por Décio Galina
Trip #166

Veja o que rolou com o Favela Surfe Clube, vinte anos depois da primeira visita da Trip

Vinte anos após uma das primeiras reportagens de repercussão da Trip, voltamos ao morro do Cantagalo, no Rio de Janeiro, para saber o que aconteceu com as promessas de 1988 do Favela Surfe Clube, registrar quem são as novas apostas para as próximas décadas e acompanhar as filmagens do documentário Rio Breaks

 

Por Décio Galina   fotos Beto Paes Leme

Oito da matina, garoa no Arpoador. O vento leste dá esperança que o céu cinza logo turve outras esquinas e o sol dê as caras para pintar o Rio de Janeiro como deve ser. Tiola, de 36 anos, presidente do projeto social Favela Surfe Clube, lidera a molecada com prancha debaixo do braço que acordou cedo em Cantagalo, desceu o morro rumo às pedras que separam Copacabana de Ipanema e agora aguarda o início de um dia que promete ser histórico. Tiola e sua patota, de fato, não dão muita bola para o teto opaco do primeiro sábado de abril. Estão focados nas próximas horas, nos momentos especiais que compartilharão o frio do mar com o ídolo big rider Carlos Burle, cenas que entrarão para o filme da vida de todos e que também irão compor o documentário Rio Breaks.

Dirigido pelo norte-americano Justin Mitchell, o documentário é uma co-produção internacional da Foward Entertainment, de Nova York, com a Prodigo, de São Paulo. A produção e o roteiro ficaram sob responsabilidade do gaúcho Vinicius Schneider Medeiros, o Vince, que escreveu uma matéria para a revista Surfing, em 2001. Tal artigo serviu de embrião do filme, que mescla cenas do cotidiano de Cantagalo, Pavão e Pavãozinho com imagens dos meninos rasgando as ondas do Arpoador e da Barra. A película deve ter 80 minutos e o lançamento está previsto para até o fim deste ano.

Tiola só perde o foco nas filmagens do dia quando pega um xerox em preto-e-branco de dez páginas trazido pela reportagem da Trip. Passa a vista nas primeiras fotos. E pára. Na hora, sua expressão facial se altera completamente. Denílson Estácio Cruz, o Tiola, não estava mais ali. Embarcara numa viagem no tempo. A mente mergulhada nas lembranças de 20 anos atrás. Os olhos estatelados na matéria "Morro de emoção", publicada pela Trip em abril de 1988, há 158 edições. É como se não sentisse mais a chuva fina, nem o vento, nem ouvisse o barulho dos moleques zoando uns com os outros. Nesse instante, mesmo sem pedir, Tiola é atirado em uma retrospectiva que põe em xeque seus ideais, seu desejo de, com o surf, deixar as crianças longe do errado. "Da turma que pegava onda nessa época, sobraram eu, o Rogério e o Pretão. A gente tenta servir de exemplo. A nossa luta não é fácil não. Está certo que só entra para o tráfico quem quer, eles deixam a gente fazer o nosso trabalho, mas muitas vezes o jovem não tem condição de conseguir nada, e aí quer ter as coisas. Vaidade demais atrapalha."   

A prova cabal das palavras de Tiola está na ponta do seu dedo indicador, que percorre os personagens da matéria de 88. "Esse é o Paulo César ‘Doidão': pegou 12 anos de cadeia e acho que sai ano que vem; esse é o Jorge, foi para o tráfico, virou evangélico, depois sumiu para os lados de Jacarepaguá; esse é o Bochecha, a grande revelação do morro. Surfava muito. Chegou a ser campeão carioca, ganhou outros títulos, mas acabou cedendo para o ‘outro lado', tomou um tiro de fuzil na perna num tiroteio entre grupos rivais e hoje não anda sem ajuda de muleta ou cadeira de rodas. Nunca mais vai dropar uma onda. Lembro dele sendo retirado de maca, com a perna pendurada. Pensei que estivesse morto." Tiola interrompe-se. Parece que agora sua memória pinça momentos em que tudo ia bem para Bochecha e os amigos. Parece buscar o exato dia em que o caldo entornou e a ameaça venceu o braço-de-ferro com o caminho do bem. Parece não acreditar que 20 anos passaram assim, como um estalo - e ele, de novo, tem nas mãos revelações do surf, como o pequenino Anderson, de 7 anos, o Pikachu.

