Da arte de tirar o sutiã de uma mulher
Ou sobre como minha lesbiandade colabora para a educação de meus sobrinhos
Eu não planejei que aquilo acontecesse, nunca me vi nesse tipo de situação e muito menos sei dizer como começou, mas quando percebi estava explicando a meus dois sobrinhos mais velhos como abrir o sutiã de uma mulher sem que o clima seja quebrado. Era uma sexta-feira quente e ensolarada e tínhamos acabado de almoçar quando começamos a falar de namoradas e paixões. Eles devem ter feito um comentário que eu avaliei como machista, até para me provocar porque eles adoram cutucar meu feminismo, e me senti na obrigação de explicar algumas coisas. Quando notei, já falávamos de sutiãs e de táticas para tirar o sutiã de uma mulher sem que seja preciso dizer: “Dá para você virar para eu ver como abre esse fecho?”.
Terminamos de comer o melão e fomos para a sala de estar. Enquanto minha irmã se arrumava para voltar ao trabalho depois do almoço, eu explicava a eles que para uma mulher esse tipo de interrupção é quase sempre brochante, e que, por isso, deveriam evitar. Vendo que, diante da abstração, continuavam intrigados, gritei para que minha irmã jogasse do quarto, que fica no andar de cima, um sutiã.
“Nem a pau. Você pega minhas coisas e nunca devolve!”, ela uivou.
“Eu não vou levar o sutiã para lugar nenhum”, uivei de volta. “Preciso mostrar para os meninos como eles devem fazer para abrir o sutiã de uma mulher.”
“Eles sabem perfeitamente como abir um sutiã!”, gritou, agora movida pelo ciúme que deve invadir mães de adolescentes.
“Não. Infelizmente parece que eles não sabem”, respondi.
Em segundos, um sutiã caiu sobre nossas cabeças, junto com a frase “vê se me devolve!”.
Eu então vesti uma almofada do sofá com o sutiã e mostrei minha técnica, que eles julgaram impressionante, da mesma forma que, muitos anos antes, julgavam impressionante minha habilidade para
chutar a bola com as duas pernas, ou driblar ou chapelar. Anos mais tarde, não era mais o futebol que nos unia, e sim outro de nossos interesses comuns: as mulheres. Ter uma tia lésbica não é um negócio tão ruim, pensei.
Depois de exibir várias vezes a arte, e de detalhar algumas dicas, fui pegar um sorvete na cozinha e pedi que ficassem treinando, já imaginando o dia em que alguma namorada deles viria me agradecer tão sábios conselhos.
Deitar com uma mulher, ou beijar uma mulher, ou passar a mão no cabelo de uma mulher, ou implesmente encostar na mulher que se ama é um momento de tanta grandeza que podemos supor que ele seja iluminado pela mesma força que acendeu as estrelas, e eu gostaria que meus sobrinhos entendessem isso, e internalizassem essa ideia. Ou, como escreveu Proust, que eles entendessem que não se deve ir atrás do corpo de uma mulher, mas sim “da pessoa que mora dentro dele, com a qual só pode haver uma forma de toque, que é atrair sua atenção, e uma forma de penetração, que é a de colocar
uma ideia em sua cabeça”.
Movida por esse ideal, tento mostrar que somos esses bichos complicados, intrigantes e misteriosos e que nem todos têm a capacidade de nos elevar a um lugar de puro êxtase e prazer. Levar uma mulher para a cama é levar para cama uma multidão, e é preciso estar preparado para lidar com tanta gente, e com tantos medos, e com tantos amores, e com tantas dores, e com tantas paixões. Porque depois de tirar nossa roupa é preciso que nos tirem as camadas psicológicas de detritos impostos pelo mundo machista, misógino e cruel que fica do lado de fora e que acaba penetrando. Ao contrário de nossos colegas do sexo masculino, não nos desatrelamos dele tão facilmente. A pessoa que consegue eliminar essas camadas tem em sua presença o ser humano mais rico e complexo e intrigante que já passou por aqui: uma mulher em sua totalidade. E a totalidade de uma mulher é coisa demais – e talvez por isso relacionamentos lésbicos sejam sempre tão intensos e dramáticos; porque envolvem essas características potencializadas e a menos que você esteja dentro de um deles jamais terá noção de como um casal de mulheres tem a colossal capacidade de complicar todas as coisas, mas também a colossal capacidade de se entregar e de cuidar e de se envolver.
A verdade é que estar na presença de uma mulher em sua totalidade é ter a chance de alcançar alguma coisa divina e que fica quase escondida, mas por isso mesmo é tão rica, poderosa e gratificante. Não sei se há na vida prazer maior do que o prazer de dar prazer a uma mulher, ou o prazer de se elevar com ela a um lugar onde tudo passa a ter mais significado. Para que meus sobrinhos comecem a decifrar as tonalidades da alma feminina, e para dar a eles o que o mercado chama de “vantagem competitiva”, me dedico a passar informações de bastidores sempre que sou requisitada, o que ocorre com impressionante regularidade.
Vê-los se esforçar para entender a cabeça de seus objetos de desejo é dilacerante porque percebo como ficam perdidos diante de tanta complexidade, e como às vezes cansam de se aventurar a decifrar as senhas e entram em parafuso, exaustos de tanto matutar. Ou como quando finalmente conseguem encontrar o último número daquele código e, semanas depois, percebem ter havido uma alteração de senha, e outra vez começam a queimar sinapses em busca de uma porta de acesso. Acho que é nessas horas que meu telefone toca.
Não sei se posso julgar essa nova geração por Paulo e Antonio, mas a verdade é que parece que estamos
a caminho de um mundo melhor, mais sincero, menos dissimulado e mais apaixonado. Mas, acima de tudo, a caminho de um mundo no qual vamos nos dedicar uns aos outros sem tantos medos e travas, sabendo que essa viagem só vale se conseguirmos nos misturar em rituais cheios de envolvimento, de troca, de afeto e de respeito. Eu tenho em casa dois exemplares do gênero masculino que naturalmente têm alguns medos na vida, mas nenhum deles é o medo de se envolver ou de se entregar.
Vê-los se atirar destemidamente nesse enorme universo feminino, dando braçadas na direção de algum porto seguro sem ter certeza de que conseguirão alcançá-lo, me deixa apreensiva e angustiada, mas, acima de tudo, me deixa realizada porque sei que são homens que beberão essa jornada com tudo o que ela tem para oferecer. Porque no final, como disse o proustiano Barão de Charlus, “o importante na vida não é a quem amar, o importante na vida é amar”.
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com