Dira Paes e as muitas mulheres que carrega na própria pele
Representante de tantos Brasis, a atriz paraense reflete sobre seus papéis na ficção, no mundo e o mais difícil deles: ser uma mulher do seu tempo
Sentada em um camarim bem iluminado, na companhia de um maquiador, uma Dira Paes de cara lavada — e radiante — abre a câmera para conversar com a Tpm enquanto se prepara para começar mais uma maratona de gravações de ‘Pantanal’ no Rio de Janeiro. Ela explica a sobreposição de compromissos: “É uma novela densa, com poucos personagens, e 170 capítulos. A gente já sabia disso, mas é muito prazer e muito trabalho”.
Essas não são, nem de longe, as únicas atividades de Dira no momento. Mãe de Inácio e Martin, ela também finaliza o filme “Pasárgada”, empreitada idealizada durante o auge da pandemia com o marido Pablo Baião, que é diretor de fotografia. E sonha com muitos projetos futuros — para si e para o mundo.
De fala eloquente, sorriso na voz e raciocínio ligeiro, a atriz nascida em Abaetetuba, no Pará, reflete sobre seus papéis na ficção, no Brasil e o mais difícil deles: ser uma mulher do seu tempo no mundo.
LEIA TAMBÉM: "Afeto também é luta", diz Gaby Amarantos
Tpm. Você tem mais de 37 anos de carreira, 53 de idade, e é vista como uma grande musa. Como é envelhecer publicamente na pele feminina?
Dira Paes. Acho que consegui, de alguma forma, acompanhar meu próprio tempo. Tento viver o agora e estar bem com isso. E quando eu falo “bem”, não é só fisicamente: tudo está integrado com o pensamento, as vivências e afetos, então me sinto o resultado de todas essas coisas. Não quer dizer que eu não veja minhas rugas, meus contornos. Estou de olho nisso também, mas isso não me escraviza. Sou feliz por viver assim e me sinto muito dona do meu tempo. De certa forma, principalmente quando você vê um filme de que participou, é como se tivesse a chance de reviver aquele momento. Artisticamente, sinto como se houvesse uma simultaneidade de décadas dentro de mim. Isso só é quebrado quando você olha a sua máscara e percebe que ela vai mudando.
Todas as Diras estão vivas dentro da Dira por causa da arte… Às vezes eu estou mudando de canal e me vejo em algum papel que fiz. É uma sensação forte, você não passa de canal. Eu vejo uma cena e acabo me reconectando afetivamente com aquele momento. É como se reencarnasse ali e vivesse o sentimento que estava experimentando quando aquela cena foi gravada. Pode rolar até a emoção como era. Acho que é assim na vida, né?
Pouca gente tem essa oportunidade. E poucas mulheres, sobretudo. Você já falou em outros momentos da satisfação por ser uma mulher amazônida tendo a oportunidade de andar pelo mundo com o seu trabalho. Como é ocupar esse espaço que você ajudou a criar? Sinto que estamos nos apropriando do nosso território. Quando comecei a atuar — e devido ao meu tipo de brasilidade, que naquela época não era tido como padrão de beleza — eu pude representar uma parcela da população que é muito esquecida. Pude ser uma brasileira de vários Brasis. Num primeiro momento da carreira, imaginei que isso pudesse ser meu algoz. E foi o contrário: virou meu grande privilégio ter a oportunidade de fazer grandes personagens que contavam um pouco da história desse país diverso. Foram 20 anos só de cinema. Então, quando eu fui para a televisão, já tinha uma segurança de qual era o meu propósito com essa profissão.