 

Estrela cadente

Rogério Silva, de 37 anos, vice-presidente do Favela Surfe Clube, e Alexandre da Silva Carvalho, o Pretão, de 36, diretor técnico, seguem firmes e fortes ao lado de Tiola desde as primeiras ondas do projeto, há duas décadas. "Faz uns quatro meses que retomamos a direção do trabalho", conta Pretão, que, além de pintor de parede e professor de surf das crianças da comunidade de Cantagalo, dá aula de surf para 18 executivos cariocas cobrando R$ 50 a hora. "Também estou envolvido na organização do WQS no Rio de Janeiro." Pretão planeja realizar este ano o
1º Circuito Favela Surfe Clube, um campeonato com três etapas, todas corridas no Arpoador, com 124 participantes por etapa, a um custo de R$ 20.920. "Terá tenda, juízes, troféus, uma estrutura completa para uma competição aberta para atletas do morro e do asfalto, com a intenção de descobrirmos novos talentos. Temos boas chances de conseguir patrocínio, mas ainda existe muito preconceito e racismo", garante o diretor técnico.

Assim como Tiola, Pretão entrou no túnel do tempo ao ver a matéria de 88, assinada por Fernando Costa Netto, com fotos de Marcos Prado (que se tornaria anos mais tarde o diretor do documentário Estamira e produtor do Tropa de elite). Ele aparece ao lado de Bochecha na pedra do Cantagalo, que fica atrás do Brizolão, com uma belíssima vista da lagoa Rodrigo de Freitas ao fundo. "As recordações são positivas", comenta, pensativo. "Lembro que vimos uma estrela cadente e que fiz um pedido para ter saúde sempre." Sobre o desenrolar trágico da vida de alguns parceiros da época, Pretão diz que não sente aperto no coração. "Quem faz nosso destino na Terra somos nós mesmos. Sempre existem dois caminhos e cada um escolhe o que quer da vida. Não dá para ficar colocando a culpa de tudo na sociedade."

Ao comparar a situação do grupo de surfistas do morro em 88 com o quadro atual, Rogério avalia que antigamente "a união da galera era incrível" e que agora "estão todos mais dispersos". A proposta do projeto, então, é criar uma rede de influências que deixe os pais das crianças tranqüilos mesmo quando eles estiverem longe do mar. "Não tem como ficar 24 horas em companhia da criança. O negócio é formar uma tribo, um grupo de amizades que um freqüente a casa do outro: assim, se o moleque não está na praia, nem na escola, está na casa de um amigo da turma", explica Rogério, que, entre outras funções, também conserta as pranchas doadas para o projeto - existem cerca de 20 no estaleiro.

Nos primórdios do projeto, quando ele ainda se chamava Surfavela, coube ao empresário Marcelo Silva a doação das primeiras pranchas. "Vi a molecada do morro cheia de estilo no Arpoador e fui oferecer as minhas pranchas da marca Fluxor. Foi engraçado porque eles ficaram preocupados em aceitar, pois, se aparecessem com uma prancha nova em casa, os pais achariam que era roubada", conversa Marcelo, hoje com 44 anos e se preparando para dar uma volta ao mundo de bicicleta durante três anos. "As quatro primeiras doações foram para o Pretão, Jairo Pezão, Camelinho e Bochecha, para quem eu fiz uma 4'8". A evolução do Bochecha foi brutal. Ele pintou e bordou com uma outra prancha, uma 5'3", conquistou o campeonato carioca vencendo quatro das seis etapas, com direito a dois tubos na bateria final do Sea Club, na Barra. Inesquecível."

A importância do Favela Surfe Clube fica mais evidente quando se investiga a origem de um dos principais nomes profissionais da atualidade: Simão Romão. Ele nasceu em Mesquita, subúrbio do Rio de Janeiro, e precisou do apoio do irmão para l evá-lo na viagem de duas horas rumo ao Arpoador: pegava trem até a Central do Brasil depois o ônibus 125 para a General Osório. "Ficava o dia inteiro na praia e a galera do Cantagalo começou a gostar de mim. Eu vi o Bochecha surfar. Ele surfava pra caramba e decidi que queria ser como ele. Aí, o Pablo, o garoto que ganhou o concurso do Fantástico para ir conhecer o E.T. nos Estados Unidos, me emprestou a prancha dele e eu fui pegando o jeito", revelou Simão por telefone, no dia 11 de abril, quando disputava o WQS na Austrália.

