Eles querem mudar a política do Brasil
Atenção: As entrevistas a seguir foram realizadas antes do acidente aéreo de Eduardo Campos.
O advogado Marcos Vinícius de Campos é uma das 271 pessoas reunidas na Raps, Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, uma entidade criada com a missão de trazer sangue novo à política institucional brasileira. Nestas Páginas Negras de formato especial, a Trip ouviu ele, Guilherme Leal e outros integrantes da organização para entender o sonho – e que parte dele é realmente possível.
E m 2010, o empresário Guilherme Leal estava na linha de frente da política nacional, ao compor como vice a chapa presidencial de Marina Silva, que na época disputava a eleição pelo Partido Verde. Leal era conhecido por ser um dos fundadores da Natura e pouco sabia das idiossincrasias da política brasileira. Perguntou a um amigo se ele conhecia alguém com experiência nas engrenagens de Brasília. Foi apresentado ao professor e doutor em direito Marcos Vinícius de Campos, ex-deputado federal pelo antigo PFL. Os dois sabiam que uma vitória de Marina era pouco provável. Acreditavam, porém, que se a campanha imprimisse alguma mudança na agenda do país já seria uma grande coisa. Marina perdeu a eleição, mas teve 20 milhões de votos com um discurso que pregava sustentabilidade e ética e que teve inegável influência na agenda eleitoral. Estava aí a vitória dos “sonháticos”, para usar uma expressão que descrevia o grupo de Marina na época.
Passados a eleição e o processo que culminou com a saída de todo o grupo do PV, Leal, Campos e outros colaboradores do projeto Marina 2010, entre eles o vereador paulistano Ricardo Young (PPS) e a socióloga Maria Alice Setubal, queriam promover mais mudanças, via política institucional. Souberam então da experiência de uma entidade argentina chamada Rap (Red de Acción Política), formada no final de 2002, como resposta da sociedade civil à crise política e econômica daquele país. Em 2011, parte do grupo embarcou para Buenos Aires para conhecer a entidade. Em maio de 2012, fundaram a versão brasileira da Rap: a Raps.
A Rede de Ação Política pela Sustentabilidade é uma entidade civil, sem fins lucrativos, que se proclama apartidária e sem hierarquia, sediada num pequeno prédio no Itaim Bibi, em São Paulo. O orçamento anual de quase R$ 3,7 milhões é bancado por doadores. O objetivo é “colaborar para o aperfeiçoamento da democracia e do processo político brasileiro”, principalmente por meio da “identificação e do apoio a atuais e novas lideranças políticas comprometidas com os valores da ética, transparência e sustentabilidade”.
A Raps foi criada por um grupo que atuou na campanha de Marina Silva à presidência, em 2010 (o que inclui o candidato a vice, Guilherme Leal), mas não acredita mais que um único partido possa mudar o país
Para entender a iniciativa, a Trip conversou separadamente com Campos, hoje diretor executivo da organização, Leal, membro do conselho, e outras figuras ligadas à rede – o próprio Ricardo Young, a gaúcha Gisele Uequed, jovem candidata a deputada estadual no Rio Grande do Sul, e José Eduardo Martins, sócio da gestora de recursos GPS, que apoia financeiramente a empreitada.
Dar espaço a tantas vozes simultaneamente não é praxe destas Páginas Negras, mas deixa mais claras as ideias da Raps – e atende ao pedido dos fundadores de não retratar a entidade como “a rede do Guilherme Leal”, como já foi descrita pela imprensa. “Rede não tem dono, rede não tem super-herói”, diz o próprio. “Esse projeto não é meu. Se for meu, está furado, não foi bem-sucedido. É um coletivo.”
O objetivo da organização é melhorar a qualidade de quem nos representa e governa. A entidade seleciona um grupo de políticos, com ou sem mandato, e dá a eles uma formação básica, uma espécie de “selo de qualidade”. Em 2013, quando abriram a primeira seleção, a ideia era escolher 40 pessoas, mas 401 se inscreveram, o que levou a Raps a ampliar o plano inicial e a selecionar 120 – entre “líderes políticos”, “empreendedores cívicos”, focados na ação junto à sociedade civil, e “jovens Raps”, gente entre 18 e 30 anos com interesse em participar da política. Em 2014, a procura foi ainda maior: 752 inscritos e 151 escolhidos.
