissão. E de fato eu fui demitida. Esse grupo conseguiu o que queria. Nós temos na Câmara vereadores que são apresentadores de TV, radialistas, etc, mas os donos da escola disseram que eu não conseguiria exercer a atividade parlamentar e dar aula ao mesmo tempo.
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Após essas ameaças de morte, eu tive reunião com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e com representantes da ONU para tentar garantir a minha segurança física. Eu prometi cumprir o meu mandato de vereadora, mas, caso as ameaças se ampliem, uma das orientações é que eu saia de Belo Horizonte. Uma das possibilidades é me candidatar a deputada federal, como uma forma de me manter viva, para ter a Polícia Federal dando um apoio na minha segurança. Meu plano político é continuar em Belo Horizonte. Ir para Brasília seria uma estratégia para me manter viva.
De modo geral, eu fui muito bem acolhida pelas mulheres da Câmara. Nós inclusive criamos um bloco chamado “Mulheres de luta”, composto por mulheres do campo progressista. Os parlamentares me receberam muito bem também. Mas há uma minoria que tenta usar a minha identidade e a minha visibilidade como trampolim político, apresentando um discurso de ódio para aparecer na mídia.
“É triste saber que, apesar dessas vitórias, ainda temos uma Câmara ocupada por homens machistas, misóginos, transfóbicos e racistas”
Duda Salabert, vereadora em Belo Horizonte
Em pleno dia das mulheres (8 de março) tivemos que escutar candidatos bolsonaristas fazendo discursos misóginos e transfóbicos. O dia que deveria ser para exaltar a nossa luta, tivemos que nos deparar com homens usando o microfone, o espaço de poder, para nos atacar mais ainda. Disseram, por exemplo, que o movimento feminista é igual água de salsicha, não serve pra nada. E também parlamentares parabenizando as 'mulheres que nasceram mulheres'. Extremamente transfóbico.
É bastante triste saber que, apesar dessas vitórias de todas nós, ainda temos uma Câmara ocupada por homens machistas, misóginos, transfóbicos, racistas e que não querem uma mudança profunda na sociedade nem têm compromisso algum com a democracia ou com a justiça social.
Por outro lado, o dia da visibilidade trans, em 29 de janeiro, foi um dia feliz. Protocolamos nosso primeiro projeto de lei, que é um projeto de empregabilidade para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Nesse projeto, 6% das vagas das empresas contratadas pela Prefeitura tem que ser destinadas às pessoas em situação de rua, travestis, transexuais e mulheres vítimas de violência doméstica.
Protocolar esse projeto, além de ter uma importância simbólica por ser o primeiro, também tem uma importância política de mostrar que nosso mandato está a serviço de combater o desemprego e de garantir uma reivindicação histórica do movimento trans que é a luta por empregabilidade. Discutir a questão LGBT é discutir saúde pública, moradia, desemprego, escolaridade… Com o meu mandato, quero mostrar que nós pessoas travestis e transexuais somos capazes de debater políticas públicas de forma qualificada".
Linda Brasil
"Eu nem dormi na noite anterior. Estava muito ansiosa. Seria a primeira vez que uma mulher presidiria uma sessão de posse na Câmara de Aracaju. Por eu ter sido a mais bem votada, seria a responsável. Era um mix de emoção, de medo, de receio, junto com a responsabilidade de empossar todos os outros vereadores eleitos.
Fiz um vestido lilás, tipo um manto, com a bandeira LGBT. Foi como se eu estivesse levando a bandeira LGBT, feminista, e as pautas dos direitos humanos pela primeira vez para dentro do parlamento de Aracaju. E convidei a professora Ângela Melo, do PT, para secretariar a sessão ao meu lado. Somos as únicas parlamentares de oposição aqui no município. Foi muito histórico duas mulheres comandando a mesa da primeira sessão.
Acabei quebrando os protocolos. Até hoje, para abrir as sessões, devem falar: “Em nome de Deus e do povo aracajuano, declaro aberta a sessão”. Mas eu mudei. Na hora eu falei: “Em nome de Deus, que é mãe e é pai, e respeitando o estado laico, em nome do povo aracajuano, eu declaro aberta a sessão”. Eu vejo em Deus uma figura que não tem gênero. E tem a questão do estado laico, que desrespeitam nessas situações impondo um tipo de religião. Além disso, quebrei o protocolo para fazer um pronunciamento que não estava previsto. Fiz um discurso muito emocionante que me levou às lágrimas. Estar ali era uma sensação de vitória, de esperança.