"Tiola e Pretão foram os caras que me abriram os olhos, mostraram os caminhos e falaram que viver do surf seria difícil, mas que assim eu ia conseguir sobreviver." Mais do que seguir vivo (e com medo de apanhar da mãe, caso entrasse para o tráfico), ele foi campeão carioca amador, levou o título brasileiro júnior em 2002 e ano passado venceu o Mormaii Costão Pro, etapa do WQS disputada em Florianópolis. Hoje, Simão, de 22 anos, segue treinando no Arpoador, só que agora vive em São Conrado, ao lado da mulher, Diana Bouth, e do filho, Pedro, de 1 ano e 8 meses. Até na vida pessoal o Favela Surfe Clube foi decisivo para Simão. "A primeira vez que nos vimos, eu fazia um programa no SporTV que se chamava RAP - respeito, atitude e paz, sobre projetos sociais. Eu devia ter uns 19 anos e o Simão, 14, 15. Fiz uma entrevista com ele e pensei ‘esse moleque quando crescer vai ficar um gatinho'", conta Diana. "Nos anos seguintes, continuamos nos vendo nas competições de surf, nas baladas de rap, até começarmos a namorar." Deu no que deu.

 

Palavra de Pikachu

Como em um caldo de uma forte onda, Tiola demora um pouco para voltar à superfície. O impacto de rever a matéria de 88 assim, de supetão, o levou às profundezas de certos pensamentos, mas ele deve retornar logo à tona, afinal a produção de Rio Breaks aguarda a trupe para uma das últimas filmagens depois de mais de três anos de trabalho.

Tiola organiza os meninos e as pranchas dentro da van. A programação do sábado nublado é ir até a Barra, conhecer o pernambucano Carlos Burle e ter o primeiro contato com o
tow-in - se não der para pegar ondas gigantes, pelo menos o passeio de jet ski está garantido. No percurso sobre poças e trânsito livre, a meninada se diverte cantando Racionais e fazendo rimas de funk. Fabio, de 13 anos, e Naamã, de 12, são protagonistas do filme e desejam que, na vida real, o surf os encaminhe para destinos bem diferentes aos desenhados por familiares próximos. "Meu irmão Raio foi morto pela polícia. Ele carregava caixas de sabão em pó e um DVD numa sacola plástica e os policiais acharam que fosse droga. Eu estava subindo da praia e vi minha mãe chorando, revoltada, brigando com os policiais. Ela mordeu o braço de um deles e arrancou um pedaço", conta Naamã. "Sei que não adianta ter raiva da polícia porque isso não vai trazer meu irmão de volta. Eles se enganaram. Na rua, a polícia ajuda. No morro, quando a gente precisa de um gás, quem ajuda são os bandidos." Fábio também carrega dolorosos cortes na alma: "Meu pai morreu na guerra, quando a polícia invadiu o morro. Agora meu avô gosta que eu surfe e do filme que estou fazendo. Disse para eu continuar assim que vou longe".

O encontro com Burle foi uma festa para os garotos - e para o próprio. "O surf foi a ferramenta para conquistar meus sonhos. A vida não é só querer, tem que saber retribuir. Para essa criançada, melhor do que as palavras são os exemplos", disse o atleta acostumado a encarar ondas que mais parecem prédios. No mar da Barra, o swell em nada lembrava Mavericks, mas, mesmo assim, deu para os "veteranos" sentirem o gostinho de entrarem velozes na onda, rebocados pelo jet ski. A molecada se divertiu só com o prazer do inédito passeio a bordo da máquina pilotada pelo ídolo. A melhor seqüência de manobras, na melhor onda do dia, não foi assinada por nenhum atleta profissional, nem pelos garotos, mas, sim, por Beta Maia, assistente de produção do filme, de longos cabelos, que não teve sua performance registrada por nenhuma câmera.

O mais contente da turma, dentro e fora d'água, é o mascote Pikachu, que tem o estilo de surf comparado ao de Bochecha, segundo a análise de Tiola. O menino gosta tanto de mar que dificilmente toma banho de água doce. Órfão de pai morto em duelo com a polícia, Pikachu sabe bem o que quer da vida. "Não vou ser bandido porque morre. Também não vou ser polícia. Vou ser trabalhador, o melhor surfista do Arpoador." Veremos, Pikachu. Daqui a 20 anos, a gente volta, faz novas fotos da turma no Brizolão e põe a conversa em dia.

 

 

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