No grupo, há gente experiente como o senador Rodrigo Rollemberg (DF), candidato ao governo do Distrito Federal pelo PSB; o deputado federal José Antonio Reguffe (DF), candidato ao Senado pelo PDT; o ex-prefeito de Aracaju Edvaldo Nogueira (SE), candidato a deputado federal pelo PCdoB; e o ex-secretário de Educação paulistano Alexandre Schneider (SP), candidato a deputado estadual pelo PSD. Dos 271 integrantes, 103 estão filiados a um partido. Lidera o ranking o PSB, do presidenciável Eduardo Campos, que tem Marina Silva como vice (que ainda não conseguiu fundar o seu partido, a Rede Sustentabilidade, e que formalmente não tem relação com a Raps). Há tucanos (dez), petistas (12) e até um filiado ao PSC, do pastor Marco Feliciano.
Leal e Campos acham que tudo bem aceitar gente de cores partidárias distintas. Acreditam que seres de legendas e interesses diferentes podem e devem dialogar – sonham inclusive em ver ambientalistas e ruralistas sentando juntos. Sonho? Pode ser. Mas diante do cansaço geral da nação com a política convencional, vale observar. A seguir, trechos das conversas.
Marcos Vinícius de Campos nas próximas páginas, a conversa com o diretor executivo da Raps
Trip. O que é a Raps?
Marcos Vinícius de Campos. De uma forma bem sintética, é uma rede de pessoas alinhadas a valores – ética, transparência e sustentabilidade. A questão central da Raps é como são selecionadas as lideranças políticas no país. A cada quatro anos, 75 mil líderes políticos são eleitos nos três níveis [municipal, estadual e federal]. Há um processo eleitoral, partidário, um sistema político. A Raps é uma contribuição a isso, através da formação de uma rede de líderes políticos com esse perfil valorativo, que considera que não vamos mudar o país se não atuarmos na política. Se não formos para um debate político, a gente não coloca uma narrativa alternativa de desenvolvimento para o país.
Pensando no grupo de fundadores, é uma ideia que nasce logo depois da campanha presidencial da Marina Silva em 2010, certo? Boa parte da nossa experiência durante a campanha apenas fortaleceu o compromisso. Pra dar um quadro rápido: tanto o Guilherme [Leal], quanto o Oded [Grajew], o Ricardo Young, o Álvaro [Cardoso de Souza], a Neca [Maria Alice Setúbal], os fundadores, têm uma experiência de empreendedorismo social forte, têm toda uma trajetória de tentar construir uma ação na sociedade. Quando a Marina [Silva] saiu do governo [em 2008, no segundo mandato do presidente Lula] e o PV fez o convite a ela, esse grupo considerou que havia a tarefa de colocar esse tema noutro patamar. A decisão foi: vamos nos filiar ao PV e organizar essa campanha. Mas as coisas são mais complexas que isso. O PV viu na candidatura da Marina e do Guilherme uma oportunidade de colocar o partido no destaque. Mas não tínhamos candidatos a deputados, senadores. A campanha presidencial foi boa, com quase 20 milhões de votos, mas o PV elegeu praticamente o mesmo número de deputados de 2006... O processo não acumulou do ponto de vista de força política. Acumulou um capital eleitoral, que é o que a Marina tem.
"Há uma captura da política pelo marketing. O sistema é feito para impedir que novas pessoas entrem. Temos que ajudar"
Houve uma grande transferência do voto evangélico para a Marina. Ou seja, o desempenho não se deu necessariamente por uma adesão a essa agenda da sustentabilidade. Absolutamente certo, e nós sabíamos disso. A gente fazia pesquisa e estava claro que boa parte desses 20 milhões de votos, eu diria 14 milhões, veio como uma esperança numa alternativa de poder. Uma parte menor veio pela identidade religiosa da Marina. E uma parte menor ainda, ou quase igual, estava ligada ao tema da sustentabilidade e do ambientalismo. Mas isso já é história. Dentro desse contexto, pensávamos: precisamos participar da política institucional, para confrontar esse modelo que produz o país que conhecemos, com miséria, desigualdade, corrupção, impunidade. O desafio era entender os gargalos que produzem esse modelo.
E dá pra mudar o modelo? Precisamos aproximar a população da política, engajar. A gente sabe que, em cidades bem geridas, duas ou três administrações mudam tudo. O empresário mais rico deste país tem menos poder que qualquer cidade média. A potência do Estado é o único elemento capaz de mudar a vida de milhões de pessoas. Não temos como fugir. Mas você olha pro sistema político, pro sistema partidário, pro sistema eleitoral, pro financiamento do processo de eleição e fala: “Uau, nenhuma pessoa com esses princípios e valores vai sobreviver nisso aí”. É a ideia que gerou mensalão: “Ah, todo mundo sempre fez assim”. A ideia de que só entra na política quem aceitar esse jogo. Mas é possível ser eleito de forma decente.
