Abertura de espírito

por Redação
Tpm #69

Depois de sete meses vivendo em Cuba, o cineasta Felipe Lacerda juntou as gravações que fez sobre o povo cubano e transformou na série de dez documentários Em Cuba

 
Bem ao estilo Glauber Rocha, com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, Felipe Lacerda, que co-dirigiu com José Padilha o documentário Ônibus 174, juntou uma câmera, um aparelho de som e partiu, em 1999, para Cuba – país que sempre o encantou. Os dez dias iniciais acabaram virando um mês. Voltou ao Brasil e semanas depois, foi chamado para ser orientador de tese da EICTV, Escola de Cinema cubana. E lá se foram mais 6 meses em Cuba. Sem tema ou formato definidos, Lacerda foi em busca do elemento humano, aspecto fundamental para entender as motivações do povo e retratar a nova revolução cubana. No ano passado, depois de deixar o projeto parado por sete anos, Felipe editou o material em dez pequenos documentários, que formam a série Em Cuba, exibidos toda terça-feira às 21h no Canal Brasil, até 16 de outubro.

Por que o interesse por Cuba? Dez anos antes de eu nascer, teve uma revolução em Cuba. Então, durante toda a minha infância eu vivi sob uma ditadura militar que foi instaurada em nome do combate ao comunismo, em nome de que o Brasil não virasse uma nova Cuba. Aquilo sempre me despertou muita atenção. A gente vive num país muito desigual, e Cuba tinha aquele ideário mais igualitário. Enfim, eu tinha essa motivação. Em novembro de 1999, eu tinha umas milhas e dez dias de férias, peguei uma câmera emprestada, um sistema de som e falei "Vou para Cuba”.

E como surgiu a idéia da série de documentários? Muito antes da idéia do documentário, não me interessava sair de casa pra ir ao mesmo museu, tirar a mesma foto que todo mundo tira em Cuba. Nunca me pareceu uma coisa válida em termos de turismo. Estava lá pelo interesse do ser humano. Queria conhecer quem era esse homem novo de quem falava Che Guevara, que povo era esse que tinha tomado coragem de ficar sozinho, contra tudo e contra todos. A gente recebe uma informação que é muito tendenciosa em relação a Cuba. Queria ter minha própria opinião. E pensei “Quem sabe eu não volto de lá com um vídeo de um minuto?”. Comecei a sair pela rua sem grandes compromissos, queria apenas conversar e entender qual era o espírito daquele povo. Sem querer fazer propriamente um julgamento. Queria escutar o que eles tinham a dizer.

Então, você não tinha um tema em mente para esses dez documentários? Foi surgindo conforme a edição? Conforme a filmagem, na verdade. O fato de não ter um tema não significa que eu era um porra-louca. Tenho o meu ponto de vista, tenho um foco. Preferir é preterir. No momento em que eu escolho manter a câmera em uma pessoa e desviar de outra, estou fazendo uma escolha de direção e montagem ali, ao vivo. Fui retirando da realidade os temas para fazer o material audiovisual, que ainda não sabia qual ia ser.

Cada documentário tem um tema delineado. O filme 35 minutos numa rua de Havana, por exemplo, é uma seqüência sem cortes. Sem cortes e sem perguntas. As pessoas me perguntavam e eu não respondia nada. Olhava pro meu técnico de som, mandava ele falar alguma coisa. A única palavra que ele falou, eu lhe dei um cutucão. Ele falou com a boca B-r-a-s-i-l, só isso e já me estragou um pedaço. Eu não gostei. Ficou uma sujeira temática ali.



E por que você escolheu esse recurso? Para tornar mais real, dinâmico? Não. A gente se impõe limites para ficar livre dentro deles. O limite te dá uma liberdade, não é uma prisão. Podia experimentar o que eu quisesse. O primeiro [filme], por exemplo, não tinha trilha. O segundo já tem um monte de música. Outros têm comentários, explicações na tela. O estilo varia muito. É uma coisa que eu falo, cada material tem sua verdade. Tentei ser fiel ao que estava impresso na fita.