Eu não tive muitas mulheres para me inspirar como atrizes amazônidas bem-sucedidas, com uma brasilidade, porque atuo num mercado que obedece a uma noção universal de beleza que não é necessariamente a nossa. Só que acho que a regra do jogo mudou totalmente, e quem não se atualizou está perdendo o bonde, porque as coisas de fato mudaram para nunca mais voltarem a ser o que eram antes. Acho fundamental salientar que as mudanças estruturais são lentas. São exercícios diários, como escovar os dentes. Essas, a gente ainda não alcançou. O racismo precisa ser interrompido, as fobias de intolerância precisam ser interrompidas, a degradação da Amazônia precisa ser interrompida. A gente precisaria realmente de um corte e eu sinto que esse corte está no discurso.
Já estamos conseguindo verbalizar e organizar ideias sobre a de homofobia, transfobia, preconceito, equidade — palavras que não eram ouvidas. Isso já é minimamente difundido. O que a gente precisa agora é de exemplos de pessoas corajosas, que tenham a capacidade de falar com grandes públicos e traduzir a voz daqueles que não têm voz pública nem suas lutas consideradas pelo Estado.
Isso eu estou falando particularmente pelo que está acontecendo com a população da Amazônia, com os indígenas, essa crescente degradação. São questões também presentes em “Pantanal”, e temos podido fazer as pessoas pensarem nos biomas brasileiros. Condensar entretenimento e esses assuntos urgentes — do comportamento reprimido da mulher ao agronegócio – é muito gratificante.
Da Solineuza à Filó, o que você sente que mudou em você? Foram muitos personagens. Que vão da mulher sensual, a mulher contemporânea, até a rudeza e a força de uma mulher como a Pureza. Eu empresto muita coisa pra elas, aprendo muita coisa com elas e elas convergem. Sempre sonhei com essa capacidade de versatilidade, e tenho um certo orgulho de ter traçado meu caminho com independência, coragem e representatividade. Sei que trago essa referência para atrizes que estão começando — de serem nortistas e pensarem em ter uma carreira nacional e internacional — e sempre estimulo para que tenham uma autoestima capaz de conseguir acreditar que isso seja possível. Mudou muita coisa em mim porque meus desejos mudaram. Tenho muitos desejos inéditos, sou uma adolescente nesse sentido. E essa vontade de me reinventar.
Sempre vamos ganhando mais camadas ao longo da vida, e sua pele já vestiu muitas personagens femininas. Você vê luz no fim do túnel para os direitos das mulheres no Brasil? Eu acredito nisso, mas acho que temos sido sistematicamente estupradas nesses 500 anos. Faz parte do nosso DNA uma memória dessa prática no Brasil. Talvez a população brasileira, em grande parte, seja fruto de relações abusivas em que as mulheres não tinham a possibilidade de fazer suas próprias escolhas. Apesar disso, tenho esperança. Hoje em dia, esses casos, graças a audácia de uma gente como as enfermeiras que se uniram para denunciar um abusador e dos recursos audiovisuais que nos rodeiam, temos provas cabais de que isso acontece. O que os olhos veem, o coração sente.
Agora é importante usar esses recursos. As mulheres já podem ter consciência de que não estão sozinhas, que elas podem sim procurar ajuda, e que podemos ser vigilantes de nós mesmas. Não precisamos aceitar abusos ou opressões de nenhuma natureza. E também não precisamos aceitar a falta de equidade em nenhum sentido. Vivemos em um mundo liderado por homens brancos maiores de 50 anos, com raras exceções. Então a gente precisa falar disso, desse apartheid, não só de mulheres, mas também da questão racial, indígena. É um mundo que a gente precisa reconstruir praticamente do zero, acreditando numa guinada de rumo do país depois dessas próximas eleições, acreditando totalmente na potência desse país. E que um governo competente possa nos colocar nos trilhos do desenvolvimento e do crescimento sustentável.
Eu fico parecendo uma voz latente, mas é uma cidadã falando aqui. Quero até voltar a falar de arte, porque eu me sinto muito na obrigação de fazer com que o público entenda que existe uma urgência mesmo, mas ao mesmo tempo, sinto que as pessoas confundem isso com política. E não é política. Ser ativista não é uma vergonha, é necessário.