O foco da Raps é a formação dos líderes. Mas como mudar o eleitor? Temos uma sociedade que há anos põe José Sarney e Renan Calheiros no Senado. Boa pergunta. Muita gente acha que só vamos mudar no dia em que o nível educacional for o padrão alemão. Não é verdade. O processo político é comandado por uma liderança. É ela que constrói a alternativa que temos. Os partidos decidem quem é candidato e ponto, a lógica tem a ver com interesses imediatos. Mas é possível mudar com lideranças comprometidas com outro modelo. Onde estão os melhores talentos do país? Preocupados com seu umbigo ou com o coletivo? Há uma barreira no acesso ao sistema político. As pessoas não sabem fazer campanha, elas custam...
Quem não é profissional não consegue financiar. A política se profissionaliza de tal forma que se aproxima da cultura do espetáculo. Há uma captura da política pelo marketing. O sistema é feito para impedir que novas pessoas entrem. Por exemplo: só pode fazer campanha a partir do dia 5 de julho. Quem já está no poder faz campanha há quatro anos, mas você, novo candidato, tem que mobilizar milhares de pessoas em apenas dois meses e meio. Temos que ajudar a ampliar o conhecimento sobre o sistema político, diminuir a importância do marketing sobre as campanhas e treinar as pessoas.
Melhorar a qualidade dos candidatos, é isso? Sim. Temos que atrair quadros e ajudar esse pessoal, dar um pacote de formação de conhecimento sobre política, sustentabilidade, técnicas de campanhas eleitorais, políticas públicas. Essas pessoas que não têm experiência e querem participar precisam saber como se faz campanha. Crowdfunding, planejamento, agenda, como usar redes sociais, como reduzir o custo. Em 2013 estávamos olhando pra quem seria candidato ou já tinha mandato. Queríamos umas 40 pessoas e divulgamos em algumas redes. Inscreveram-se 401 pessoas. Dessas, algumas já tinham mandato. Selecionamos 41, que chamamos de Líderes Raps. Mas tinha um grupo de jovens que podem ser líderes no futuro e outro grupo de líderes que querem trabalhar na política, mas não têm perfil para ser candidato. Nasceram outros dois projetos: o Jovens Raps e o Empreendedores Cívicos.
"Nós temos a convicção de que nenhum partido político vai promover as transformações que o país precisa"
E como acontece essa formação? No ano passado tivemos quatro encontros, todos em São Paulo. Não é um curso de administração pública, é um curso sobre política. Um alinhamento dos principais temas com cientistas políticos e pessoas que estão ajudando a pensar esse processo. O Carlos Melo, do Insper, o Humberto Dantas, o [Fernando] Abrucio, da GV, o Claudio Couto, também da GV. Várias pessoas ajudam a construir essa agenda. Tem um módulo do curso que trata de política e sustentabilidade. Tem técnicas de campanha, discussão de políticas públicas, media training. Há o encontro anual, que teve participação do Fernando Henrique Cardoso. Trouxemos um professor da Kennedy School, de Harvard, Steven Jarding, pra fazer uma abordagem metodológica de campanhas. São três semestres no pacote de formação. A pessoa fica envolvida três semestres nesse processo que chamamos de amizade cívica. Terminamos agora a primeira turma, a segunda está aí. Em 2014 tivemos 752 inscritos, incluindo dois deputados e um senador da República, Rodrigo Rolemberg, líder do PSB no Senado. O ex-prefeito de Aracaju, Edvaldo Nogueira, 33 anos de partido, leu uma matéria e veio aqui. Conheceu, falou que estava desanimado com a política, com o partido, e eu falei para ele participar. O [José Antonio] Reguffe, deputado do PDT de Brasília, vai ser candidato ao Senado. Tem o Alfredo Sirkis, deputado federal pelo PSB do Rio de Janeiro, que não será candidato à reeleição.
Quantos dos líderes Raps já têm mandato? Dez. Dois deputados federais, três deputados estaduais, um deputado distrital e quatro vereadores.
