Precisamos falar sobre assédio

Acusado de estupro e assédio sexual de estudantes universitárias, historiador Paulino Cardoso comenta denúncias pela primeira vez. Advogadas criticam desdobramentos dos casos

por Juliana Sayuri Larissa Linder em

Paulino Cardoso era coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, no Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (Faed-Udesc). Era. No último Dia Internacional da Mulher, 8 de março, o professor foi acusado de assédio sexual por dez alunas – uma das acusações inclui estupro. A universidade abriu sindicância, a polícia instaurou inquérito e as manifestações ficaram marcadas pela hashtag #MeuProfessorAbusador.

Em entrevista exclusiva à Tpm, Cardoso comenta as acusações pela primeira vez. “Digo aqui com todas as letras: isso nunca ocorreu.”

A entrevista foi feita por e-mail, a pedido da fonte, que autorizou a revelação de sua identidade. As autoras das denúncias seguem sob sigilo.

A palavra dele

Em junho, a Polícia Civil de Florianópolis indiciou o professor por “perturbação da tranquilidade”: o delegado minimizou a acusação para uma contravenção penal de menor potencial ofensivo, que prevê pena de prisão simples (15 a 60 dias) e multa. A acusação foi acolhida pela promotoria e agora o processo segue no Ministério Público de Santa Catarina.

Em julho, o MP arquivou o outro inquérito, referente à acusação de estupro. Paralelamente, ainda corre uma sindicância interna na universidade, que tem sido prorrogada a cada 30 dias desde março. O trabalho é sigiloso e ainda não foi emitido nenhum comunicado.

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Cardoso diz ter recebido as decisões com “humildade, alívio e esperança”. “As denúncias não correspondem à verdade, aos fatos. Sempre tratei alunos e alunas, orientandos e orientandas, exatamente do mesmo modo, com o mesmo respeito, companheirismo e solidariedade”, afirma o docente.

Desde 1994 na universidade, o historiador presidiu a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e a Associação de Investigadores Negros da América Latina e Caribe. “Venho dos extratos mais pobres da sociedade catarinense e construí minha trajetória acadêmica pautada pelo trabalho, decência e respeito ao ser humano. Prefiro não acreditar que referidas denúncias têm a ver com as causas que sempre defendi, com o prestígio do Neab ou com o fato de que meu nome estava sendo apontado como candidatura natural à reitoria”, acrescenta.

Segundo as denúncias, o assédio teria acontecido nas sessões com o professor, a portas fechadas. Eram reuniões individuais do Neab, cujo gerenciamento, de acordo com Cardoso, era de conhecimento público: as decisões eram tomadas por um colegiado, e não pelo coordenador individualmente.

“Os critérios de admissão, concessão de bolsas e desligamento eram todos definidos por um coletivo, de modo que, ainda que eu quisesse, não poderia me valer de qualquer ascendência acadêmica ou algo do tipo para constranger alguém a fazer qualquer coisa”, afirma.

Segundo Cardoso, o agendamento era disputado: em 2017, o professor orientava, formal e informalmente, mais de 60 pessoas. As reuniões aconteciam em uma sala “minúscula”, na sua expressão, que serve de almoxarifado do laboratório.

“Sempre havia uma fila de pessoas esperando orientação. E mais, por conta disto, todas as estudantes entravam a qualquer momento na sala para pegar assinaturas e tratar de encaminhamentos. Aquela sala, onde mal cabiam duas pessoas, tinha a porta permanentemente destrancada e acessível por qualquer pessoa”, relata.

Uma das acadêmicas afirmou que o professor pediu para ela se sentar no seu colo certa vez – o que ele refuta: “A sala é tão pequena que eu tinha dificuldade de sair da minha cadeira para cumprimentar as pessoas, muito menos para alguém sentar no meu colo. Isso nunca aconteceu.”

O supervisor confirma que pedia um documento de “planejamento pessoal” para suas orientandas. Mas afirma que o documento era exigido para alunos e alunas indistintamente, como estratégia pedagógica para permitir aos universitários “identificar seus pontos fortes e fracos e, deste modo, definir metas acadêmicas, pessoais e profissionais”, monitorando a performance acadêmica especialmente de estudantes bolsistas. “Lembrando que esta técnica de gestão cooperativa possibilita articular interesses individuais e coletivos, definidos nos seminários de planejamento estratégico, avaliação semestral e avaliação anual que contava com a participação da direção da Faed e representantes da reitoria da Udesc”, pondera.

Segundo as denúncias, o docente buscava interferir na vida pessoal e profissional de suas orientandas, opinando sobre relacionamentos e rumos de carreira. Cardoso novamente nega: “Nunca busquei interferir na vida pessoal, mas sempre cobrei que fosse dada prioridade – em termos de tempo e atividades cotidianas – aos compromissos e prazos exigidos pelas atividades do núcleo. Isso implica em auxiliar as pessoas a organizar suas atividades no tempo. Sempre digo aos meus estudantes que o aluno do Neab é um aluno nota dez. Isso significa tempo para estar em sala de aula, estudar e realizar ações do núcleo.”

