Coragem, câmera e ação

Seis fotógrafas se encontram para registrar as misérias do mundo

por Karla Monteiro em

Elas vivem pelo mundo, de olho em lugares onde a desigualdade social grita. De seis países diferentes, Justyna, Newsha, Agnes, Marizilda, Lourdes e Benedicte – do coletivo Eve Photographers – fazem parte do mais alto time da fotografia documental

 


 

O encontro se deu por uma simples questão de ângulo. Em dezembro de 2005, o fotógrafo inglês Gary Knight, uma espécie de entidade da fotografia documental, fundador da agên­cia Seven e da revista Dispatches, sen­tou-se na frente de seu computador e dis­parou meia dúzia de e-mails. Ele tinha tido uma ideia: botar em contato seis fotógrafas que passaram por seus workshops. Gary sabia que daquele mato sairia cachorro. Muitas mensagens depois, nasceu o coletivo Eve Photographers. As meninas de Gary des­cobriram que olhavam para a vida com o foco voltado exatamente para o mesmo lugar: a desigualdade social.
Quatro anos depois, o Eve publicou suas imagens nas principais revistas do mundo – além de mostrá-las em ex­po­sições na França, Ucrânia, China, Japão, Camboja e Espanha. To­dos os anos, as fotógrafas escolhem um tema comum. O objetivo é do­cumentar sempre uma questão coletiva primordial. Em 2008, o foco foi água – e elas mergulharam. Cada uma contou uma his­tória de mau uso em um canto do planeta: Nigéria; Indonésia; Brasil; Malauí, na África; mar Cáspio, entre o leste da Europa e oeste da Ásia; e Índia. As fotos – que a gente mos­tra em primeira mão em páginas brasileiras – são dessa última maratona. Os te­mas anteriores foram maternidade e Aids.
As “eve girls” vivem por aí. Encontraram-se uma única vez, em um festival na cidade de Gijón, na Espanha, em 2006. Para manter o coletivo funcionando, fazem reuniões pelo Skype. Be­nedicte Kurzen e Agnes Dherbeys são francesas. A primeira mora na África do Sul e a segunda, na Tailândia. Marizilda Cruppe é a brasileira da turma, vive no Rio. Lourdes Segade nasceu na Es­panha. Justyna Mielnikiewicz é polonesa, radicada na Geórgia. E Newsha Tavakolian é do Irã, mas perambula pelos países do Orien­te Médio e da Ásia. No caldo cultural do grupo, como diz Gary Knight, reside o segredo desse bem-sucedido blind date.

Justyna Mielnikiewicz, 36
Justyna nasceu na Polônia, em 1973. Mas, desde 2002, vive na Geórgia. O fim da União Soviética e as guerras que vie­ram depois são influências marcantes no seu trabalho. “Fotografar é uma maneira de entender a forma como você própria enxerga as coisas ao seu redor”, diz. “Não estou certa se meu trabalho contribui para um mun­do melhor. O que procuro fazer é contar histórias que me importam. E rezo para que importem aos outros também.” Como freelancer, Justyna trabalha para as melho­res publicações do mundo, entre elas The New York Times e Newsweek. Mas diz que começa todos os meses sem certeza alguma de que vai conseguir pagar as contas. E essa instabilidade virou seu combustível. “Faço qualquer trabalho como se estivesse fotografando pela primeira vez”, conta a polonesa, que tem uma teoria sobre a diferença entre homens e mulheres na fotografia. Segundo ela, a única distinção é que meninos gostam mais de equipamentos do que meninas. De resto, disputam em pé de igualdade as imagens da vida: “Nunca me senti particularmente em perigo por ser mulher. Quando estou fotografando conflitos, me arrisco com todas as ou­tras pessoas que estão na cobertura”. Recentemente Justyna ganhou uma cicatriz no rosto, conquistada durante os recentes conflitos na Geórgia. “Bo­ba­gem”, desconversa ela, sem querer falar do assunto.