Por que não ser um partido político? Porque nós temos a convicção de que nenhum partido político vai promover as transformações que o país precisa. Você tem que ter uma rede de lideranças políticas que compartilhem uma visão de desenvolvimento, em diferentes espaços partidários e ideológicos. É óbvio que isso vai ser difícil, claro que vamos ter diferenças entre o Paulo Búfalo, presidente do PSOL em São Paulo, e o Beto Trícole, do PV, ou o Ricardo Young, do PPS. Mas eles estão conversando, discutindo; estamos debatendo e construindo essa visão.
"Se a gente achar que vai poder melhorar se mudarem as regras do jogo, esqueça. Nós temos que melhorar com as regras que existem"
O plano é ter pessoas da Raps em todas as estruturas partidárias? Claro. Vereadores, deputados, prefeitos. Temos 21 candidatos nestas eleições. Vamos ter um grande processo de aprendizado nesse estágio eleitoral. Os jovens empreendedores e líderes vão aprender na campanha. Depois de eleitos, queremos que eles façam mandatos transformadores e inspiradores. Planejando o mandato, tendo uma estratégia, montando a equipe com critérios meritocráticos, instalando um conselho político pra fazer a gestão e um conselho de transparência, que presta contas. Quantos políticos têm um conselho de transparência? O Ricardo [Young] fez isso. Ele se elegeu [a vereador] em São Paulo dentro desses princípios.
É como um selo de qualidade para políticos? Nem sob tortura eu falo a palavra selo. A ideia não é essa. Mas perceba: nós estamos formando líderes para tomar chá? Não. Queremos fortalecer a cultura política de democracia participativa no país.
E existe uma meta? Tem. Pensávamos que em dez anos teríamos 10% do Congresso Nacional. Mas eu acho que vai ser mais cedo.
A Raps financia campanhas? Não. Aportamos tudo antes do processo eleitoral.
Como conseguir que o processo se desenvolva da maneira que você descreve se, na prática, o cara vai ter que pedir dinheiro para uma empreiteira? Primeira questão: ter apoio financeiro está dentro da lei; o problema é explicitar esse apoio e saber qual é a tua agenda. Se a tua agenda vai ser dada pela empreiteira, não cabe como líder Raps. Como desatar esse nó? Precisamos ter inteligência, primeiro para baratear as campanhas. O Reguffe gastou na última eleição R$ 142 mil [e foi o deputado mais votado proporcionalmente em todo o Brasil, em 2010]. Uma pessoa pode ser eleita de forma honesta.
Existe o alinhamento natural de alguns partidos à Raps, por causa da agenda. Mas e os partidos que não têm a ver com esse ideário, vocês pretendem abordar? Todas as fundações partidárias receberam um ofício assinado, pedindo para divulgar o processo de seleção. Todas as câmaras municipais dos municípios com mais de 200 mil habitantes, assembleias administrativas, instituições da sociedade civil. Nós já estamos sendo muito procurados. Se a gente vai discutir educação, tem que trazer todas as visões.
Adianta formar melhores quadros, se eles vão jogar o mesmo jogo? Antigo, baseado em interesses partidários? Cuidado pra não cair no “todo mundo sempre fez assim e não há espaço pra ser autêntico e autônomo”. É mentira. O sistema tem mil defeitos e pode ser aperfeiçoado, mas a gente tem que reconhecer que a democracia brasileira está aí. Com muitos problemas, mas tá aí, funcionando. Se a gente achar que só vai poder melhorar se mudarem as regras do jogo, esqueça. Nós temos que melhorar com as regras que existem. E construir uma discussão sobre como aperfeiçoar isso. É natural que um vereador tenha R$ 100 mil de verba de gabinete? Por que não pode ser 50 ou 40 mil? Ele tem que ter o compromisso de reavaliar essa estrutura do mandato, dar exemplo. O Reguffe, vou voltar ao exemplo dele, fez isso. Dá pra dizer: “Olha, não vou ter carro com motorista. Não vou ter tantos assessores. Vou cortar a verba de gabinete”. Só isso já é revolucionário.
A Marina Silva não participa da Raps nem informalmente? Não. Nós apresentamos, mas ela não se inscreveu. O Eduardo Campos quis saber a respeito, convidamos o Aécio Neves, fizemos o convite à Dilma, via PT. Vamos convidar o Lula. A gente precisa ter relação com todos os partidos.
Você é filiado a algum partido? Não. Eu era do PV, saí junto com Marina e Guilherme.
