A viúva do Chorão, Graziela Gonçalves, em um depoimento sobre seus dias de luto

Dois anos depois da morte de Chorão, Graziela Gonçalves – sua companheira por duas décadas e musa de canções como “Proibida pra mim” – decidiu falar

por Micheline Alves em

"O Alê, filha." Dona Sonia não precisou completar a frase. A filha, Graziela, entendeu o recado trágico, de certo modo já esperado. Alê, seu amor por 20 anos, não estava mais neste mundo.

Alê é Alexandre Magno Abrão, o Chorão, líder da banda Charlie Brown Jr., que morreu de overdose de cocaína aos 42 anos na madrugada de 6 de março de 2013. Graziela Gonçalves foi sua companheira por duas décadas, um relacionamento que teve altos e baixos e que estava em sua pior fase na época da morte do cantor.

Os dois se conheceram em 1993, namoraram por dois anos e meio, foram morar juntos por mais sete, se separaram, voltaram, casaram-se oficialmente – com cerimônia, festa e Zeca Baleiro cantando “Proibida pra mim”, grande hit da banda, inspirado nela. Separaram-se três meses antes da tragédia, quando Graziela “jogou a toalha”: não havia, nas palavras dela, como lutar sozinha contra o vício do marido.

Santista, 43 anos, apaixonada por esportes, estilista da marca de camisetas Moon, Graziela passou os últimos dois anos recolhida e sem falar com a imprensa. Quebrou o silêncio neste depoimento exclusivo, aqui dividido em dez partes que passam pela história do casal, a personalidade de Chorão, o sucesso e as crises da banda, o vício, as tentativas frustradas de tratamento, a morte trágica e a busca de um recomeço, ainda difícil. “Não sei se um dia essa dor passa”, diz. 

Depoimento de Graziela para o Trip TV

Garota de praia

Meu nome é Graziela Maria Xavier Gonçalves Abrão e tenho 43 anos. Nasci em Santos, em uma família classe média bem normal. Meu pai era fiscal do Crea (Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura) e minha mãe foi bibliotecária por muito tempo. Sou a mais velha de três irmãos. Robertinho é o do meio, Mariela, a mais nova. Tive uma infância livre, gostosa, pegava onda. Santos é uma cidade que tem uma cultura de música muito forte, então todo adolescente lá passa por isso: praia e show. Música e esporte estão sempre interligados. Fiz publicidade, mas não me formei. Depois fiz administração, também parei. Acabei me formando em moda mais tarde, pelo Senac. Sempre gostei de moda. Minha mãe costurava pra ela mesma, comprava revistas de moldes, até hoje tem máquina. Fiz muita roupinha de boneca. Um dia, eu queria muito um casaco, mas era muito caro. Pensei: “Quer saber? Vou fazer!”. E aí comecei a costurar.

O encontro

Santos é uma cidade pequena. Na minha adolescência tinha poucos lugares pra ir, todo mundo se encontrava no mesmo ponto. Numa noite dessas, conheci o Alexandre. Ele mudou de São Paulo pra Santos e era muito diferente dos outros meninos. Já chegou com skate no pé, carregando um som, cabeludo, sem camisa. Já tinha o apelido, Chorão. Pediu meu telefone, eu não dei, ele conseguiu com uma amiga. Um dia a gente se encontrou, ficamos juntos e não nos largamos mais. Isso era 1993. Ele já tocava no Charlie Brown, com o Champignon. O Alê me ganhou porque era o oposto do que aparentava. Tinha fama ruim, brigava, pegava a mulherada. Mas, quando se aproximou, foi muito fofo. Um cavalheiro com 22, 23 anos. Não era maloqueiro. 

Uma relação louca

Eu tinha receio, ele já tinha filho. Mas tinha coisas tipo me pedir em namoro pro meu pai. Virou queridinho da família. A gente namorou dois anos e meio, aí o Charlie Brown rolou de verdade e ele disse: “Tô indo pra São Paulo. Vamos?”. Pus umas roupas numa mochila e falei: “Mãe, tô indo embora”. Sempre fui independente, trabalhei desde os 14 anos. Moramos juntos por sete anos e nos separamos. Mas nem ele me deixava nem eu conseguia, uma relação louca. Eu morava sozinha, mas ele vivia em casa. Um dia, num jantar com meus pais, me pediu em casamento. A gente casou com uma puta festa. Ele já tinha sido casado na igreja, então nos casamos na ortodoxa. Entrei ao som de “Proibida pra mim”, na versão do Zeca Baleiro. O Nando Reis tocou na festa. Foi um sonho.