No episódio do menino Eliá Gonzales [criança cubana que foi detida nos EUA após sua família morrer no mar em uma tentativa de imigração ilegal pela costa da Flórida em 2000], você foi o primeiro a acompanhar o caso. Fui a primeira pessoa no mundo a chegar lá. Eu registrei a pessoa saindo do carro e levantando o primeiro cartaz. Cheguei antes da CNN e antes da televisão cubana. Por um acaso ridículo: eu estava lá para filmar os garotos jogando bola. Justamente pela minha abertura, em que tudo para mim poderia ser tema, o que não é falta de foco, é abertura de espírito. Nesse filme fica evidente o meu interesse documental e a minha negação do jornalismo, porque tudo me puxava para fazer uma coisa jornalística daquilo. Não passou pela minha cabeça a idéia de fazer algo do mesmo gênero das cadeias de notícia. Registrei a manifestação e depois fugi do jornalismo. Fui registrar a periferia daquele evento: quem eram os motoristas que levavam aquela gente, quem eram os policiais que tomavam conta. O documentário não é sobre Cuba, mas sobre os cubanos. E o documentário não é sobre os cubanos, é sobre a relação de um documentarista brasileiro com os cubanos. É o registro de um encontro, em um certo sentido.



E no primeiro filme, Sobreviver calado também aconteceu outra coisa inesperada. Você acabou sendo preso... Fui detido, levado à delegacia para averiguações. Preso não é correto. Sou filho de pai e mãe advogados. Enfim, não é o caso. Ninguém me tocou a mão. Aconteceu de 17 vezes me pedirem documento na rua. O país já passou por quarenta anos de sabotagem. Motivo é o que não falta para eles serem paranóicos.

Como foi a conversa com Ricardo Arieta, o escritor que está meio desiludido porque os amigos foram embora e intitula o segundo documentário, O mundo e a vida de Ricardo Arieta? Eu me identifiquei muito com o Ricardo porque ele me pareceu muito carioca. No Rio de Janeiro ele seria um cara de Santa Tereza, em São Paulo seria um cara da Vila Madalena. Ele mora numa galeria de arte, vive meio de quebra-galho. Houve uma identificação visual e humana com ele. É como se ele não fosse estranho, não fosse cubano. De certa forma ele tinha essa proximidade. Achei os dilemas dele, a forma como colocava as coisas muito comoventes. Alguém que dá aula de poesia para crianças, mesmo sem receber, que diz coisas como “Eu tinha muitos amigos, mas hoje em dia está muito difícil. Meus amigos ou já foram embora ou estão desaparecendo”. Achei que ele era um cara bacana. Ele, mais do que todos os outros, me deu uma perspectiva pessoal e humana, em vez de uma análise de especialista.



Você fala bastante das mulheres de Cuba. As mulheres compõem 50% do mundo e talvez os 50 % mais interessantes. Aonde você vai em Cuba ganha uma cantada. Em qualquer lugar de Cuba, pelo fato de ser estrangeiro, você passa a ser desejado, pelos motivos mais escusos possíveis.

Você acha que elas têm uma idealização do estrangeiro? Idealização não. É como se eu saísse num bloco de carnaval fantasiado de passaporte. O estrangeiro é a maneira de sair daquele lugar. Existe um interesse declarado, que é absolutamente explorador. A pessoa fica apaixonada pela minha “estrangeiridade”. Situação bizarra, porque eu nunca foi desejado por ser estrangeiro.

No site da série, tem uma descrição do projeto como sendo um registro dos personagens da nova revolução cubana. Quais são as características de nova revolução? A revolução de agora está acontecendo a cada minuto. E é muito mais poderosa porque é muito mais irremediável. Ela vem de dentro para fora, vem do íntimo de cada um. Notei muito rapidamente que já havia dois mundos convivendo paralelamente em Cuba, a questão da dupla moral que várias pessoas falam. As pessoas têm uma cara no trabalho, têm outra cara em casa e com os amigos. As pessoas ficam até mais inteligentes, porque têm que ficar sempre espertas para surfar sobre todas as contradições do sistema. É uma bomba relógio no país, pois já está colocando nas pessoas o desejo do consumo. Isso coloca no ar a dúvida do que vai acontecer com a morte de Fidel. A revolução está acontecendo, só que ela não tem coordenação central nem direção, mas é uma crise que atinge o cerne dos valores.
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