Você acha que seu papel em uma rede como essa é mais efetivo do que o que você já teve como parlamentar, em 1998? Eu acho que não faz sentido fazer política sem fazer parte de uma rede, de um campo político. Ter um mandato é muito difícil. Você tem que trabalhar imensamente. Não fazia sentido pra mim. Qual é a melhor forma de ação política? Nós – eu, o Guilherme, as pessoas que estão aqui – achamos que não é fundando um partido, e sim preparando pessoas.
Ricardo Young “Vim do setor empresarial, continuo participando de diversos conselhos e vejo que, assim como o mercado, a política é sim um espaço de transformação. A grande tarefa é construir condições pra termos ótimos políticos. Com cerca de 20% de bons políticos em cada parlamento, é possível fazer políticas de qualidade. Na Câmara de São Paulo fizemos a Frente Parlamentar da Sustentabilidade, com 13 vereadores de partidos diferentes, que conseguiu mudanças incríveis no Plano Diretor da cidade. Quando eu digo “bom político”, não é um conceito moral, maniqueísta. “Bom” quer dizer que esteja servindo a um projeto, com integridade e transparência e com uma proposta transformadora. Hoje, se você não for ligado a um grupo econômico ou a uma liderança partidária, como vai se candidatar, se articular com a sociedade e conseguir recursos pra se eleger? A Raps é pra essas pessoas que não conseguiriam entrar na política nas condições normais. E pra que a pessoa saiba fazer campanha, saiba ser claro, entenda o quanto a vida privada vai ser comprometida por esse projeto, seja capacitado para um mandato. Há muito tempo são as mesmas pessoas, os mesmos partidos, as mesmas lógicas de poder. O processo é esclerosado, tudo isso tá caindo de maduro. Mas tem uma juventude aí querendo participar da política, sem fazer as concessões que a política de hoje faz. E dá pra fazer isso.” |
Guilherme Leal nestas páginas, a conversa é com outro fundador e conselheiro da entidade
Trip. Vou começar pela sua preocupação de a Raps não ser vista como “a rede do Guilherme”. Por que isso seria ruim?
Guilherme Leal. A gente acredita em processos que são coletivos. Na própria Natura é assim. Quando a gente foi pela primeira vez Empresa do Ano, pela revista Exame, em 1998, um tempo antes os jornalistas sondaram: “Quem é que vai pra capa, se vocês um dia forem?”. [Risos.] Nunca tinha tido capa coletiva na revista. E eu me lembro de a gente falar: “Não tem, nós somos um coletivo, não vamos querer isso”. Agora, estamos falando de uma rede. O nome é Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, e rede não tem dono, rede é um conjunto de articulações que vai se regulando. Reajo realmente aos personalismos. Não quero foto de super-herói, eu quero um processo de transformação social, político, econômico, prosperidade acontecendo.
Foi difícil lidar com isso estando na linha de frente de uma campanha presidencial, em 2010? Foi. Exigiu muito de mim. Não me arrependo, foi uma coisa rica, o objetivo que eu tinha era bastante claro de ajudar a colocar a questão do desenvolvimento de outra natureza na agenda política, e sem a Marina isso não aconteceria. As possibilidades de ganhar sempre foram remotas, mas decidimos ocupar um espaço pra trazer isso pra discussão. Agora, estar lá na linha de frente, pra quem não tem essa vocação e experiência, é difícil. Tenho orgulho da contribuição dada, foi um esforço importante, mas não é o que eu quero, nem o que eu sei fazer.
Por que a Raps é uma contribuição melhor? Porque é um envolvimento de todos os atores sociais na construção de um coletivo melhor. Tem que ser muito alienado pra não perceber que podemos construir algo. Nós não somos fadados ao fracasso. Chicago em 1920 era o símbolo de uma bandidagem e hoje é o símbolo de uma cidade de artes maravilhosas, de arquitetura, tudo. Por que nós não podemos nos transformar e ser uma sociedade melhor pra viver?