Mulher de rockstar

A primeira música da banda que ouvi no rádio foi “Proibida pra mim”. Alegria enorme! Mas acho que senti mesmo que a coisa era grande na primeira vez que ele viajou e eu fiquei em Santos. Pensei: “Caramba, a vida vai ser assim agora”. No começo eu ficava péssima. Mas nunca fui neurótica, ele era mais ciumento. Eu entendia que, como artista, ele estava na posição de receber assédio. Isso faz parte da cultura do rock, as groupies sempre existiram. Se tiver alguém num palco, vai ter alguém embaixo gritando “lindo!”. Fui a namorada que passou por todas as fases da banda. Participava, acompanhava ensaios, músicas, brigas. Tive uma relação boa com os meninos.

O começo do vício

Ele tinha a carapaça pra proteger um núcleo muito sensível. O apelido era apropriado: ele chorava bastante. A mistura da sensibilidade com a cultura de rua em que ele cresceu fez o contraste da personalidade. Um lado sensível e romântico, mas também um lado agressivo. Logo que eu o conheci, falei de um ex-namorado que eu tinha e que usava drogas. Pó. Eu odiava. Ele me disse que já tinha experimentado, mas que também odiava. Depois fiquei sabendo que rolava, de tempos em tempos, mas que não era uma constante. E ele tentava esconder de mim, porque sabia que a gente iria brigar feio. Ele teve fases durante a vida. O pai morre, a banda acaba, um monte de coisa acontece... oscilava, ia lá pra baixo. E tinha muita oferta. Testemunhei algumas vezes, em camarim: as pessoas querem fazer uma presença pro artista e acham que a vida dele é oba-oba. Que não tem família, filho, responsabilidade. 

"Ele tinha a carapaça para proteger um núcleo muito sensível. O apelido era apropriado: ele chorava muito"

Tentativa de cura

Uns quatro anos antes de ele falecer, piorou. Quando a banda se separou [em 2005, os integrantes romperam com Chorão. Em 2011, ele e Champignon reataram], falaram muita coisa feia sobre ele. Passava gente no nosso prédio xingando: “Chorão filho da puta!”. Tive síndrome do pânico, gastrite. E ele foi pro pó. Ele foi muito injustiçado. Se tivesse roubado dinheiro da banda, como diziam, por que os caras voltariam? O filho dele sofreu bullying, foi muita covardia. Ele não segurou a onda. No ano anterior à morte, ele estava muito ruim, com sintomas sérios. Eu falava pras pessoas: “Como vocês não estão vendo?”. Até que ele concordou em procurar ajuda. Tivemos indicação de uma médica incrível, que deu um remédio pra baixar a loucura da vontade, e pediu exames. Ele enrolou um mês e não fez. A gente ia uma vez por semana lá,  uma espécie de terapia. Um dia ele falou que não queria mais ir. E voltou com tudo.

Paranoia

No dia 11 de novembro fui ao dentista. Quando voltei, tinha um bilhete dele escrito “vou te amar pra sempre”. Fiquei perdida: “Como assim? O que aconteceu?”. Ele tinha paranoias pesadas quando estava ruim. E crises gigantescas de ciúme. Falou pro irmão: “A Graziela tá me traindo, tô saindo de casa”. Na verdade ele precisava de uma desculpa pras pessoas, porque estava saindo de casa pra ir cheirar pó em hotel. Ele me ligava dia sim, dia não. Eu pedia pra ele voltar, pra se acalmar. Ele dizia que não estava pronto. Nisso, todo mundo sumiu da minha casa. Ninguém ligava, tudo aquilo que era minha vida, as pessoas que faziam parte do meu círculo, todo mundo foi com ele. Com a galinha dos ovos de ouro, né? Eu era a chata que não queria que o cara usasse drogas. Um dia ele ligou e falou: “Eu tô ligando só pra me despedir”. Eu nem sei como subi a serra dirigindo. Tomei três Lexotans e fui no hotel. Andava com uma certidão de casamento na carteira, mostrei que era mulher dele e me deixaram entrar. Ele tava fora de controle. Quem conheceu alguém com esse problema sabe: parece que o cara foi abduzido, o olhar muda, tudo muda. Falei pra ele voltar pra casa, ele não quis.