Newsha Tavakolian, 28
A iraniana Newsha Tavakolian nem chegou aos 30 anos e já pode ser considerada uma veterana da fotografia. Co­me­çou a trabalhar na imprensa do Irã com 16 anos. Em 2002, iniciou sua peregrinação documental por lugares como Iraque, Líbano, Síria, Arábia Saudita, Paquistão e Iêmen. Suas fotos estão em revistas como Time e Newsweek e jornais como The New York Times e Le Figaro. “Se você consegue mu­dar a vida de uma pessoa, o trabalho já pode ser consi­derado bem-sucedido”, diz. Sua última em­preitada foi, digamos, em causa própria. É tra­dição entre os mu­çulmanos empreender, pelo menos uma vez na vida, uma via­gem a Meca. Ela conseguiu uma permissão para fotografar por lá e pegou a estrada. “Parti carregada”, conta. Um dos tios a presenteou com um colar de contas. A prima costurou um ves­ti­do branco, cor usada em Meca. E um ou­tro tio deu a dica preciosa: “Não empurrar nun­ca, mesmo quan­­do me sentisse sufocada pela multidão”. O resultado é uma viagem espiritual contada em imagens. O fato de ser mu­çul­mana e mu­lher, se­gundo Newsha, não mu­da seu tra­balho. E diz que o Eve a ajudou a en­ten­der que gente é tudo igual: “Tra­ba­lhan­­do com mu­lheres de lu­ga­res tão diferentes percebi que somos muito parecidas. Apesar de geo­graficamente localizadas em lugares tão distintos, partilhamos as mesmas ambi­ções e pai­xões”.

Agnes Dherbeys, 32
“Tento ser cautelosa em qualquer si­tu­ação. Os lugares que estou são sempre tensos”, diz Agnes. Pa­ri­si­ense radicada em Bangcoc, a moça trabalha no Nepal, Ti­mor Leste, Camboja e Tailândia. E, de vez em quando, no Oriente Mé­dio. Começou a fotografar em 2001, quan­do se mudou para a Tailândia. Em 2004, embrenhou-se na cobertura do tsu­nami e pegou a onda da fotografia do­cu­mental, seguindo por um ano a vida dos so­breviventes de Phuket, a ilha mais a­tin­gi­da. O trabalho lhe rendeu vários prê­mi­os. Ironicamente, ela não estava segurando a câmera no mo­mento mais tenso que viveu. “Em 2003, na minha primeira cobertura em Gaza, nosso carro bateu de frente com o dos militantes do Ham­mas, que fugiam de um atentado”, lembra. “Tudo é po­ten­cialmente pe­rigoso.” Agnes só não gosta de sexismo. “A ú­ni­ca vez que me meti em encrenca foi pelo fato de ser des­cen­dente de asiáticos e não por ser mulher”, dispara. “Quando rolou a onda de protestos dos tibetanos, fui presa no Nepal porque pen­saram que eu era do Tibete. Mesmo com carteira de jornalista e passaporte fran­cês, fui levada. Os policiais nepaleses não são muito educados”, brinca. Agnes diz que aprendeu uma lição. Ou qua­se: “Preciso me manter quieta nos protestos. Mas as situações que presencio são tão passionais que talvez eu aja da mesma forma da pró­xima vez”.

Marizilda Cruppe, 40

Brasileira do interior de São Paulo e criada na baixada fluminense, Marizilda Cruppe só tinha um medo na infância: o pai perder o emprego. O fantasma da desigualdade a apavorava. Hoje, ela continua assombrada com as diferen­ças sociais. Seu grande projeto é destrinchar a Declaração Uni­versal dos Direitos Humanos. “Uma única pessoa ou fa­mília tem os seus direitos feridos em vários artigos. É um tema para a vida”, diz. Mari começou a fotografar por acaso. Cur­sou engenharia mecânica e queria ser piloto de avião. Como não ti­nha grana para bancar a empreitada, arrumou um emprego no jornal O Globo. E lá se apaixonou pela fotografia. Há 14 anos no jornal carioca, ela trilhou um longo caminho pelo “hard news” até descobrir o que queria: documentar – e não simplesmente registrar. “Queria ser invisível para me aproximar mais da re­a­li­­da­de”, comenta. Trabalhando Brasil afo­­­­ra e tam­bém com passagens por Índia, Co­­lôm­­bia, Congo, Antártida e outras prai­as, re­cen­temente ela figurou entre os 100 fo­­tó­grafos escolhidos por uma revista ja­po­­ne­sa para registrar o dia da posse de Ba­ra­ck Obama. O material vai virar livro e exposição itinerante. Entre os seleci­o­na­dos estavam nomes como o do inglês Mar­tin Parr. E as propostas não param. Mas Ma­­­ri­zilda é virginiana. Perfeição é o li­mi­­te. “Que­­­ro so­fisticar mais meu traba­lho. Para isso, preciso de mais tempo nas histórias.”