"Claramente não é minha vocação ser candidato a nada. Começamos, então, a procurar outras experiências"
E como se dá essa nova contribuição? Meu processo é de ajudar a mostrar, como empresário, como cidadão ou como político, como é que a gente produz essa transformação positiva. Minha biografia maior é como empreendedor, como empresário. Tento usar minha influência, obviamente já mais afastado do dia a dia de empresa, pra que ela continue sendo um experimento de desenvolvimento e de ação empresarial de melhor qualidade. Como ator da sociedade civil, eu tenho participado de uma série de movimentos, [Instituto] Ethos, fundação Abrinq, essa história toda. Continuo entendendo que empresas não mudam sozinhas, elas mudam por demandas de consumidor. E governos melhoram por cobrança da cidadania ativa. Tô convencido de que sem a política a gente não promove transformações sistêmicas. Quero ajudar a construir novas lideranças, mais do que estar num partido querendo acessar o poder. Os partidos têm que continuar existindo, não existe nada melhor do que a democracia representativa, mas a gente sabe das limitações que essa democracia oferece, no mundo inteiro. A Raps, com dois anos de vida, está se mostrando uma coisa interessante. Não estamos falando de 2014, de 2018; estamos falando de um processo. Daqui a uma década eu espero um resultado.
Não dá pra desvincular a Raps da sua experiência na eleição de 2010. Queria falar um pouco sobre isso. Eu brinco que 2010 foi uma experiência “Exército de Brancaleone desfalcado” [risos].
Mas que conseguiu 20 milhões de votos. Pra você ver como a candidata era boa. A estrutura foi forte porque tinha compromisso com ideias. O PV acolheu a candidatura etc., mas a experiência e o grupo eram muito limitados, os recursos eram limitados. Eu falava “que que eu tô mesmo fazendo aqui?”. Talvez a minha contribuição maior foi ajudar a organizar, pegar um problema e falar “como é que eu destrincho esse problema”. No fundo, empreendedor é um pouco isso. Nesse processo, conversando com um amigo, companheiro de Natura, ele me apresenta o Marcos [Vinícius de Campos], que tinha tido uma experiência política, como deputado, e tinha se afastado. Construíram-se a partir dali uma amizade e uma colaboração muito produtiva, durante a campanha e depois pra falar: o que fazemos com tudo isso, como se dá continuidade? Claramente não é minha vocação ser candidato a nada, nem na Natura eu quero ser executivo [risos]. Começamos, então, a procurar outras experiências e conhecemos a Rap, na Argentina, no comecinho de 2011.
Vocês foram a Buenos Aires? Foram o Ricardo [Young], o Leandro [Machado] e o Marcos. Conversaram com diversos líderes e tal, e a gente começou a processar, foi arredondando um conceito, durante um ano e pouco. Até que em junho de 2012 tivemos um primeiro ensaio da Raps.
"Eu não defendo um sistema que tem 35 partidos que, em boa parte, são um balcão de negócios. Mas tem que ir quebrando, fazendo evoluções progressivas"
Qual foi a primeira ação da Raps? Ela já nasceu com os compromissos da rede Cidades Sustentáveis, que vem construindo desde 2006 uma experiência de monitorar, criar metas, criar uma visão conjunta das cidades. Em 2012, reunimos candidatos a vereador e a prefeito e eles assumiram esses compromissos. Eu acho que a transformação se dá pela base, pelos municípios, pelas lideranças locais. Você bota na agenda uma grande mensagem que diz: “Ó, sustentabilidade não é brincadeira, é uma necessidade. Não é só preservar a mata, é mudar nosso cotidiano, nossa vida”.
Ao mesmo tempo é um conceito que foi ficando desgastado. Digo, a palavra sustentabilidade. Está desgastada, não? Sim, uma das primeiras reflexões nossas foi esta: “Marina, você já representou a floresta, mas sustentabilidade é uma coisa muito mais ampla”. Óbvio que eu não estava ensinando a ela, mas estávamos combinando bem o jogo: “Vamos deixar claro, porque se a gente só fala de floresta e 85% das pessoas vai morar na cidade, como é que é?”. De qualquer forma, a campanha de 2010 serviu para trazer de uma maneira mais forte a discussão sobre a qualidade do desenvolvimento. Mas eu acredito que a transformação vá se dar com a participação efetiva de sociedade, empresas, essa coisa toda, esse processo virtuoso. Criar uma série de movimentos de cidadania, através de lideranças, de instrumentos, com uma plataforma como essa, pra mim é uma ideia encantadora e que faz muito sentido.
