Karina Buhr e o muro

por Flora Lahuerta

Cantora vivia na Alemanha durante queda do muro de Berlim, que faz 25 anos

Acontecimento emblemático do século vinte, a queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, faz 25 anos no domingo. No texto e vídeo a seguir, os documentaristas Flora Lahuerta e Theo Solnik conversaram com a cantora Karina Buhr em Berlim, durante sua última turnê europeia. Buhr, neta de alemães, vivia na Alemanha em novembro de 1989, quando o grande símbolo da Guerra Fria começou a ser destruído a marretadas.

 

 

Enquanto caminha pela East Side Galery, a parte preservada do antigo muro de Berlim, Karina Buhr conta que passou a infância ouvindo histórias sobre a Alemanha dividida. A família do avô materno (que nasceu em Nannhausen, perto de Frankfurt, e migrou para o Brasil em 1935) permaneceu toda espalhada pelo país e foi separada pela cortina de ferro. Seus tios relatam que as travessias da fronteira eram verdadeiras epopeias, vetadas para quem vinha do lado oriental e permitidas com enorme controle para quem vinha do lado ocidental. “Sempre tinha essa agonia de passar pela fronteira. Quando ia visitar parentes no leste, minha tia ia vestida com cinco vestidos, quinhentos colares, três chapéus, para levar de presente, porque não podia levar na bolsa”.  

Durante a infância em Recife, na casa dos avós, a cultura dos teutões marcava presença nas conversas, nos discos, nas músicas de Mozart e Beethoven tocadas pelo avô ao piano, nas comidas, nas festas. Só quando passou um Natal com a família de uma amiga que percebeu que ouvir o Coral dos Meninos de Viena durante a ceia ou comer biscoitos caseiros chamados Plätchen não eram costumes tipicamente brasileiros. “E é louco porque minha vó não tinha nada de alemã, era recifense, descendente de índios, mas gostava da cultura e entrou na brincadeira. Então todo ano pintava a casca dos ovos e pendurava nas árvores secas, que é o costume da Páscoa na Alemanha”.  

Paramos num café e Frau Buhr faz o pedido em alemão. “Apesar da sonoridade da língua ser muito familiar, nunca aprendi pra valer. Quando eu era criança tinha umas palavras que eu não sabia de onde vinham, por exemplo, ‘verba’. Quando descobri que era português pensei ‘oxi, achava que era alemão!’”. A tentativa de se expressar na língua de Goethe é tema da música “Telekphonen”, do álbum Eu Menti pra você. “Minha mãe, que é professora de alemão, quis corrigir algumas coisas, mas eu não quis mudar, porque não é para ser correto, é alguém tentando falar, sem saber direito”.

Foi justamente para aprender a língua que Karina resolveu passar uma temporada na casa de parentes, na pequena cidade de Lägerdorf, quando tinha 15 anos. Era 1989. A União Soviética começava a ruir e no dia 09 de novembro o mundo todo pôde testemunhar o grande símbolo da Guerra Fria ser destruído a marretadas. “Eu vi a queda do muro pela TV, em Lägerdorf, com a família toda reunida, todo mundo aos prantos e gargalhadas. A gente telefonou para o tio Werner, que era um irmão de meu vô que morava em Rostock, no lado de lá. Foi a primeira vez que eu tomei cerveja. E olha que nem gosto de cerveja, mas naquele dia foi uma delícia”.

O episódio marcou enormemente essa meio alemã, meio baiana, meio recifense e também já meio paulistana. Berlim foi incluída em sua turnê europeia, por ser uma cidade carregada de memórias familiares de tempos sombrios, mas que hoje transpira abertura. “Aqui a rua é de todos. Ninguém se esconde atrás de muros altos, não há porteiros nos prédios e até os moradores de rua têm a sua dignidade, seu espaço garantido. No metrô também não há catraca, você mesmo compra seu bilhete, se regula”.

Flanando pelas vigas de ferro remanescentes do muro em outro trecho, na Bernauer Str., que permitem que a gente vá de um lado ao outro, um passo no leste, outro no oeste, é possível entender um pouco da artista porosa que é Karina Buhr. Do maracatu ao rock'n'roll, ela transita entre fronteiras e não se deixa rotular, nem do lado de lá, nem do lado de cá. “Eu não divido isso, de cantar, de fazer música, de atuar. Tanto que eu não consigo dizer: sou cantora, sou atriz, sou compositora. Tenho dificuldade, porque para mim é uma coisa só”.

Finalmente chegamos no lugar onde vai ser o show, um clube na beira do rio Spree. O reflexo do sol na água invade a passagem de som. Karina começa a se maquiar e aos poucos se despede de uma certa timidez doce para evocar uma bacante punk, que mais tarde vai se enrolar no fio do microfone e pular na plateia (outra fronteira a ser desprezada, aliás, essa que divide palco e plateia). Entre esses conceitos fechados, Karina passeia. Como o pêndulo que me mostrou, ao contar que estava estudando radiestesia, ela oscila, captando variadas influências para centrar tudo em uma ação que transcende definições. E se apresenta, abalando brasileiros expatriados e alemães embasbacados. Karina é a própria queda do muro.

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