Lourdes Segade, 31

A espanhola Lourdes Segade, de Bar­ce­lona, trabalha para jornais como The New York Times, Internacional Herald Tri­­bu­ne e Chicago Tribune. E faz qualquer ne­gó­­cio por uma foto. Até deixar o na­mo­rado sozi­nho numa viagem romântica. No iní­cio do ano passado, Lourdes embarcou com Margué rumo a um famoso lago no Ma­lauí, um canto inóspito da África. Três dias antes de voltar para ca­sa, ouviu falar de uma mulher que havia sido feri­­da por um crocodilo. Com o aumento da po­lui­ção, os bichos não têm o que comer, então devoram seres humanos que dependem da água do rio Shire, o principal do país, para sobreviver. “Fiquei louca, estava justamente começando a trabalhar no tema água”, diz. Daí em diante, Lourdes empreendeu uma aventura. “Eu tinha co­migo apenas uma lente de 35 milímetros”, lamenta. Assim, percorreu por três dias as duras estradas do Malauí. Para chegar ao hospital, viajou seis horas numa van superlotada. “Des­co­bri que não era uma mulher e sim uma criança de 8 anos que já tinha sido liberada”, diz. No dia seguinte, Lourdes encarou 14 qui­lô­me­tros de táxi-bicicleta em direção à vila onde a menina vivia. E acabou en­con­trando a garota exatamente no Dia Internacinal da Água. A poluição das á­guas do rio Shire, que abastece 20 mil ribeirinhos, tornou-se a história que Lourdes perseguiu em 2008.

Benedicte Kurzen, 29
Benedicte nasceu em Paris e vive em Johannesburgo, na África do Sul. O currículo dela não poderia ser mais chique: graduação em história contemporânea e mestrado em se­­­­mi­ó­­­tica pela Sorbonne. A história com a fotografia começou em Israel, onde resolveu viver em 2003. Lá, ela se meteu na Fai­xa de Gaza e passou a cobrir o conflito para as principais pu­blicações do mundo. Entre 2003 e 2005, morou na estrada: França, Israel, Iraque, Egito e Líbano. “Fui mudando dras­ti­camente o meu jeito de trabalhar, da simples fotografia para a documental”, diz. “A transformação aconteceu quando um amigo me deu uma Rol­leiflex e um outro me convidou para participar de um projeto sobre vio­lência contra a mu­lher.” Em 2007, Benedicte se mudou para a África do Sul. O foco dela agora está por lá. Na série “Água”, ela partiu para a Nigéria e documentou a vida das mulheres do del­ta do rio Níger. Se­gundo Be­nedicte, mais de 50 bar­­­ris de óleo são produzidos por ali, mas a popula­ção continua “desespe­radamente pobre” e a vio­­lên­cia e o alcoo­lismo cres­cem sem pa­rar.


Vai lá:
www.justmiel.org, www.agnesdherbeys.com,
www.maricruppe.com,
www.lourdessegade.com,
www.newshatavakolian.com,
www.evephotographers.com

 

 

Crédito: Justyna Mielnikiewicz
Crédito: Lourdes Segade
Crédito: Marizilda Crappe
Crédito: Benedicte Kurzen
Crédito: Newsha Tavakolian
Crédito: Agnes Dherbeys
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