Uma pergunta que fizemos ao Marcos Vinícius e vamos repetir: o Congresso Nacional é também uma representação do nível de escolaridade, de informação, do brasileiro. Formar líderes nesse contexto, com esse eleitorado pouco informado e pouco interessado, não é uma coisa um pouco sonhática – usando uma expressão de 2010? Eu não sou Poliana, não acredito em mágica. Mas eu acredito também que se não fizer nenhum esforço pra mudar e só falar “não tem jeito”... não dá. Aí é uma questão que eu falo que é até psicanalítica: eu não consigo lidar com essa hipótese. Isso pra mim é a não vida. Se a gente não acreditar, por mais difícil que seja, que uma hora tem que mudar... Estamos vendo o conflito Israel- Palestina. Não é possível que o ser humano continue a ser tão bárbaro. Eu preciso lidar com a esperança de mudança. Existe essa rejeição à política e aos políticos, aqui e no mundo inteiro, e os movimentos de junho do ano passado mostraram isso, que não é isso que a gente quer, que faltam representantes e formas e processos. Mas há um movimento. O mainstream vai ficar velho daqui a pouco, então você tem que detectar onde estão as tendências e apostar suas fichas. Eu não acredito que de repente o eleitor brasileiro, cento e tantos milhões de pessoas, vá passar a ter consciência, mas se você não tem lideranças minimamente inspiradoras fica difícil. A gente tem uma história, de gerações, de corrupção, de apropriação, de fichas sujas.
E as pessoas continuam votando nessas figuras. Pois é, mas eu não consigo me conformar com isso e tenho que apostar nos meus recursos. Pôr a minha energia nas tendências que podem promover a transformação, sem acreditar que elas são milagrosas e de curto prazo.
As deficiências do próprio sistema político também dificultam esse projeto, não? Eu não acredito na megarreforma. É óbvio que tem inúmeras possibilidades de aperfeiçoar o sistema, mas eu não acredito na megarreforma que vai resolver tudo. Tem pontos importantes, claro. Tem que reduzir a influência do poder econômico nas eleições? Tem, como tem nos Estados Unidos, uma das maiores democracias do mundo.
Tem que haver financiamento público? Tem que ter limitações e tem que ter mais transparência. E ter limite de gastos também, hoje você tem uma concentração absurda de contribuições. Mas não acho que há o modelo perfeito, só financiamento público, só privado, ou misto. Nos melhores exemplos de democracia você tem diferentes opções. Então eu não acredito na grande reforma, sempre esperada, que nunca sai. Tem que ir melhorando. É uma pena a cláusula de barreira ter sido derrubada, porque limitar o número de partidos faz parte de um processo de depuração. Eu não defendo um sistema que tem 35 partidos que, em boa parte, são um balcão de negócios. Mas tem que ir quebrando, inoculando, fazendo evoluções progressivas. É você primeiro mudar dentro do sistema que existe. Não adianta dizer que tá tudo errado e ponto. Não quero mudar de país, eu sou daqui, eu gosto daqui, pô! Então eu vou me conformar que seja só assim?
Você nunca se sentiu completamente desiludido com a situação política do Brasil? Em nenhum período? Completamente não. Vou contar um casinho: sou muito amigo do Oded [Grajew], que era um apoiador do Lula e que foi pra Brasília no primeiro ano de governo dele, em 2003. Em 2004, um mês antes do escândalo Waldomiro [Diniz, assessor do então ministro José Dirceu envolvido em denúncias de corrupção] ele pediu pra sair. Imagina a decepção. Eu tinha votado no Lula, isso não é segredo pra ninguém. Tinha uma boa relação com o Fernando Henrique, mas achei que ali a mudança de poder era necessária, era melhor ter o Lula do que o Serra, que não conseguiu historicamente juntar nem o PSDB. Esse foi um momento de depressão política muito grande. Mas, um tempo depois, me apresentaram o Júnior do AfroReggae. No meio daquela depressão, falei: “Pô, tá vendo como tem gente que, mesmo numa condição totalmente adversa, faz coisas?”. Não pode desistir, né?
A chapa Eduardo-Marina representa nesta eleição de 2014 alguma coisa do que vocês representavam em 2010? Obviamente tem uma influência do que representava. A Marina fez uma opção pra estar no jogo e poder trazer a visão que em 2010 a gente como chapa representou. Trazer pra disputa do poder a criação de alternativas. Ela não vai tomar o lugar do Eduardo, que tem um partido, mas estando com Eduardo ela traz uma voz pra esse processo eleitoral, então eu acho que é válido.