“Não basta ser trans. Para incomodar a gente tem que estar empoderada, tem que ter consciência do seu papel transformador”
Linda Brasil, vereadora em Aracaju
Dos 24 vereadores, 20 são homens e somente 4 são mulheres. Teve um seminário em dezembro, antes de começar os trabalhos, que eu percebi que alguns não dirigiam o olhar para mim, não cumprimentaram. Mas a grande maioria veio me parabenizar, dizer que estava muito feliz por mim. Foram poucos os que eu percebi que havia um constrangimento em me cumprimentar.
O fato de ser trans, de esquerda, feminista, defensora dos direitos humanos e dos direitos LGBT, e trazer pautas que vão de encontro a esse discurso da família tradicional, isso gera desconforto. Não basta ser trans. Para incomodar a gente tem que estar empoderada, tem que ter consciência do seu papel transformador.
Aliás, estamos usando a gramática para mostrar que estamos agindo de forma diferenciada. Primeiro dizemos que fazemos uma mandata. Não é mandato, é a mandata da Linda Brasil. É o termo que a gente usa para questionar esse espaço de decisões que sempre foi dominado por homens. E o nosso escritório de trabalho se chama Gabineta Popular Diversidade e Cidadania. A gente sempre usa a linguagem para poder marcar território.
Quero fazer uma mandata diferenciada, combativa, que não se deixe seduzir pelo poder. O mais importante é que minha eleição possa servir de motivação para que outras pessoas trans, LGBT, mulheres se sintam motivadas a ocupar esses espaços de poder com uma vontade de provocar transformações.
Recentemente apresentei três projetos na Câmara. Um era para incluir no calendário municipal o dia 29 de janeiro, que é o dia da visibilidade trans. Esse era simples. Outro era para destinar 5% das vagas das empresas que recebem subsídios municipais para a população trans e travesti, porque muitas estão na prostituição por falta de oportunidades. Esse projeto foi negado. Disseram que teria um custo para o município, que esse subsídio quem dá é o prefeito, que teria que estar no orçamento e tal.
O outro projeto, que já existe em vários outros municípios, era para respeitar o nome social das trans nas lápides. E eles também negaram. Disseram que o município não pode legislar sobre o nome civil. Existem várias portarias que regulamentam o nome social, estamos recorrendo. É uma questão de respeito à identidade de gênero, a gente até diz que elas têm duas mortes, uma física e outra social e moral, já que impõem um nome na lápide.
Percebemos que eles tentam usar a questão da constitucionalidade para negar nossos projetos, mas na verdade existe um incômodo com propostas que beneficiam a nossa população. Já deu pra sentir que vamos ter muita dificuldade para aprovar projetos nessa linha.
Recentemente fui à delegacia. Logo depois da minha eleição, fui atacada com várias mensagens e áudios deslegitimando a minha identidade. Teve até uns pastores, candidatos que perderam, dizendo que não sou mulher, que sou uma mentira, que não entendiam como o povo de Sergipe me elegeu. Teve um áudio terrível de um pastor daqui inflamando o povo contra mim, dizendo que minha eleição era inaceitável, que eu sou o demônio, que não sou filha de Deus.
Na visão de alguns fundamentalistas, nós trans estamos possuídas por um espírito mal que nos faz deixar de ser quem somos. É um áudio muito, muito forte, que foi propagado por grupos de WhatsApp. Ficamos com medo de que isso provocasse alguma reação de um fanático incentivado por esse discurso de ódio.
“Nas eleições as pessoas diziam que político era tudo igual. E eu respondia: 'Você já votou numa travesti? Então não é tudo igual'”
Linda Brasil, vereadora em Aracaju
Nossa equipe, no início, ficou muito preocupada. Tivemos uma reunião com o secretário de segurança pública, que se colocou à nossa disposição, mas como ainda não teve uma ameaça direta… Como estratégia, a gente alugou nosso escritório, a nossa gabineta, entre a minha casa e a Câmara, justamente para não se expor muito. Da minha casa para gabineta tem uns 150 metros. E da gabineta para a Câmara são uns 100 metros. Sendo mulher e trans, acaba sendo tudo mais difícil, mais perigoso.
Mas eu quero ser uma inspiração para que outras pessoas como eu possam acreditar que é possível. Escutei muito nas eleições que as pessoas estavam desacreditadas, diziam que político era tudo igual. E eu respondia: 'Como é tudo igual? Você já votou numa travesti? Então não é tudo igual'. Quero que as pessoas voltem a acreditar".
Erika Hilton
"Desde o começo da legislatura eu tenho andado com segurança. Eu provavelmente fui a candidata mais atacada e ameaçada nas redes sociais nas eleições passadas. Depois, já eleita, isso só foi se agravando, até tentarem entrar no meu gabinete dentro da Câmara Municipal de São Paulo.