LEIA TAMBÉM: "A arte para mim é quase uma religião", diz Karine Teles
O fato de você ser engajada em causas progressistas, de gênero, ambientais, mais te atrapalhou ou ajudou a transitar na mídia? Te atrapalha para fazer publicidade, por exemplo? Não me atrapalha e eu nunca me importei com isso. Em quase todas as entrevistas que dei na vida, falei de Direitos Humanos. Essa sou eu. Sou isso antes de ser atriz, e faço isso porque sinto que é a minha obrigação como cidadã e como ser humano que gosta de gente, de bicho, de mato, de floresta. Gente que gosta de ver pôr-do-sol, nascer do sol, de sentir brisa, de comer fruta no pé. Essa sou eu.
Nesse caso, estar em “Pantanal” marca seu melhor momento artístico e pessoal? Não sei. A gente sempre quer o próximo, né? Aí quando fala que é o melhor, fica parecendo que não vai ter mais. Considero que é um momento especial e uma onda que precisa ser surfada com muita parcimônia, uma onda comprida, tem que ter fôlego para chegar até o final. Tem que ter astúcia. E é muito bom ter um trabalho como esse cercada de amigos tão queridos que te dão combustível para continuar, que trocam com você. É um privilégio ter um trabalho tão tocante nas mãos.
Como sou muito espontânea, acho que meu público me conhece. Assim vai ser, assim vai continuar e eu gosto de dialogar com o público como um todo. Gosto de ouvir quem pensa diferente de mim, não sou uma pessoa que não tenho argumentos, então aprecio o diálogo, os antagonismos. É sempre bom ouvir o diferente, mas não no caso que estamos vivendo hoje. Estamos vivendo o indefensável: o Brasil das armas.
Você disse, nas suas redes sociais, que a Filó, seu personagem de “Pantanal”, é uma mãe superprotetora. Em casa, também se pega fazendo coisas que prometeu nunca fazer quando fosse mãe? Outro dia, lembrei que sempre disse que quando fosse mais velha, nunca botaria os óculos na ponta do nariz. Prometi pra mim mesma tantas vezes, e ponho direto! Também pensava: “quando for mãe, nunca vou brigar com meu filho como minha mãe brigava comigo”. Mentira! Às vezes, o grito que dou é para colocar limites, até para que eles não se machuquem, mas tenho tentado ser controlada nos meus ânimos. Puxo uma respiração profunda e sigo.
Já na novela, essa relação com o José Loreto é maravilhosa, porque a Filó experimenta uma maternidade que está mais adiante, que ainda não experimentei. E a Filó é difícil num primeiro momento. Todo mundo tem uma referência de uma mãe brasileira, tia, avó ou madrinha como ela. É aquela pessoa que você pode contar a qualquer momento, que sempre tem um ombro, uma mão ou um chá para te dar, uma frase importante de você ouvir. Mas tem também uma reviravolta nos caminhos da Filó agora. Ela tem também suas camadas. Ela não ouve um “te amo” do homem com quem se relaciona, e muitas pessoas do Brasil também não dizem isso. Eu gosto também desse Brasil diferente daquele das redes sociais. A Filó é essa mulher que dá conta da vida como ela é.
Tem algum papel que você queria, mas ainda não viveu? Algum sonho guardado nesse coração adolescente? Tem, mas os sonhos secretos precisam ser mantidos. Pessoalmente, sempre me pergunto o que me deixa feliz, para aprender o que me realiza. Artisticamente, é experimentar o que ainda não fiz. Nem sempre aceito um trabalho por considerar aquele o melhor personagem, mas às vezes eu aceito para estar com as pessoas envolvidas naquele trabalho. Geralmente, esses momentos são surpreendentes. Tem sido o meu norte, isso tem me guiado e tem dado certo. Então eu vou continuar seguindo meus instintos, que é como uma boa onça faz.
Créditos
Imagem principal: Rennan Oliveira