Você me perdoa?

por Redação
Trip #222

A pedido da Trip, personalidades escrevem cartas de desculpas e tentam acertar as contas com o passado

 

De: Angela Ro Ro

Para: Meu pai e minha mãe

Meus queridos papai e mamãe!

Mesmo tendo eu sido impotente, e os fatos me levarem involuntariamente por caminhos perigosos e cruéis, quero oferecer a vocês, Ayenio e Conceição, meu sentimento de pesar.

Papai! Perdoe minha inocência, minha infância e pureza, minha desatenção com o prático e o material. Mil perdões por ter permanecido virgem sexualmente até idade avançada, por ter quase entrado em um

convento, por ser espancada diversas vezes, justo pelos seus colegas de profissão, e não ter me diplomado em matemática.

Mamy, mamãe! Tente compreender meu pesar por ter sido tão ciumenta, tão chorona, tão gulosa e preguiçosa. Tanto desperdicei chances de fortuna por meu desleixo relapso, cigano e hippie. Perdoe meu piano medíocre!

Sabendo que de vocês, mamãe e papai, herdei meu maior tesouro: a humildade simples de me amar para assim amar melhor.

Minha gratidão eterna,

Angela Maria

 

From: Rafinha Bastos

To: O casal de fãs Mariana e Roberto*

Esta carta começa com uma piada que contei por seis anos no meu antigo show: “Garçons perguntam coisas estranhas. Pedi que um embrulhasse o resto do meu hambúrguer e ele perguntou: ‘É pra viagem?’. E eu: ‘Não. Pra presente! Vou dar meio hambúrguer de Natal pra uma pessoa’”.

Agora vamos à história. Antes de trabalhar em TV aberta, fiz por dois anos um show solo em um teatro de São Paulo. Tinha um casal que assistia a quase todas as sessões e sempre me escrevia. Eu brincava nos e-mails que, o dia em que eu faltasse, chamaria os dois para fazer o show no meu lugar.

Depois de um ano de troca de e-mails eles pararam de enviar mensagens. Pensei: “Devem ter ficado de saco cheio de mim”. Após quatro meses sem contato, recebo um e-mail da Mariana. Ela contava algo que eu nunca vou esquecer: “Rafa, estivemos afastados de qualquer compromisso social nos últimos meses. Em maio, o Roberto sofreu um acidente de carro. Ele dirigia na estrada quando um caminhão fechou o seu veículo. O carro do Roberto se chocou contra a proteção da pista. Ele bateu forte a cabeça e perdeu a memória. Não existe maneira segura de apontar em quanto tempo a memória voltará e se voltará completamente. Ficamos assustados. Você não faz ideia de como é louco ter alguém que você ama ao seu lado e ele simplesmente não se lembrar de você. É desesperador. Ficamos no hospital seis dias e nada de ele se recordar de mim, dos pais nem de como executar tarefas simples. Na saída do hospital, no horário do almoço, o Roberto, sem fome, preferiu não comer. A enfermeira viu que o prato estava cheio e perguntou: ‘Roberto, você não comeu nada. Quer que eu embrulhe a comida?’. Ele respondeu: ‘Quero. Pra presente’. Foi ali que eu vi que teria o meu amor de volta”.

Essa história ainda me emociona muito. Toda vez que eu me envolvo com algum problema por causa do meu trabalho ou sinto que uma brincadeira minha foi interpretada de maneira equivocada, eu lembro dela. O efeito negativo do que eu faço é estampado na imprensa. Já o efeito positivo só quem sente somos eu e aqueles que gostam do meu trabalho. E isso pra mim é o bastante.

Ok, agora o editor da revista Trip pergunta: “Sim, amigo, e o pedido de desculpas? É sobre isso que pedimos para você escrever”. Bem, eu explico. O texto acima, enviado pela Mariana, é, na verdade, a minha lembrança da mensagem. Por quê? Porque eu formatei o meu computador e perdi o e-mail. Pior: troquei de provedor e perdi o contato com o casal. Sim, sou um idiota. Lembro que, no final da mensagem, Mariana me fazia um pedido. Ela queria que eu enviasse um vídeo parabenizando o Roberto pela recuperação. O problema é que não tenho mais como contatá-los. A verdade é que eu deveria ter cuidado melhor da mensagem. O resultado é que eles nunca receberam o tal vídeo. Por isso, EU PEÇO DESCULPAS.

