Utopia aqui e agora

O fracasso das utopias levou essa palavra a ser entendida como inviável, fora da realidade

O fracasso das utopias levou essa palavra a ser entendida como algo inviável, fora da realidade, negativo. Com isso, ninguém mais imagina um lugar bom para viver com medo de não ser levado a sério pelas pessoas que detêm o poder

 

Caro Paulo,

 

Repare nestes quatro fatos:

1 Estou na praia de Itamambuca passando um fim de semana fechado com 17 integrantes da liderança do grupo AfroReggae: Junior**, João, Feijão, Betho, Johaynes, Rafael, Salazar, meu filho Tiago, Altair, Fofinho, Reginaldo, Vitor, Dani, Isabel, Luciano, Anderson e Duda. O assunto é o futuro do AfroReggae e como vamos chegar lá. Algo que as empresas chamam de planejamento estratégico.

2 Durante os trabalhos recebo e-mail do Lino contando o tema desta Trip para eu fazer a coluna: urbanismo, arquitetura, sustentabilidade.

3 Nos últimos 30 dias estou lendo A história das utopias, escrito em 1922 por Lewis Munford, um dos mais importantes arquitetos e urbanistas do século 20.

4 O COP15 acabou sem um acordo consistente, e o nosso planeta continua ao sabor das soberanias nacionalistas e individualistas, que teimam em não reconhecer a interdependência entre todos os países na gestão das condições para termos uma boa vida na Terra.

Agora você me pergunta: o que utopia, AfroReggae, urbanismo/arquitetura/sustentabilidade e COP15 têm em comum?

Tudo.

O Lewis Munford tem sua ideia de utopia: “Utopia é a vida real, aqui ou em qualquer outro lugar, levada até o limite das suas possibilidades ideais”.

Ele diz que até hoje as utopias não deram certo porque estavam desvinculadas de um lugar real. Eram imaginação de um lugar ideal sem fundamento no real.

O AfroReggae dá certo porque nasceu das possibilidades ideais de um lugar real, a favela Vigário Geral, Rio de Janeiro. Havia um lugar com uma comunidade destruída na autoestima que alguns utópicos resolveram mudar para melhor. Este é um trecho do seu manifesto:

“O homem continua desumano. Tudo parece sob medida para dar errado. Mas há utopia. Loucos insistentes acreditam na transformação. Somos AfroReggae.”

No COP15 não há utopia. Há apenas um lugar com uma humanidade dividida por países distribuindo culpas e dívidas históricas enquanto o planeta se torna um lugar ruim para viver, uma cacotopia.

O problema é que o fracasso das utopias até hoje levou essa palavra a ser entendida pelo povo como algo inviável, fora da realidade, negativo.

Com isso, ninguém mais imagina um lugar bom para viver com medo de não ser levado a sério pelas pessoas ditas sérias que detêm o poder.

Assim, a sustentabilidade vira lição de casa desagradável e não um desafio criativo para a ciência, a tecnologia, a arte e a filosofia.

Precisamos de utopia – sonho, fé, arte, talento, competência e audácia – para erotizar a sustentabilidade e fazer com que o dever de casa se transforme no desejo de casa. Casa boa, lugar bom para viver.

Acredite, a força transformadora do AfroReggae está nessa maneira erótica com que ele luta para melhorar os lugares onde vive, seja uma favela, uma cidade, um país ou um planeta.

Rituais dementes
Em 1962, ano de reedição de seu livro, o urbanista Munford escreveu: “Com um pouco desta fé e audácia poderemos ainda desarmar as inteligências castradas que se preparam agora para mascarar a sua insanidade e impotências políticas num sacrifício de toda a vida aos seus rituais dementes e aos seus Deuses Nucleares. Nessa vitória, se a alcançarmos, não procuraremos a utopia num horizonte histórico de um futuro longíquo, e muito menos na Lua ou num planeta remoto. Encontrá-la-emos nas nossas próprias almas e na terra, debaixo dos nossos pés, ainda disponível para alimentar as forças da vida e do amor, e para restaurar no próprio homem o sentido de suas potencialidades mais que humanas”.

Pena que Munford não conheceu o AfroReggae para saber que ele estava certo.

Tenho orgulho de ser AfroReggae.

*Ricardo Guimarães, 60, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é rguimaraes@trip.com.br

** José Junior, coordenador geral do AfroReggae, recebeu o Prêmio Trip Transformadores em 2008.

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