Saindo de cena

Um dia, a produtora da banda veio na minha casa falar que não estava aguentando mais. Falei: “O único jeito é internar”. Liguei pro filho, pra ex-mulher, contei o que estava acontecendo. Eles me apoiaram. Fui até a clínica e a médica fez um laudo, que dizia que ele corria risco de vida. Com isso em mãos, fomos até o hotel onde ele estava, na alameda Santos. Mas um cara nos impediu de subir. Avisou o Alexandre que eu estava ali embaixo e nada deu certo. Aí eu joguei a toalha. Eu estava 10 quilos mais magra, sem comer, dormindo à base de calmante. Um fiapo de gente. Perdi a força. Sozinha, não ia conseguir nada. Precisava que o filho dele endossasse, precisava de apoio. Mas o Alexandre, muito inteligente, mesmo louco, ligava pra ex-mulher e pro filho dizendo que eu estava louca, que eu estava com ciúme. Ele manipulou as coisas. Esse foi o momento em que eu vi que ferrou. Depois disso, ele entrou um dia em casa e estava transtornado. De um jeito que eu tive medo. Pensei: “Preciso sair daqui, vai acontecer uma besteira”. Vi que tinha um apartamento no prédio da minha mãe pra alugar e me mudei em dois dias.

(A reportagem continua depois da foto)

Morte, herança, crise

Ele me ligou um dia antes [de morrer]. No momento em que ele morreu, eu estava sonhando com ele. Sonhei com ele se despedindo, falando que ia viajar. Aí a campainha toca, é minha mãe na porta: “O Alê, filha”. Fiquei 1 hora no sofá, sem falar nada. Em choque. Eu nem me lembro do velório direito. Estava com raiva de todo mundo, da banda, da família dele. Fui muito massacrada. Muita gente me xingando, dizendo que eu tinha abandonado o cara quando ele mais precisava. Ninguém fazia ideia do que estava acontecendo! Hoje em dia sou muito próxima da família dele novamente. O irmão me pediu desculpas por acusações que fez. Herdei muitos problemas. Tive que pagar dívidas que as pessoas que ficaram com o patrimônio dele sabem que não são minhas. Éramos casados com separação total de bens. A dívida da pista de skate [que ele construiu em Santos] quem pagou fui eu. Eu tinha assinado como fiadora, os aluguéis foram acumulando, um puta prejuízo. O que o Alê tinha ficou pro filho. Direitos autorais, os bens. Até tenho uma carta dele falando: “Se acontecer alguma coisa comigo, quero que divida tudo em três: você, minha mãe e meu filho”. De próprio punho. Mas isso não vale nada. Minha relação com o filho dele foi excelente a vida toda, mas mudou completamente depois da morte. De repente virou uma relação de inimigo. Não sei o que eu fiz de errado. Eu não sei. 

Um recomeço

Minha vida ficou sem nenhum sentido por um bom tempo. Fiquei muito perdida. Seis meses atrás tomei a iniciativa de fazer terapia, e comecei a reaprender a usar ferramentas que todo mundo tem pra viver. A coisa do amor próprio, que ficou muito baleado com o Brasil todo me esculachando, me culpando. E com pessoas que eu chamava de família me enfiando faca nas costas... Agora estou voltando, retomei a marca de T-shirts que tenho com a minha irmã, minha melhor amiga. Foi começando a surgir essa vontade de fazer as coisas. Voltei a ficar mais ativa, praticar esportes. Também criei lá em Santos o Coletivo do Amor, um projeto de lambe-lambe, com frases pra espalhar pela cidade. E agora existe o projeto de um livro, uma forma de exorcizar tudo isso. Não acho que eu saí do luto, estou no processo. Porque tem dias que ainda são muito difíceis pra mim. Às vezes é uma frase que eu vejo, é um cheiro que vem, é uma lembrança. Foi muito tempo. Imagina reformular 20 anos de lembranças e resolver esses 20 anos como algo bacana. Depois de dois anos, vejo o quanto foi especial e raro o que eu vivi. Até falo pra minha irmã: “Será que cada panela só tem uma tampa? Se for eu tô ferrada, porque a minha tampa já foi”.

Arquivado em: Tpm / Música