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Afastado, o docente recebeu manifestações de apoio, reunidas no blog Multiculturalismo. “O linchamento moral criou uma série de constrangimentos e embaraços no tocante aos meus relacionamentos profissionais dentro e fora da universidade. Destruiu minha sanidade psicológica e física decretando o meu afastamento por razões médicas, situação que ora me encontro”, conta.

Em acompanhamento psicológico e psiquiátrico, Cardoso não sabe quando voltará ao campus. “Meus médicos é que dirão quando estarei pronto para retornar.”

A palavra delas

“Todas lembraram de um detalhe: ele as abraçava, investia as mãos por dentro da blusa e acariciava as costas delas”, contou o delegado Paulo Henrique Ferreira, à primeira reportagem da Tpm.

“A Polícia Civil investigou exaustivamente tais denúncias, ouviu depoimentos, colheu provas e a conclusão foi que inexistem quaisquer provas de que tais carícias ocorreram. E digo aqui com todas as letras: isso nunca ocorreu. Abraçava alunos e alunas, é verdade, mas há uma abissal distância entre abraço e carícia. Se examinar os autos dos inquéritos, verá que geralmente os depoimentos não citam dia/hora e as depoentes não explicam porque não reclamaram logo após a ocorrência dos supostos fatos. Todas resolveram reclamar no mesmo dia, ao mesmo tempo”, declara Cardoso, questionado sobre os detalhes recorrentes nos relatos.

A advogada Isadora Tavares, que representa as alunas autoras da denúncia de assédio, discorda do argumento. Para ela, o medo de ser desacreditada e perseguida é constante nesses casos – por exemplo, estudo do Instituto Avon indica que 63% das universitárias assediadas preferem “deixar para lá” e não levar denúncias adiante.

Tavares também discorda da tipificação de “perturbação da tranquilidade” dada pelo delegado, que não identificou violência ou grave ameaça nos relatos. Para ela, trata-se de assédio devido à relação de hierarquia entre professor e alunas.

“Ainda há muito o que desconstruir para que o ordenamento jurídico seja mais justo com as mulheres. Especialmente porque temos uma maioria masculina nas casas legislativas. Eles definem o que são esses crimes que nós, mulheres, sofremos. É o que Simone de Beauvoir diz n'O Segundo Sexo: não se pode confiar totalmente nos homens pois por vezes eles são parte e juízes das situações, enquanto nós, mulheres, somos (ainda) apenas parte”, considera.

A advogada Daniela Félix, que representa a autora da acusação de estupro, aborda argumentos similares sobre o arquivamento da denúncia: “Esta decisão só reafirma questões concretas e que há muito os movimentos de mulheres contra as violências sexuais e de gênero apontam: o sistema de Justiça Criminal – compreendido entre agências policiais, Ministério Público e Poder Judiciário – é produtor e reprodutor de seletividade, machismo, misoginia e racismo. Estes elementos são estruturais e estruturantes, e nos cabe lutar contra isso, seja administrativa, judicial e politicamente”, diz, em nota.

Para a advogada Marina Ganzarolli, da Rede Feminista de Juristas, relatos femininos muitas vezes são desconsiderados. “Há uma série de estudos que demonstram como os depoimentos não são lineares e contraditórios – o que é absolutamente normal, pois vítimas de violência enfrentam estresse pós-traumático e suas complicações. Também é normal a demora para denunciar, pois é preciso criar coragem para enfrentar esse processo todo”, diz.

Ganzarolli assinala altos e baixos nos desdobramentos de denúncias de violência sexual nos campi.

Em agosto foi absolvido o ex-estudante de medicina acusado de estuprar uma estudante da USP, em 2012. Em junho, o professor acusado de estuprar uma aluna da UFG, em 2016, foi demitido após investigação do Ministério Público Federal.

“Avançamos, mas ainda tem muito chão pela frente. O custo para avançar é alto, pois sobreviventes de violência sexual frequentemente ficam anos sem resposta, da universidade e da Justiça. É frustrante. Por isso, como advogada e feminista, não digo que a vítima ‘deve’ denunciar nesta ou noutra esfera. Digo que ela ‘pode’: só ela sabe o que passou, e só ela pode decidir o que fazer.”

Ganzarolli recomenda conversar com alguém de confiança ou um especialista para lidar com o trauma. “Agressores sexuais são predadores. Se aconteceu com você, também pode acontecer com outras. Judicializar ou não, entrar com processo penal, civil ou administrativo é outro passo. A trilha é longa. E o mais importante é saber que você não está sozinha.”

Créditos

Imagem principal: Carolina Ito

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