PS 1: Sei que essa história parece um conto piegas, mas eu não teria criatividade para criar algo do gênero. Sou comediante e não roteirista de novela. A história é verídica.

PS 2: Se você conhece esse casal, por favor, repasse a mensagem e peça que entre em contato comigo. Eu PRECISO gravar e entregar esse vídeo.

PS 3: Outlook nunca mais.

*Nomes fictícios

De: Lygia da Veiga Pereira

Para: Meu pai

Meu pai querido,

Hoje passei em frente ao restaurante onde almoçávamos juntos quando você vinha a São Paulo e chorei… De saudades, de pena dos desencontros, do tempo perdido que agora não tem mais volta. Na última vez eu acabei desmarcando, estava com meu dia muito corrido. Acho que você queria se explicar sobre aquele último episódio familiar lamentável. Me lembrei de uma conversa que tivemos, quando fui tão fria, cinicamente racional, e não te dei a oportunidade de falar como se sentia, de falar a sua verdade. Ali perdi o título de “a filha que seu pai escuta”, dado pela mamãe e evocado quando ela pedia ajuda para interceder “pelo seu bem”. Devo ter me tornado uma chata.

Hoje posso te entender. Que opção você tinha senão se afastar? Ao longo dos anos, você foi sendo cada vez menos valorizado por nós. Criticávamos suas amizades, sua forma de filantropia, sua ideias, sua falta de atuação na nossa empresa. Não enxergávamos mais sua cultura, seu interesse pelo mundo, seu senso de humor, seu charme. Devia ser insuportável se ver refletido nesse espelho deformador que nós nos tornamos. Era inevitável que, quando você encontrava olhares admiradores em outras pessoas, era com essas que queria conviver. Era questão de sobrevivência.

Sinto tanto por ter perdido de vista quem você era... Eu sem seu olhar sempre encantado e amoroso e minhas filhotas sem o avô bacanérrimo que você era e seria cada vez mais para elas. Mamãe está bem, agora tem um namorado que supre sua necessidade de se sentir querida e necessária. Mas sempre que estou com eles, por comparação (é inevitável), me dou conta do quão especial você era, que cara interessante, sedutor, divertido, cheio de energia de vida. Por que isso tudo ficou embaçado na relação familiar?

Não sei direito como esses últimos anos poderiam ter sido diferentes. É fácil enxergar isso tudo de longe, mas na embolação do dia a dia não era possível. Se é algum consolo, eu me reconciliei internamente com você. Entendi o sentido do “Perdoa-me por me traíres”, e isso me ajuda a construir uma relação saudável em meu casamento. Guardo o seu melhor em mim com a maior alegria e orgulho, e te mantenho vivo para suas netas em histórias, valores e gosto pela vida.

Te amo, pai.

Lygia

De: Bárbara Paz

Para: Minhas três irmãs

Quando eu me despedia da cidade, escutei vocês me chamando para um último abraço. Mas percebi que era um só ruído dentro da minha cabeça e as lágrimas escorreram pelo rosto.

A única coisa que tinha sobrado após a morte da mãe foram biscoitos e salsichas. Foi o que comi durante o mês que antecedeu a minha viagem. Sabendo que ela seria sem retorno e duraria 18 horas, comecei a economizar os biscoitos ao longo dos dias.

Hoje eu perdoo você, minha irmã número três, por ter trancado o armário e não ter dividido a comida. Sei que não foi de propósito, você não sabia o que significava a minha viagem. Perdoo vocês três, minhas irmãs, por não me ligarem e não me procurarem depois que a mamãe se foi. Vocês esperavam isso desde o meu nascimento. Quando eu nasci, ela caiu enferma e assim ficou durante os 17 anos até sua partida. Perdoo vocês por terem se desligado de mim, não trazerem comida, não se preocuparem com aquela que vivia com medo e desesperada naquela casa vazia.

Eu perdoo vocês por não terem me dado esse último abraço. Sei que vocês tinham família, filhos e coisas mais importantes a fazer e precisavam vender a casa para dividir a herança. Eu era apenas uma adolescente de 17 anos que passou a vida cuidando dessa mãe enferma. Sempre demonstrei ser uma criança forte, independente, mas, no fundo, eu era apenas uma criança, que também perdeu o pai muito cedo.