Eu estava em uma reunião on-line, no período da tarde, quando um moço chegou e tentou entrar. Ele portava símbolos religiosos, estava agitado e transpirava muito. A Patrícia, que é a minha chefe de gabinete, estava comigo e saiu pra ver o que estava acontecendo. Meu motorista, Carlos, estava ali também e foi muito importante para ajudar na contenção. Eu fiquei dentro do gabinete, escondida. Depois de um bom tempo, esse moço desistiu de entrar e só deixou uma carta. Dizia que era o Garçom Reaça que me atacava nas redes sociais e que queria se desculpar. Mas a gente sabe que era mentira. Até porque depois ele voltou outras vezes à Câmara, inclusive com cartazes reproduzindo o discurso fundamentalista de vereadores bolsonaristas.
“Quanto mais eu faço, mais eu vou me tornando um alvo, porque existe um projeto coeso e qualificado de transformação da sociedade”
Erika Hilton, vereadora em São Paulo
Mas isso serve como motivação para continuar, para persistir e saber que meu trabalho tem conteúdo. É claro que a minha vida muda, eu passo a ter outra rotina por causa da minha segurança, da minha integridade física, mas jamais recuarei por conta disso. Só por ser quem eu sou no Brasil eu já sou um alvo, não preciso fazer nada. Mas quanto mais eu faço, mais eu vou me tornando um alvo, porque existe um projeto coeso e qualificado de transformação da sociedade.
Lembro-me bem do primeiro dia. Na noite anterior à posse eu fiquei bastante ansiosa, pensando como seria. Eu acordei umas 10 horas da manhã, estava com meu namorado. Minha mãe e minhas duas irmãs vieram de Itú [cidade a 100 km de São Paulo] para me acompanhar na posse.
Eu vesti uma roupa que era muito simbólica, que trazia as cores da bandeira do panafricanismo. Era um vestido lindíssimo, muito sofisticado e chique do estilista Isaac Silva, pensado pela ativista Neon Cunha.
A sensação foi de chegar em um espaço que deveria ser ocupado por nós mulheres, trans, travestis e pessoas LGBTs há muito mais tempo. E foi uma sensação também de vitória, de dever cumprido, porque a minha trajetória é marcada por muita exclusão e por muitas possibilidades de não chegar ali. Eu passei pela prostituição, pelas ruas, tinha muitas possibilidades de não chegar viva ao lugar onde eu cheguei. E chegar viva, como a mulher mais bem votada nas eleições de 2020 em todo país, com toda a minha trajetória, para mim era uma sensação de felicidade, de colheita dos frutos.
Esse meu passado sempre vem à minha cabeça. É uma coisa a qual eu sempre recorro, inclusive para me reafirmar, para ver quantas coisas eu preciso deixar no passado e quantas me fizeram ser quem eu sou hoje. Provavelmente, nesse dia da posse eu tenha lembrado do que passei com a minha mãe. E ver ela ali, me acompanhando, foi um momento bastante tocante.
“A sensação foi de chegar em um espaço que deveria ser ocupado por nós mulheres, trans, travestis e pessoas LGBTs há muito mais tempo”
Erika Hilton, vereadora em São Paulo
A recepção dos meus colegas foi muito tranquila. Foi até boa, eu diria. Existe um ou outro parlamentar do grupo bolsonarista, que são mais reacionários, que precisam se construir em cima de espetáculos, de polarização com outras figuras, que fazem discurso transfóbicos, atacam a bancada do PSOL e me atacam. Claro que houve falas na tribuna contra a luta do movimento trans, mas eu nem acho que seja por preconceito, acho que é uma tentativa de polemizar. Mas, de uma maneira geral, eu transito muito bem por todos os campos e consigo fazer política, consigo dialogar com setores que não tenho afinidade.
Nesses dois meses de atividades, o melhor dia foi quando eu aprovei a CPI da violência contra as pessoas trans, em 23 de fevereiro. Eu mal tinha chegado e já conseguia aprovar uma CPI, a primeira da história do PSOL na Câmara Municipal de São Paulo. A CPI vai fazer um trabalho investigativo, colher depoimentos, chamar a Secretaria de Direitos Humanos e ativistas para depor.
Eu espero deixar muitas marcas durante meu mandato. Espero construir um belíssimo legado. Ainda não temos um grupo para reunir todas essas mulheres trans e travestis que se elegeram pelo Brasil na eleição de 2020. Eu tenho contato com algumas. Conheço a Duda Salabert, a Linda Brasil, a Felipa Brunelli, de Araraquara... Mas eu acho que esse grupo há de nascer em algum momento, para que a gente possa se aproximar, se organizar, entender como é estar nesse lugar, e também para ter ações coordenadas, para que possam ficar mais fortes".
Créditos
Imagem principal: Pedro Maia/ Lucas Ávila/ Marcelle Cristinne