Esse magma que é ser mulher

Anelis Assumpção: "Em quase todas as situações de apuros, foi a mão de uma mulher que esteve estendida"

apresentado por Buscofem

A música é feminina. A palavra é feminina. A dança é feminina. A água, que é a fonte da vida, é feminina. A ancestralidade é feminina. A amizade é feminina. A terra é feminina. A luz é feminina. E feminina também é a sombra.

A trança entre todas elas faz os seres.

Quando eu nasci mulher biológica, iniciei meu destino. Nesse imediato instante em que uma mulher-mãe foi portal para minha existência, começa a jornada da minha vida. Como é a pessoa que eu sou e quero ser? Qual é a cor dos meus delírios? Quantos anos caberão nos meus dias de morte? São deveras milhares de porquês preenchendo esse meio tempo inteiro que se dá entre o átimo e o limiar.

Meu pai costumava dizer que esse período que chamamos de vida pode também ser interpretado como “Deus nos acuda'’. Eu achava graça disso, mas é aí que começam também meus questionamentos sobre Deus. Quem me acode? Quem nos acode? Em quase todas as situações de apuros, foi a mão de uma mulher que esteve estendida, venho percebendo ainda.

“Em quase todas as situações de apuros, foi a mão de uma mulher que esteve estendida”
Anelis Assumpção

Foi com as mulheres que aprendi a desenvolver um olhar que não se dá com os olhos. Não se trata de visão. A compreensão sensorial mais amplamente desenvolvida que determina que as mulheres são capazes de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, na verdade, é um exacerbado instinto de empatia em ação. Foi com o olhar parado em minha mãe sentada à beira da cama e chorando certa feita que me entendi uma mulher talvez pela primeira vez. Eu podia senti-la. Sentia sua tristeza. Chorei junto, sem entender a razão em si do desatino. No rosto dela escorriam duas lágrimas bem juntinhas.

Do meu ponto de vista, um bafo de sol incidia sobre as gotículas salinas me trazendo notas de diferentes azuis, cintilados no reflexo dos seus olhos. Logo as duas lágrimas bem juntinhas viraram um rastro seco. O rastro se encontrava com um rio de coriza prateado que saia do nariz e ligava os olhos à boca. A boca. Ali descansei meu olhar enquanto sua língua se preparava para o que em mim sugeria uma miniagonia ao umedecer p a u s a d a m e n t e os lábios sem proferir uma palavra. A palavra dela eram muitos "ais". A palavra de uma mulher silenciada por ser mulher somente. A palavra seca num enigma engessado. Ou era bruxa ou era bicho. Um apagamento de existência que eu pude sentir ali naquele corpo, naquele momento, naquele instante, mas que vinha de muito antes. A construção é feminina. A trilha da palavra me destinava, mesmo distraída que estava com seu sal. Talvez só quisesse falar de mar.

Posto de observação

Foi também observando minhas irmãs mais velhas a se relacionarem com seus pares que me entendi mulher e entendi a mulher que eu queria ser e me relacionar com meus pares. Adiante, observando minhas amigas e companheiras. Minha filha. Às vezes o feminino está só no coração, então não se pode ver no corpo externo, e foi com muitas delas que aprendi que nossos órgãos reprodutores são detalhes na conexão maior com esse magma que é ser mulher. E, nesse aprendizado, uma onda amplifica o se conhecer. É grata a sensação de visitar por dentro o que antecede este agora.

“A dor é feminina. Inevitável e necessária”
Anelis Assumpção

Assim como uma mulher-mãe foi portal de mim, me transformei numa mulher-portal para outros seres feitos de música, palavra, dança, água, ancestralidade, amizade, terra, luz e sombra. Dar à luz parece até o extremo do fim. Nessa trama, sou o fio que conecta esses polos, pois foi também vivendo a morte que me entendi mulher. A morte é feminina. Encerra doce o fruto que já não pode ser e aduba a terra para a semente que virá com o vento. Prolifera no bico de um passarinho o pólen que eterniza a cor de uma rosa. A dor é feminina. Inevitável e necessária.

Sou mulher, barco, navio. Sou a capitã e a tripulação. Sou a tempestade e a calmaria. Sou o destino do desatino entre a ilha, o barco e o oceano. Sou proa, vento e o horizonte, onde avisto em terras ontem a mulher que sou amanhã no mar.

Circular e adiante estou mulher numa esfera de memórias.

*Por Anelis Assumpção, cantora e compositora.

 

Créditos

Imagem principal: Mariane Ayrosa

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