Eu perdoo vocês porque hoje, passados 20 anos, aprendi que cada um precisa construir sua própria história. Pais, irmãs e outros familiares podem servir de apoio, mas, quando não os temos, temos a nós mesmos. Ser jogada no mundo fez de mim um ser humano melhor. Me tornei uma gladiadora, lutando sempre pela minha sobrevivência. Sei que vocês também estão na luta.

Beijo da caçula,

Barbinha

De: Ricardo*

Para: Minha avó e todos os que foram vítimas da violência dos Carecas do ABC

Nos anos 80, fui integrante da tão falada gangue Carecas do ABC. Em quantos cidadãos eu bati? Trezentos? Não sei, não tenho ideia. Foram sete anos nessa vida, brigando 250 vezes por ano. A gente andava com machadinha, soco-inglês, faca. Mas as brigas geralmente eram de punho mesmo, coisa de homem. Todo dia eu treinava boxe, jiu-jítsu e caratê.

Todo mundo associa os Carecas do ABC aos skinheads. Mentira. Eles eram nossos piores inimigos. A gente era nacionalista. No meio dos dois grupos rivais havia preto, nordestino. Só não havia gay porque a gente dizia que só brigava com macho. O que diferenciava era a suástica que os skins usavam, o visual era o mesmo. Duas matilhas de pit-bull prontas pro ataque.

Skinheads, punks, góticos, rockabillies, uns sujeitos que usavam uma cruz de ponta-cabeça e eram chamados de anticristo... Nosso foco era bater em todo mundo. Eu chegava em casa com a roupa rasgada, cheia de sangue. Quando vi, tinha perdido minha personalidade. Me tornei um animal.

A briga que mais me marcou foi num show de rock na rua promovido pela prefeitura de Sandro André. Veio um garoto normal, bem-arrumadinho, totalmente pacífico. Até tentei salvar e disse: “Meu, corre daqui, você vai apanhar”. Não deu tempo. Quatro ou cinco batendo num garoto que você via que não era da violência. Aquilo começou a fazer minha consciência pesar. Mas o movimento era difícil de entrar e quase impossível de sair.

Naquela época, minha mãe, meu pai e meus irmãos já tinham medo de mim. Eu fui criado pela minha avó e ela ficou sabendo que o primeiro neto dela, o que ela mais gostava, tinha virado um marginal. Então veio me ver em Santo André e falou: “Arruma suas coisas que eu vou te levar embora”. Aquilo me doeu. Eu tinha tanto amor por ela que não soube ser aquele monstro de sempre. Na hora a voz não saiu, a perna tremeu. Voltei pra morar na zona norte com a minha avó, que foi me lapidando pra me tornar um cara 100%. Quero pedir desculpas a ela e a toda a geração dos anos 80 que bateu de frente com os Carecas do ABC.

Ricardo

*A pedido dele, não divulgamos seu sobrenome.

 

De: Valesca Popozuda

Para: Papa Francisco e Igreja Católica

Venho me desculpar com toda a Igreja Católica. No dia do conclave, fiz uma brincadeira no Twitter falando sobre a fumaça preta que era lançada. Sabia que fazia parte de uma cerimônia tradicional, porém fiz uma piada que em minutos foi reproduzida e muitos riram. Quero também pedir perdão ao papa, quem sabe pessoalmente, quando ele vier ao Rio, pois as músicas que eu canto contêm muito palavrão. Eu uso roupas muito curtas nos shows e eu sei que isso é errado segundo a Igreja. Mas faço isso como um trabalho e, se até Maria Madalena foi perdoada, eu espero ser também.

Valesca


De: Rabino Henry Sobel

Para: Leitores da Trip

Quando me tornei rabino, eu era muito intolerante comigo mesmo. O autojulgamento era severo e o sentimento de culpa, duradouro. Até que me conscientizei de que o rabino também é um ser humano e, portanto, falível. Sofri na pele as consequências de um erro cometido em 2007 nos EUA, que é de conhecimento de todos. Até hoje eu trabalho internamente para compreender e aceitar o meu ato. Eu tento me perdoar, mas não é fácil.

Perdoar não é esquecer. Se fosse, não haveria mérito no perdão. Perdoar é reconhecer a falta cometida, analisar a situação e desculpar conscientemente o culpado. Sem penalidades, sem recriminações, sem ares de superioridade. Perdoar é o ato de reconstruir o relacionamento original, uma tentativa de recuperar a “inteireza inicial” e a determinação de procurar um começo mais bem-sucedido.

Rabino emérito Henry Sobel

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