Gisele Uequed “Esta é uma iniciativa suprapartidária, que vê o partido político como um instrumento, não um fim. Tem muitas pessoas querendo transformar o estado das coisas. Mas pra fazer política, não basta ter boa vontade e honestidade. Precisa ter capacitação pra enfrentar o processo eleitoral e o próprio mandato. A Raps coloca lado a lado pessoas que têm o mesmo pensamento. E une essas pessoas pra que não se sintam uma maçã boa no meio de podres. A gente precisa reagir, precisa de pessoas com coragem, com ética. Estamos sendo encorajados a lidar com tudo o que é velho e está encrustrado nas câmaras. É um processo que própria sociedade vai começar a perceber; vai se tornar uma sociedade mais crítica. As pessoas estão sentido que não podem ficar omissas em relação à política. Tudo tem a ver com política. Ou partimos da indignação para a ação ou tudo fica como está.” |
Mas não é uma relação um pouco estranha? Se há uma preocupação em trazer uma proposta nova pro país, por que não deixar na cabeça de chapa quem representa isso e tem um legado de votos tão grande, como a Marina? Não é a velha política se manifestando? É, mas é que a situação real, quando houve a rejeição à criação da Rede [Sustentabilidade, partido que Marina Silva tentou criar], ela não podia chegar e dizer: “Vem cá, me dá sua cadeira”. Não tinha como, né? Mas eu acredito que tenha uma grande diálogo a ser construído entre o ruralismo, tão poderoso na política, e a visão socioambiental de desenvolvimento. Eu faço críticas aos dois lados. Ao socioambientalismo – com o qual eu me alinho muito mais, obviamente, mas que não tá sendo efetivo, tá perdendo o jogo – e ao ruralismo absolutamente arcaico, que pra atender interesses absolutamente particulares cria estragos monumentais. Esse é um dos grandes diálogos que o Brasil precisa construir. E esse paradoxo tá um pouco dentro da chapa Marina-Eduardo. Estou falando o que eu gostaria que acontecesse, não que isso está dado. Mas é uma possibilidade, né? De criar visões mais convergentes, que não são de um grupo ou de outro.
É possível que pessoas da bancada ruralista possam fazer parte da Raps? Ah sim, sem dúvida nenhuma. Eu gostaria. Tá todo mundo convidado, mas tem um processo que elimina aquilo que claramente não é coerente com os princípios e valores dessa rede. Não tem veto, mas é preciso ter compromisso com ética, com transparência, com diálogo. Com alguma mudança.
O senhor declara seu voto nessa eleição? Eu acho que a alternância de poder é fundamental [risos].
"Os tempos são de mudança de ciclo. Os próprios governantes atuais reconhecem e tentam manter um discurso de mudança"
Mas há diferentes opções pra essa mudança. Obviamente eu tenho uma simpatia pelas teses de Marina. Mas principalmente acredito na alternância de poder. Os tempos são de mudança de ciclo, os próprios governantes atuais reconhecem isso e tentam manter um discurso de mudança.
Isso vale pra São Paulo também? Vale, claro. Apesar de que... tem hora que você olha as opções e fala “hã?”. O que é mudança em São Paulo? Difícil saber. O eleitor fica sem saber.
Você continua no projeto da Rede Sustentabilidade? Se o partido sair, volta pra política formal? Não. Eu tive uma conversa superserena com o grupo que participou de 2010 e que tinha saído junto do PV, e falei que preferia estar fora desse processo. Eu tô escolhendo atuar transversalmente. Continuamos com uma enorme identidade sobre a maior parte das grandes questões públicas, é um grupo que tem pessoas muito queridas e respeitadas, não só a Marina, mas não é onde vou emprestar minha melhor contribuição. Desejo sorte à Rede Sustentabilidade, acho importante a existência. E acho difícil também propor uma outra experiência, um partido heterodoxo... não tá tudo resolvido. A inovação traz uma complexidade, fazer um partido em outras bases não é uma tarefa ordinária.
Você voltaria a ser candidato, a se envolver em uma campanha política? Ou nunca mais? Não... Espero poder celebrar muitos bons candidatos. Se eu puder ajudar a fazê-los florescer, ótimo.
José Eduardo Martins, “Como cidadão achei superinteressante o conceito. Todos temos preocupação com o país, mas pouca gente quer se envolver com os políticos profissionais, sem conteúdo. Tudo é muito baseado em eleição, uma coisa imediatista. O objetivo é mais abrangente, precisa ter mais gente do bem discutindo de maneira profunda. Ter uma entidade apartidária querendo formar melhores pessoas para a política faz muito sentido. Sou um doador, e vejo que tudo o que tem sido feito é muito bacana. É pensar em como andar pra frente sem ficar só na disputa entre partidos. Ninguém tem a fórmula da verdade, mas é mais interessante trabalhar por esse caminho.” |
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